A LIBERDADE RELIGIOSA CONDENADA PELOS PAPAS – PARTE 2

lef3MOTIVO DA CONDENAÇÃO

Como terão notado nos textos precedentes, os papas mostraram cuidadosamente as causas e denunciaram as origens liberais do direito à liberdade religiosa: trata-se de denunciar principalmente o liberalismo naturalista e racionalista, que pretende ser a razão humana o único árbitro do bem e do mal (racionalismo); que pertence a cada um de decidir se deve adorar ou não (indiferentismo); e finalmente que o Estado é a origem de todo o direito (monismoestatal).

Daí certos teólogos modernos acharam que se podiam tirar três teses:

1 – Os papas não condenaram a liberdade religiosa em si, mas somente porque ela aparecia “como conseqüência de uma concepção naturalista do homem”84ou que ela “procedia da primeira premissa do racionalismo naturalista”85, ou das duas outras: “mais do que as conseqüências, são os princípios    que

são aqui considerados: A Igreja condena o racionalismo, o indiferentismo e o monismo estatal”86, simplesmente.

– Ante as expressões concretas dos princípios modernos (luta com o poder temporal do papado, laicização das Constituições, espoliação da Igreja, etc.), faltou aos papas “a serenidade necessária para julgar com objetividade o sistema das liberdades modernas, e distinguir o verdadeiro do falso”; “era inevitável que o primeiro reflexo de defesa fosse uma atitude de condenação total”87, era difícil para estes papas “reconhecer um valor num conteúdo onde a motivação era hostil aos valores religiosos… assim se fez cara feia durante um longo tempo ao ideal representado pelos direitos do homem, porque não se lograva reconhecer neles a longínqua herança do Evangelho”88.

– Mas hoje é possível redescobrir a parte de verdade cristã contida nos princípios da Revolução de 1789 e reconciliar assim a Igreja com as liberdades modernas, com a liberdade religiosa em particular. O Padre Congar foi o primeiro a traçar o caminho que se deve seguir neste ponto:

“A reconciliação da Igreja com um certo mundo moderno não podia ser feita introduzindo as idéias deste mundo moderno tal como são. Isto supunha um trabalho em profundidade  mediante o qual os princípios permanentes do catolicismo tivessem um desenvolvimento novo assimilando, depois de filtradas e em caso de necessidade purificadas, as conquistas deste mundo moderno”89.

Roger Aubert foi um ano depois um eco fiel a este modo de ver as coisas: sobre os colaboradores de “L’Avenir”, jornal católico-liberal de Lamennais, no século XIX, diz:

“Eles não haviam tido bastante cuidado em repensar os princípios que permitiam, com os discernimentos e as purificações necessárias, assimilar ao cristianismo as idéias de democracia e de liberdade que, nascidas fora da Igreja, se desenvolveram em um espírito hostil a ela” (op. Cit. Pág. 81- 82).

Ora, Vaticano II disse que a purificação e assimilação dos princípios da Revolução de 1789 era seu fim primordial:

“O Concílio se propõe antes de tudo julgar sob a luz da fé, os valores mais apreciados por nossos contemporâneos (direito do homem, liberdade, tolerância…) e voltar a uni-los à sua FONTE DIVINA. Pois estes valores, enquanto procedem do gênio humano, que é um dom de Deus, são muito bons; não  é

raro porém que a corrupção do coração humano os afaste da ordem requerida, por causa disto é necessário purificá-los”90.

É isto o que fez o Concílio, diz o Cardeal Ratzinger:

“O problema dos anos sessenta era adquirir os melhores valores resultantes dos séculos de cultura “liberal”. Efetivamente são valores que mesmo nascidos fora da Igreja, podem encontrar seu lugar, purificados e corrigidos, em sua visão do mundo. É o que foi  feito”91.

Quis citar todos estes textos que mostram o consenso unânime de todos estes teólogos que prepararam, realizaram e executaram o Concílio. Ora, estas afirmações que chegam a serem repetições literais umas das outras, não são mais que uma espantosa impostura. É dramático que se afirme que os papas não viram o que há de verdade cristã nos princípios da Revolução de 1789! Vejamos cuidadosamente:

– Certamente os papas condenaram o racionalismo, o indiferentismo do indivíduo e o monismo estatal. Mas não condenaram somente isto! Condenaram expressamente as liberdades modernas em si mesmas. A liberdade religiosa foi condenada pelo que ela vale, e em razão das motivações históricas da época; pois por não tomar mais que este exemplo, o liberalismo de Lamennais (condenado por Gregório XVI) não é o liberalismo absoluto e ateu dos filósofos do século XVIII (condenado por Leão XIII em “Immortale Dei”,  e  no entanto todos  estes  liberais, quaisquer que

fossem seus princípios, às vezes muito diversos, ou seus matizes, sempre reivindicaram a mesma liberdade religiosa. O que é comum  a todos os liberalismo é a reivindicação ao direito de não ser incomodado pelo poder civil no exercício público da religião de sua escolha; seu denominador comum (como diz o Cardeal Billot) é a liberação de toda coação em matéria religiosa. É isto precisamente, como veremos, o que os papas condenaram.

