A MISSA DE PAULO VI É LÍCITA?

DISPUTA SOBRE O MISSAL DE 1970 (PARTE 1) – DR. JOHN LAMONT

Tradução: Witor Lira

Este documento abordará uma questão importante, mas também negligenciada; a questão da licitude [ou também legitimidade-nota do tradutor] da nova ordem da Missa promulgada por Paulo VI em 1969 para substituir o antigo Missal Romano, e geralmente referida como o Novus Ordo. Esta é obviamente uma questão diferente da discussão sobre a validade do Novus Ordo. Não há dúvida sobre a possibilidade de confeccionar validamente os sacramentos usando o Novus Ordo e os outros ritos sacramentais revistos promulgados por Paulo VI e João Paulo II, portanto a validade dos sacramentos devidamente celebrados com estes ritos será tomada como um dado adquirido. Mas é claro que não é o caso de que um ritual válido deva ser necessariamente um ritual lícito; e é a questão da licitude que será aqui considerada. O termo “lícito” será entendido como significando “legalmente estabelecido e legalmente permitido”. Na constituição apostólica ‘Missale Romanum’ de 1969 promulgada sob devida ordem por Paulo VI, não há dúvida de que o Novus Ordo foi estabelecido usando as formas legais adequadas. A questão é se o ato de estabelecer o Novus Ordo utilizando esta forma foi ou não um ato que se enquadrava nos poderes legais do Papa e, portanto, se a forma legal que estabeleceu o Novus Ordo teve ou não o efeito pretendido de tornar o Novus Ordo lícito.

O P. Jean-Michel Gleize SSPX argumentou que não o fez, com o argumento de que a lei da Igreja tem por objetivo defender seu bem comum, e que os defeitos teológicos do Novus Ordo o tornam intrinsecamente destrutivo para esse bem comum [1]. Quero focar em uma razão diferente para negar a licitude do Novus Ordo. Esta razão surgirá de uma consideração destas duas questões:

  1. O Papa tem autoridade para estabelecer um rito que não seja uma forma do Rito Romano ou de qualquer outro rito tradicional da Igreja?
  2. O Novus Ordo de Paulo VI é uma forma do Rito Romano?

            Argumentar-se-á que a resposta a estas duas perguntas é “não”, e por conseguinte que o Novus Ordo não é lícito. O fato indubitável de que o Novus Ordo não é uma forma de algum rito tradicional da Igreja que não seja o Rito Romano será assumido; se é uma forma de um rito tradicional, só pode ser uma forma do Rito Romano, e é isso o que é alegado por seus defensores. O Rito Romano não é, evidentemente, idêntico ao Rito Latino, mas uma forma particular dele. Os argumentos para a não-identidade do Novus Ordo com o Rito Romano apresentados abaixo funcionam, igualmente, como argumentos para a não-identidade do Novus Ordo com qualquer forma do Rito Latino, portanto, para efeitos de facilidade de exposição, discutiremos apenas a questão da não-identidade do Novus Ordo com o Rito Romano.

Será útil esclarecer a diferença entre este argumento e o utilizado pelo Padre Gleize. Ele argumenta que o Novus Ordo é ilícito porque a sua finalidade teológica e o seu conteúdo são objetáveis. Embora não discorde da verdade das suas premissas ou da validade das suas inferências, não faço uso destas premissas; em vez disso, defendo a ilicitude do Novus Ordo puramente a partir de sua não-identidade com o Rito Romano da Igreja Católica.

A questão da licitude do Novus Ordo deve ser colocada no contexto da licitude das mudanças litúrgicas de Paulo VI e João Paulo II como um todo. Estas mudanças estenderam-se a todo o Rito Romano, que não se limita ao Missal Romano, mas inclui também o Pontificale Romanum, o Rituale Romanum, o Caeremoniale Episcoporum – todos eles contendo vários ritos e bênçãos – o Martirológio Romano, o Breviário Romano, e o Graduale Romanum (que contém a música para o rito).

O Missal Romano tem uma certa centralidade no Rito Romano, como sendo o componente que é dedicado à mais alta ação litúrgica. Se o Novus Ordo é de fato uma forma do Missal Romano, pode-se afirmar que o Rito Romano como um todo sobreviveu às mudanças de Paulo VI e João Paulo II, apesar de quaisquer mudanças nos outros elementos do Rito; enquanto se não é uma forma do Missal Romano, não se pode afirmar que o Rito Romano como um todo sobreviveu a estas mudanças, mesmo que os outros elementos do Rito tenham preservado a sua identidade através das mudanças. Portanto, a conclusão deste documento concluirá que a promulgação do Novus Ordo foi uma tentativa de acabar com o Rito Romano, bem como ilícita.

A questão da licitude dos outros rituais promulgados por Paulo VI e João Paulo II merece um exame separado, mesmo depois de ter sido determinada a ilicitude do Novus Ordo, uma vez que tal exame determinará se é ou não lícito utilizar esses rituais. Não há aqui espaço para tal exame, mas vou observar que as diferenças entre o Breviário Romano, o Pontificale Romanum, o Rituale Romanum, e o Caeremoniale Episcoporum, por um lado, e os livros revistos que os substituíram, por outro lado, são, no conjunto, tão grandes – ou maiores do que – as diferenças entre o Missal Romano e o Novus Ordo. [2] Não sei se a extensão destas diferenças alguma vez foi seriamente contestada, ou se a intenção de abandonar as velhas formas litúrgicas e substituí-las por novas foi realmente disfarçada no caso destes livros; ao passo que a maior sensibilidade da questão das mudanças no ritual da Missa fez com que essa intenção às vezes fosse negada no caso do Novus Ordo. Essa característica das mudanças nos outros elementos do Rito Romano lança luz sobre as intenções por trás do próprio Novus Ordo.

A EXTENSÃO DA AUTORIDADE PAPAL SOBRE A LITURGIA

Podemos começar a nossa reflexão sobre esta questão definindo alguns princípios básicos. O princípio fundamental é expresso na Sacrosanctum Concilium, o documento sobre a liturgia produzido pelo Concílio Vaticano II:

“A fim de que o povo cristão possa certamente obter uma abundância de graças da sagrada liturgia, a Santa Madre Igreja deseja empreender com grande cuidado uma restauração geral da própria liturgia. Pois a liturgia é composta de elementos imutáveis divinamente instituídos, e de elementos sujeitos a alterações. Estes não só podem como devem ser alterados com o passar do tempo, caso tenham sofrido a intrusão de algo fora de harmonia com a natureza interior da liturgia ou se tenham tornado impróprios para ela.”

O fato de a liturgia conter elementos divinamente instituídos explica as limitações do poder papal sobre ela, os quais são descritas no Catecismo da Igreja Católica:

“A fé da Igreja precede a fé do crente que é convidado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, ela confessa a fé recebida dos apóstolos – donde o antigo ditado: lex orandi, lex credendi (ou: legem credendi lex statuat supplicandi, segundo Prosper de Aquitânia [5º século]). A lei da oração é a lei da fé: a Igreja crê como ela reza. A liturgia é um elemento constitutivo da santa e viva Tradição.

Por esta razão, nenhum rito sacramental pode ser modificado ou manipulado à vontade do ministro ou da comunidade. Mesmo a autoridade suprema na Igreja não pode mudar arbitrariamente a liturgia, mas apenas na obediência da fé e com respeito religioso pelo mistério da liturgia.”

O catecismo, enquanto tal, não tem qualquer autoridade de ensino, mas estas declarações são expressões precisas do ensino autoritário da tradição católica. O Cardeal Joseph Ratzinger descreve a tradição católica sobre a liturgia da seguinte forma:

“O papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei; é antes o guardião da Tradição autêntica e, por conseguinte, o primeiro garantidor da obediência. Ele não pode fazer o que lhe apetece, e é assim capaz de se opor às pessoas que, pela sua parte, querem fazer o que lhes vem à cabeça. A sua regra não é a do poder arbitrário, mas a da obediência na fé. É por isso que, em relação à Liturgia, ele tem a tarefa de um jardineiro, não a de um técnico que constrói novas máquinas e atira as antigas para o monte de lixo [Cardeal Joseph Ratzinger, prefácio a Alcuin Reid, The Organic Development of the Liturgy (San Francisco: Ignatius Press, 2005), p. 10].”

Estes princípios não estão em disputa entre aqueles que aceitam o ensino católico, e não são objeto do nosso inquérito. O que procuramos determinar é um aspecto específico da natureza da distinção entre o divino e o humano na liturgia.

Não há nenhum princípio geral conhecido para determinar a diferença entre o divino e o humano na liturgia. Isto em si mesmo fornece um argumento para rejeitar qualquer mudança litúrgica importante: uma vez que não temos uma regra geral para julgar se uma parte da liturgia é ou não de origem divina, a presunção deve ser contra a mudança de qualquer parte da liturgia. Apenas as partes da liturgia que possam ser comprovadamente de origem humana, sem qualquer dúvida razoável, podem ser alteradas por qualquer autoridade na Igreja. Este argumento é a razão pela qual apenas alterações modestas à liturgia foram empreendidas antes de Paulo VI.