– É uma impiedade e injustiça aos papas, dizer-lhes: “Vós haveis juntado na mesma condenação os falsos princípios do liberalismo e as liberdades boas que ele propõe; haveis cometido um erro histórico”.

Não são os papas que cometeram um erro histórico ou que foram prisioneiros de circunstâncias históricas, mas são estes teólogos que estão imbuídos do preconceito historicista, apesar do que eles dizem. Basta-nos ler as referências históricas que trazem Roger Aubert e J. Courtney Murray sobre a liberdade religiosa para comprovar que revitalizam sistematicamente os ensinamentos do magistério dos papas do século XIX, segundo um princípio que assim se pode expressar: “todo enunciado doutrinal do magistério é estritamente relativo a seu contexto histórico, de tal modo que, mudado o contexto, a doutrina pode mudar”92. Não há necessidade de lhes  dizer o quanto este relativismo e este evolucionismo doutrinal são contrários à estabilidade da rocha de Pedro no meio das flutuações humanas, e quão contrários à Verdade imutável que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Estes teólogos, de fato, não são teólogos nem bons historiadores, pois não têm nenhuma noção da verdade ou de uma doutrina permanente da Igreja, principalmente em matéria social e política; se extraviam em sua erudição e são prisioneiros de seus próprios sistemas de interpretação; são pensadores cheios de ideias mas não são bons pensadores. Teve razão Pio XII ao condenar sua teologia cambiante, sob o nome de historicismo:

“A isto se soma um falso historicismo que aferrando-se unicamente aos acontecimentos da vida humana, subverte os fundamentos de toda verdade e de toda lei absoluta, tanto no que se refere à filosofia como no que se refere aos dogmas cristãos”93.

– Reconciliar a Igreja com as novas liberdades será efetivamente o esforço do Vaticano II, em “Gaudium et Spes” e na declaração sobre a liberdade religiosa; voltaremos adiante a esta tentativa, de antemão condenada ao fracasso, de combinar a Igreja e aRevolução.

Por enquanto vejamos os verdadeiros motivos, imediatos e concretos, da condenação da liberdade religiosa pelos papas do século XIX, motivos para sempre válidos, como se pode ver pelas próprias expressões usadas pelos papas: absurda, ímpia e levando os povos ao indiferentismo religioso:

Absurda, a liberdade religiosa é porque dá o mesmo direito à  verdade e ao erro, à verdadeira religião e às seitas heréticas; ora, diz Leão XIII, o “direito é uma faculdade moral, e como temos dito e nunca se repetirá suficientemente, seria absurdo crer que ela  pertença naturalmente e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal”94.

Ímpia, a liberdade religiosa é porque “atribui a todas as religiões a igualdade de direitos” e “põe no mesmo nível as seitas heréticas, inclusive a pérfida judaica, com a Esposa santa e imaculada de Cristo”; porque também ela leva ao “indiferentismo religioso do Estado” que é o mesmo que seu “ateísmo”, ou seja, a impiedade  legal das sociedades, a apostasia forçada das nações, o rechaço da realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo, a negação do direito público da Igreja, sua eliminação da sociedade ou submissão ao Estado.

Finalmente, ela conduz os povos à indiferença religiosa, como declara o “Syllabus” ao condenar a proposição 77. É evidente que se atualmente a igreja conciliar e a maioria dos católicos chegam a ver em todas as religiões caminhos de salvação é porque este veneno do indiferentismo lhes foi administrado durante já quase dois séculos de liberdade religiosa.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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84 Roger Aubert: O magistério eclesiástico e o liberalismo, em “Tolérance et Communauté Humaine”, Casterman, 1951, pág. 81.

85  John  Courtney  Murray,  “Vers  une  Intelligence  du  Développement  de     la Doctrine de l’Eglise sur la Liberté Religieuse, dans Vatican II: La Liberté Religieuse”, pág. 112.

86 J. Hamer O.P., “Histoire du Texte de la Déclaration, dans Vatican II, La liberte religieuse”, Cerf. Paris, 1967.

87 Roger Aubert, op. Cit., pág. 82.

88 Comission Théologique Internationale, Les Chrétiens d’Aujourd’hui devant la Dignité et les Droits de la Personne Humaine”, Comissão Pontifícia Justiça e Paz, Vaticano, 1985, pág. 44; cit. Por Doc. Episc., boletim do Séc. da Conferência Episcopal Francesa, outubro de 1986, pág. 15.

89 Y. Congar O.P., “Vraie et Fausse Reforme dans l’Eglise Cerf”, Paris, 1950,  pág. 345, cit. Por Roger Aubert, pág.102.

90 “Gaudium et Spes”, II § 2.

91 Entrevista na revista “Jesus”, novembro de 1984.

92 O Pe. Court Murray procurando explicar como o magistério pode passar das condenações do século XIX à liberdade religiosa do Vaticano II declarou  primeiro: “Esta inteligibilidade não é acessível a priori ou simplesmente pelo jogo de aplicações de alguma Teoria Geral do desenvolvimento da doutrina. Atualmente não temos uma teoria geral neste sentido”.

93 Encíclica “Humani Generis” de 12 de agosto de 1950, sobre os erros doutrinais de nosso tempo.

94 “Libertas”, PIN. 207.