Este argumento poderia ser alargado da seguinte forma. Poderíamos dizer que quando não se sabe se uma parte da liturgia é ou não de origem divina, é errado e ilícito para a Igreja alterar ou remover essa parte da liturgia. Uma vez que as alterações à liturgia feitas pelo Novus Ordo foram tão substanciais que incluíram a alteração ou remoção de partes da liturgia que não são conhecidas como sendo de origem humana e não divina, estas alterações são erradas e ilícitas, e o próprio Novus Ordo é ilícito.

Este argumento é sólido. No entanto, não é o argumento que será desenvolvido aqui. Em vez disso, um argumento mais forte será apresentado. Argumentar-se-á que podemos saber que o Novus Ordo removeu de fato aspectos da liturgia que são de origem divina, e que é ilícito por essa razão.

A base para este argumento mais forte é o fato de, apesar da falta de qualquer princípio geral para identificar com precisão os elementos divinos e humanos na liturgia, é possível chegar a uma resposta a uma pergunta mais restrita sobre o elemento divino na liturgia. Esta é a questão de saber se os elementos divinos da liturgia são meramente componentes do Rito Romano (e dos outros ritos tradicionais da Igreja), ou se os próprios ritos são de instituição divina. Podemos tentar resolver a questão de saber se o próprio rito romano é ou não de instituição divina, porque embora não tenhamos um teste geral que possa determinar se cada componente da liturgia é de origem humana ou divina, é, no entanto, por vezes possível identificar a origem divina de aspectos particulares da liturgia. Se o Papa tentasse abolir a celebração litúrgica da Páscoa, por exemplo, é evidente que não teria poder legal para o fazer; esta celebração é sem dúvida um componente da liturgia que é de origem divina.

Se os elementos divinos da liturgia são meramente componentes do Rito Romano, assumiremos que a substituição desse rito por um ritual diferente está dentro do poder legal do papa, desde que os elementos divinamente estabelecidos do rito romano sejam preservados no novo ritual. Se, por outro lado, o próprio rito é de origem divina, o papa não tem o poder legal de o substituir por outra coisa. Argumentar-se-á que o próprio Rito Romano, e não apenas alguns dos seus componentes, é de origem divina; que o Novus Ordo não é o Rito Romano; e, portanto, que o Novus Ordo é ilícito.

Seria possível contestar este pressuposto, e negar que o Papa tem o poder legal de mudar todo e qualquer elemento humano da liturgia ou da tradição católica em geral. A base para esta contestação seria a afirmação de que mesmo os elementos humanos da liturgia e tradição católica podem tornar-se componentes permanentes do bem-estar – o bene esse – da Igreja, e que a autoridade do papa lhe é dada para defender este bene esse, e para preservar, em vez de substituir, o património humano e divino da Igreja. Esta alegação foi admitida por teólogos. O Pe J.Steiger afirma que “o poder do papa não é ilimitado; não só é incapaz de mudar qualquer coisa de origem divina, como, por exemplo, suprimindo a jurisdição episcopal, mas, colocado como está para construir e não para destruir, está obrigado pela lei natural a não lançar confusão no rebanho de Cristo”[3].

Uma vez que a lei natural é, em última análise, de origem divina, a lei natural deve também limitar a autoridade papal que é estabelecida pela lei positiva divina. Mas esta linha de argumentação não será buscada aqui; será assumido que apenas os aspectos divinamente instituídos da liturgia estão para além do âmbito da autoridade papal. Esta suposição produz um argumento mais forte contra a licitude do Novus Ordo, uma vez que menos premissas têm de ser desenvolvidas e provadas para estabelecer a solidez do argumento.

A ORIGEM DIVINA DO RITO ROMANO

É desejável abordar no início de nossa discussão os argumentos mais significativos contra a origem divina das liturgias tradicionais da Igreja. Não podemos rejeitar a posição de que os próprios ritos tradicionais são de origem divina com base em que todos os ritos contêm elementos mutáveis ​​que se admite serem de origem humana. Esses elementos podem ser explicados dizendo que Deus designou nos ritos um certo número de opções ou áreas de ampliação que poderiam ser fornecidas e alteradas pela iniciativa humana. Essa ideia dos ritos contendo opções de variação e adição em conjunto com um núcleo invariável que foi recebido e que não pode ser alterado é a que sempre foi sustentada dentro da Igreja.

Tampouco podemos afirmar que o direito de substituir o Rito Romano é reivindicado por um concílio ecumênico na Sacrosanctum Concilium, a constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II, e, portanto, que esse rito não pode ser considerado de origem divina. Por um lado, mesmo um concílio ecumênico não tem o poder de alterar a tradição divina. Por outro, o concílio rejeitou claramente a ideia de substituir o Rito Romano. A constituição sobre a liturgia afirma duas vezes que quaisquer mudanças litúrgicas devem preservar a substância do Rito Romano (nos parágrafos 38 e 50). A intenção deste documento é obscurecida pela tradução em inglês encontrada no site do Vaticano. Esta tradução refere-se em muitos lugares à “reforma” da liturgia. No entanto, o original latino em nenhum lugar se refere a “reforma”; a palavra latina que é dada em inglês como ‘reform’ é ‘instaurare’, que significa não ‘reformar’, mas ‘restaurar’ – um fato que é reconhecido em alguns lugares na tradução inglesa, onde ‘instaurare’ é traduzido corretamente por ‘restaurar’. Obviamente, uma diretriz conciliar para restaurar o rito romano não pode justificar a substituição deste rito por outro.

A existência de mudanças no Rito Romano ao longo do tempo também não pode ser usada como argumento para o rito ser de origem humana. Este argumento só funcionaria contra a afirmação de que todos os componentes do Rito Romano são de origem divina, uma afirmação que ninguém jamais fez. A afirmação de que o rito como um todo, e alguns, mas não todos os seus elementos, são de origem divina, é obviamente compatível com o fato de alguma mudança no rito ao longo do tempo. As mudanças no Rito Romano que ocorreram no passado teriam de ter sido tão drásticas a ponto de ter excluído a preservação da substância do rito, para servir de argumento para as origens humanas do rito. Todos os historiadores litúrgicos concordam que tais mudanças não ocorreram antes da promulgação do Novus Ordo, e uma simples inspecção dos textos mostra que isso é verdade.

Também não podemos argumentar que a legitimidade do desenvolvimento orgânico na liturgia permite a substituição do Rito Romano por um novo desenvolvimento. O termo “desenvolvimento orgânico” sofre de uma ambiguidade que geralmente não é esclarecida nas discussões sobre o desenvolvimento orgânico da liturgia. Pode referir-se ao desenvolvimento de um único organismo desde a juventude até à maturidade, ou pode referir-se ao desenvolvimento de um tipo de organismo a partir de outro, do tipo postulado pela teoria evolutiva. O último tipo de desenvolvimento permite uma mudança fundamental de um tipo de organismo para outro, mas o primeiro não o permite. É apenas a primeira mudança que é permitida pela tradição católica na liturgia, como a discussão acima referida deixa claro. A última forma de desenvolvimento permite uma transformação radical, uma forma de transformação que exclui a possibilidade de elementos divinamente estabelecidos e imutáveis.

A ideia do desenvolvimento de um único organismo desde a juventude até à maturidade – a ideia aplicada por São Vicente de Lérins ao desenvolvimento da doutrina – é de fato uma analogia útil para o desenvolvimento da liturgia católica. Ela explica as mudanças que podem ser observadas ao longo do tempo no rito romano e nos vários ritos orientais. Estes ritos levaram algum tempo a alcançar as formas que hoje possuem. O desenvolvimento de um único organismo biológico envolve o surgimento e o aumento das suas capacidades, e é completado quando estas capacidades atingem o seu estado de maturidade. O desenvolvimento de um único organismo não é indefinido, mas trabalha no sentido da maturidade, após o que termina.  Algo como este aumento e eventual maturidade deve ser visto na história de todos os ritos da Igreja Católica; há um período inicial de desenvolvimento, que em grande parte para quando se atinge a forma completa do rito. O rito romano, por exemplo, atingiu essencialmente a sua forma madura sob São Gregório o Grande. Com os organismos biológicos, a forma madura existe em potência desde o início, e a sua realização ocorre através da atualização sob as circunstâncias certas dos poderes e tendências já existentes do organismo. Pode-se especular que algo análogo é o caso dos ritos tradicionais da Igreja, e que o estabelecimento divino da liturgia envolve a criação destas potências iniciais no início da Igreja, juntamente com a sua atualização pela acção do Espírito Santo sobre a Igreja; mas a teologia desta área ainda está demasiado pouco desenvolvida para que estas especulações sejam menos provisórias e gerais. A realização destas potencialidades não implicaria, naturalmente, qualquer adição ao depósito da fé, uma vez que tal adição não poderia ocorrer após a morte do último apóstolo; em vez disso, implicaria um crescimento nos meios de comunicação e atuação sobre este depósito.

A diferença entre os dois tipos de desenvolvimento pode, no entanto, servir para destacar um ponto importante sobre a liturgia. Supõe-se que o desenvolvimento evolutivo de uma forma de vida a partir de outra ocorra como uma reação adaptativa ao ambiente externo; a mudança da forma antiga para a nova ocorre e é bem-sucedida porque a nova forma tem uma vantagem em lidar com seu ambiente. Este objetivo evolutivo foi explicitamente defendido pelos designers do Novus Ordo, que afirmaram que a liturgia precisava se adaptar às circunstâncias modernas. Mas a ideia de que um rito litúrgico deveria ser desenvolvido para se adaptar às necessidades, compreensões e circunstâncias das pessoas envolve uma suposição fundamentalmente errada sobre o objetivo da liturgia. No que diz respeito aos seus participantes puramente humanos, o objetivo da liturgia é a sua santificação. Esta santificação opera precisamente através da mudança dos entendimentos, desejos e ações das pessoas. A adaptação da liturgia ao povo é uma negação do seu propósito de santificação. O grande ponto da liturgia é que ela deve adaptar as pessoas a si própria, e não vice-versa. O desenvolvimento orgânico de um único organismo, por outro lado, tem a função de desenvolver plenamente os poderes desse organismo para agir sobre o seu ambiente. Esta última forma de desenvolvimento está em harmonia com o fato de que liturgia se destinar a atuar sobre os cristãos, e não a ser influenciada por eles.

Não se pode afirmar que a existência de vários ritos tradicionais da Igreja mostra que estes ritos, enquanto tais, não são de origem divina. A suposição por detrás desta afirmação seria que diferentes ritos foram desenvolvidos por iniciativa humana a fim de ajustar o culto da Igreja a diferentes circunstâncias; também se poderia assumir que os elementos divinos na liturgia são apenas os comuns aos diferentes ritos.

O fato de haver mais do que um rito tradicional na Igreja não é razão para dizer que estes ritos são de origem humana e não divina, assim como o fato de haver vários evangelhos não é razão para dizer que os evangelhos são de origem humana e não divina. É verdade que os Padres afirmam que um elemento da liturgia que se encontra universalmente em todos os ritos da Igreja deve ser de origem divina. Mas isto não é o mesmo que a afirmação de que apenas os elementos da liturgia que se encontram em todos os ritos da Igreja são de origem divina. A diferenciação entre os ritos não surgiu do objetivo de adaptação a circunstâncias particulares, e não há de facto um ajuste entre os diferentes ritos e as variadas circunstâncias da Igreja. Cada rito católico tem existido numa grande variedade de circunstâncias. Pode-se pensar, por exemplo, na liturgia de São João Crisóstomo, originalmente celebrada na catedral da capital imperial romana, e agora celebrada na Austrália e na Ucrânia rural.

Pode-se identificar um papel desempenhado por circunstâncias externas no desenvolvimento dos ritos da Igreja Católica. O abandono da perseguição do cristianismo pelo Império Romano, por exemplo, foi uma condição necessária para o desenvolvimento maduro destes ritos, porque permitiu a sua celebração pública segura. As dificuldades de tal celebração antes do Édito de Milão são indicadas pela escassez de provas escritas da liturgia católica antes dessa data. A conversão da nobreza de língua latina ao cristianismo no Ocidente a partir do final do século IV disponibilizou os recursos culturais necessários para o desenvolvimento de uma liturgia madura na língua latina. Mas estas circunstâncias disponibilizaram condições prévias para o desenvolvimento da liturgia latina, em vez de a produzir diretamente. Tais circunstâncias poderiam ser condições prévias trazidas pela providência divina, a fim de permitir o desenvolvimento dos aspectos divinamente estabelecidos da liturgia, tal como, por exemplo, o desenvolvimento das línguas grega e hebraica foi um processo humano trazido pela providência divina como condição prévia necessária para a produção das Escrituras. Assim, não podem servir como razões para levar elementos da liturgia a serem de origem humana e não divina. Assim, não podem servir como razões para tomarmos elementos da liturgia como sendo de origem humana e não de origem divina.

A explicação das diferenças entre os ritos católicos deve antes ser procurada na sua origem e na finalidade da liturgia. Os ritos descendem todos, em última análise, de três ritos básicos, que são as liturgias das grandes sés apostólicas de Roma, Alexandria e Antioquia. O seu fundamento está na tradição apostólica destas sés, e o seu objetivo é preservar e transmitir essa tradição. A razão para haver uma diversidade de ritos na Igreja Católica é sem dúvida porque tal diversidade permite uma apresentação mais completa desta tradição. Isto está de certa forma ligado às diferentes circunstâncias dos católicos, mas a ligação não consiste numa adaptação a essas circunstâncias.

Podemos ver um processo análogo na composição das Escrituras. Os recursos culturais, linguísticos e literários pertencentes a determinados povos em circunstâncias particulares – a cultura e língua hebraica dos judeus em vários momentos, e a cultura e língua grega tanto dos judeus como dos gentios – foram utilizadas para a expressão da revelação divina. Mas isto não exemplificou um princípio universal de adaptação da revelação divina às circunstâncias culturais, exprimindo-a nos termos de cada cultura em que é dada a conhecer. Em vez disso, foi um processo de seleção de alguns elementos de alguns ambientes culturais devido à sua adequação à expressão da revelação divina, tornando assim estes elementos permanentemente normativos para todos os cristãos até ao fim dos tempos. Podemos ver um processo análogo na composição das Escrituras. Os recursos culturais, linguísticos e literários pertencentes a determinados povos em circunstâncias particulares – a cultura e língua hebraica dos judeus em vários momentos, e a cultura e língua grega tanto dos judeus como dos gentios – foram utilizadas para a expressão da revelação divina. Mas isto não exemplificou um princípio universal de adaptação da revelação divina às circunstâncias culturais, exprimindo-a nos termos de cada cultura em que é dada a conhecer. Em vez disso, foi um processo de seleção de alguns elementos de alguns ambientes culturais devido à sua adequação à expressão da revelação divina, tornando assim estes elementos permanentemente normativos para todos os cristãos até ao fim dos tempos. O mesmo processo funcionou na formação da liturgia; certos elementos culturais foram selecionados e utilizados para o culto a Deus e para a santificação dos cristãos. No caso dos elementos divinos da liturgia, a seleção foi feita por Deus, mas mesmo quando a seleção foi feita por homens, os elementos culturais escolhidos foram julgados pelo padrão do culto e da santificação, não o contrário. Tal como com as Escrituras, também com a liturgia. O processo de selecção ignorou completamente muitas culturas e formas culturais, mesmo aquelas que por padrões puramente naturais eram superiores aos elementos que foram escolhidos. Nem sequer foram necessariamente seleccionadas a partir das formas mais elevadas da cultura em que se originaram; o grego do Novo Testamento, por exemplo, era inferior em termos naturais às formas mais elevadas do grego antigo. Os elementos selecionados podiam ser estranhos, inicialmente incompreensíveis, ou desanimadores para pessoas fora do contexto de onde provinham. Contudo, isto não é de todo incompatível com o objetivo para o qual foram selecionados, e de fato, em certa medida, foi necessário para esse fim. Uma liturgia cujos componentes fossem todos familiares e apelativos para as pessoas seria uma liturgia da qual nunca poderiam aprender nada de significativamente novo.

A objeção mais sentida à alegação de que as liturgias tradicionais da Igreja são de origem divina é provavelmente baseada no fato de estas liturgias terem sido produzidas ao longo de muitos séculos, em grande parte depois dos tempos dos Apóstolos, e serem fruto de esforços humanos de muitos tipos diferentes, que se originarem em muitas fontes diferentes. Afirmar-se-á que nada produzido desta forma pode ser uma instituição divina permanente.

O primeiro ponto a ser feito sobre essa objeção é que, embora alguns componentes da liturgia fossem originalmente produções pessoais de indivíduos, a liturgia como tal é obra da Igreja, e tudo o que está incluído nela desse modo se torna parte do culto da Igreja e não simplesmente uma criação individual. Se a liturgia não pode ser de instituição divina simplesmente porque é uma construção amplamente pós-apostólica que se desenvolveu ao longo de centenas de anos, então nada do que é feito pela Igreja durante um período de séculos após o tempo dos apóstolos pode ser de instituição divina. Mas isto é obviamente falso. Implica que, por exemplo, as definições conciliares doutrinárias sobre Cristo não são divinamente estabelecidas e imutáveis. É claro que o conteúdo destas definições não é pós-apostólico, mas as definições em si são. E estas definições são, elas próprias, de instituição divina. Elas não exigem o assentimento de fé apenas porque coincidem com a revelação divina – como se pudessem ter sido feitas de outro modo – mas porque são obra do Espírito Santo, o que garante que ensinam esta revelação. O fac[to da sua origem divina está implícito na sua infalibilidade, uma vez que a infalibilidade sobre a verdade divina é um atributo que não pode pertencer às coisas criadas como tais, e só pode ser produzida por Deus (afirmar a sua origem divina não é evidentemente o mesmo que afirmar que a sua produção é em si um ato direto de revelação divina). As liturgias tradicionais da Igreja são naturalmente diferentes em espécie das suas definições conciliares. A comparação entre elas não o nega; simplesmente estabelece que é falso negar que o Espírito Santo esteve ativo na Igreja durante os séculos pós-apóstólicos para produzir resultados que são divinamente estabelecidos e imutáveis.

Estabelecido este ponto, podemos ver que não só é possível, mas adequado que a liturgia como tal seja de instituição divina. A Igreja herda e exerce o tríplice ofício de Cristo como profeta, sacerdote e rei. Seu reinado é exercido por ela através da estrutura hierárquica divinamente estabelecida da Igreja estabelecida por Ele, e seu ofício profético é exercido através de seu magistério infalível divinamente estabelecido, proclamando a verdade revelada ensinada por Ele; é, portanto, bastante apropriado que o seu ofício sacerdotal seja exercido através de uma forma de culto divinamente estabelecida. E a matéria e a forma dos sacramentos, coisas que todos os católicos admitem ser divinamente estabelecidas, não são suficientes para o culto a Deus. A matéria e a forma da Eucaristia, por exemplo, podem estar presentes numa celebração blasfema e sacrílega (mas válida) que é o oposto de um ato de culto, e, portanto, não é um acontecimento litúrgico. As coisas que a Igreja acrescenta à matéria e forma dos sacramentos para fazer da sua celebração um ato de culto a Deus são apenas a sua liturgia.

Para além do ponto sobre o ofício que a liturgia realiza, podemos acrescentar um ponto sobre o efeito que tem sobre os seus participantes humanos. Este efeito é a sua santificação. Mas a santificação é algo que é feita apenas por Deus. Por conseguinte, é conveniente que a liturgia através da qual este efeito é produzido seja uma obra divina e não meramente humana. Este ponto foi compreendido pelo discípulo em Lucas 11:1, que pediu a Cristo que ensinasse os seus discípulos a orar.

Depois destes possíveis equívocos sobre a instituição divina da liturgia terem sido eliminados, não é difícil ver que o próprio Rito Romano, e não simplesmente algumas das suas partes, é de origem divina. Podemos dar três argumentos suficientes para estabelecer esta conclusão, sem querer implicar que estes são os únicos argumentos que podem ser desenvolvidos em suporte dela.

A.

A opinião de que a liturgia é de origem divina é universalmente defendida pelos Padres da Igreja, e é ensinada de forma muito extensiva por eles. Um bom exemplo disto é a seguinte passagem da carta do Papa São Clemente I aos Coríntios, composta por volta de 92 d.C:

Desde então, estas coisas são-nos manifestas, e temos olhado para as profundezas do conhecimento divino, devemos fazer todas as coisas que o Mestre nos ordenou que fizéssemos em momentos apropriados. Ele mandou-nos celebrar sacrifícios e serviços, e que não se deve fazer de forma irreflectida ou desordenada, mas sim a horas e horas fixas. Ele próprio fixou pela sua suprema vontade os lugares e pessoas que deseja para estas celebrações, a fim de que todas as coisas possam ser feitas piedosamente de acordo com o seu bom prazer, e sejam aceitáveis à sua vontade. Assim, aqueles que oferecem as suas oblações nas estações designadas são aceitáveis e abençoados, pois seguem as leis do Mestre e não cometem pecado. Pois ao Sumo Sacerdote são atribuídas as suas próprias ministrações, e aos sacerdotes foi nomeado o lugar adequado, e aos levitas foram impostos os seus serviços adequados. O leigo está vinculado pelas ordenanças para os leigos [4].

As afirmações de Clemente não devem ser lidas como uma reivindicação puramente histórica sobre Cristo ter resolvido todos os detalhes da liturgia antes da sua Ascensão; tal reivindicação não teria sido compatível com a existência de variações nas liturgias da Igreja, que teriam sido bem conhecidas do Papa Clemente, como dos outros Padres. O seu argumento é que a estrutura geral e as características básicas da liturgia não são construções humanas, mas sim obra da autoridade divina, e este é o argumento feito pelos Padres como um todo. Uma vez que o consenso universal dos Padres é uma indicação suficiente de que o tema do seu consenso é uma parte da fé católica, a sua opinião sobre esta questão deve ser aceita.

B.

Como é aceito que alguns elementos da liturgia são de origem divina, se o Rito Romano como um todo não é de origem divina, deve ser o caso que algumas de suas partes, mas não o todo, sejam de origem divina. Mas é sobretudo o rito como um todo que desempenha a função de adorar a Deus e santificar os fiéis cristãos. Os componentes do rito estão subordinados ao rito como um todo, e existem para contribuir para o seu desempenho desta função. Mas é absurdo supor que os componentes de origem divina devem ser partes subordinadas que contribuem para o fim de um todo de origem humana.

C.

Segundo a Antiga Aliança, os judeus tinham uma liturgia que era de origem divina. Isto é demonstrado pelo facto de que esta liturgia era prescrita em pormenores nas Escrituras divinamente inspiradas. A importância desta liturgia é demonstrada pelo seu lugar no livro de Êxodo. Após a primeira ocasião em que Deus chama Moisés ao cume do Monte Sinai, Moisés regressa ao povo de Israel e o pacto com Deus é estabelecido. Moisés é então chamado ao Monte Sinai pela segunda vez, juntamente com Josué, e Deus dedica todo este segundo encontro a uma exposição detalhada da forma de culto que prescreve para o seu povo. (ver Êxodo, capítulos 24 – 31). Claro que esta liturgia utilizava elementos de origem humana que existiam antes da sua instituição divina, mas isso não significa que esses elementos não se tenham tornado de instituição divina uma vez incorporados na liturgia dos filhos de Israel. Mas é absurdo supor que os adoradores sob o Antigo Pacto gozariam de uma forma de culto e santificação de origem divina, enquanto os cristãos sob o Novo Pacto teriam de se contentar com uma forma de culto que fosse um mero desenvolvimento humano, embora incorporasse elementos divinos.

Não se pode refutar esse argumento dizendo que, assim como os judeus da Antiga Aliança tinham uma lei civil divinamente revelada, mas os cristãos da Nova Aliança não, os judeus da Antiga Aliança tinham uma forma de adoração divinamente revelada. mas os cristãos sob a Nova Aliança não. Uma lei civil é projetada para a situação natural e o caráter de uma única política civil para suas circunstâncias. Por esta razão, era adequado para os judeus, um único povo sob uma mesma política civil, ter uma lei civil divinamente revelada, e não era adequado para os cristãos, que se estendem por toda humanidade e pertencem a diferentes políticas civis em circunstâncias diversas, terem uma lei civil divinamente revelada. Além disso, o trabalho de adoração e santificação que tem como objetivo a liturgia não visa o bem natural de uma ou mais medidas políticas civis. Seu propósito é sobrenatural. Os dons sobrenaturais que se destina a comunicar são os mesmos para toda a raça humana. O sacrifício divino que ela contém é único e idêntico em cada Missa. O Corpo de Cristo que ela cria e edifica é um só corpo.

Podemos, portanto, concluir que o próprio Rito Romano, e não apenas alguns de seus componentes, é de instituição divina. Se o próprio Rito Romano é em si mesmo de origem divina, é claro que não só o papa não tem o poder legal de aboli-lo, como também não tem o poder legal de permitir o uso de um ritual de origem humana em seu lugar. Se Deus trabalhou de fornecer uma liturgia de origem divina para a Igreja, é porque ele pretende que essa liturgia seja usada para seu culto, e ninguém, incluindo o papa, tem o direito de tentar frustrar essa intenção substituindo-a por um ritual que é uma invenção humana.

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 A NÃO-IDENTIDADE ENTRE O NOVUS ORDO E O RITO ROMANO

Estabelecemos assim que o Rito Romano como tal é de origem divina, e que o papa não tem autoridade legal para estabelecer uma forma alternativa de culto que seja de origem puramente humana. Se o Novus Ordo não é uma forma do Rito Romano, segue-se que o papa não tem autoridade para permiti-lo como forma de culto católico e, portanto, não é lícito, independentemente do fato de ter sido promulgado usando as formas jurídicas corretas. Resta então determinar se o Novus Ordo é ou não uma forma do Rito Romano. Em termos objetivos, não há realmente nenhum argumento a ser feito para que o Novus Ordo seja uma forma do Rito Romano, mas devido à sensibilidade da questão, esse fato é frequentemente negado com veemência; por isso, vale a pena expor algumas das razões que o demonstram.

Antes de entrarmos nesta discussão, é útil abordar um equívoco comum sobre a natureza da liturgia católica. Este equívoco foi descrito e criticado pelo Cardeal Ratzinger:

O autor [Alcuin Reid] adverte-nos expressamente contra o caminho errado pelo qual podemos ser conduzidos por uma teologia sacramental neo-escolástica que está desconectada da forma viva da Liturgia. Com base nisso, as pessoas podem reduzir a “substância” à matéria e forma do sacramento e dizer: Pão e vinho são a matéria do sacramento; as palavras da instituição são sua forma. Apenas essas duas coisas são realmente necessárias; todo o resto é mutável. … Muitos sacerdotes hoje, infelizmente, agem de acordo com esse lema … Querem superar os limites do rito, como algo fixo e imóvel, e construir os produtos de sua fantasia, que são supostamente “pastorais”, em torno desse resquício, esse núcleo que foi poupado e que, portanto, ou é relegado ao reino da magia ou perde qualquer significado. De fato, o Movimento Litúrgico vinha tentando superar esse reducionismo… e nos ensinar a entender a Liturgia como uma rede viva de Tradição que se concretizou, que não pode ser dilacerada em pedacinhos, mas que deve ser vista e vivida como um todo concreto. Quem, como eu, se comoveu com esta percepção no momento do Movimento Litúrgico às vésperas do Concílio Vaticano II, não pode deixar de ficar profundamente triste diante das ruínas das próprias coisas que o preocupavam. [5]

A referência do Cardeal Ratzinger à “magia” nos ajuda a entender seu ponto. Uma visão mágica dos sacramentos os vê como produzindo seus efeitos independentemente da natureza e das disposições de seus súditos. Tal visão é obviamente contrária ao ensinamento católico; as disposições e ações dos súditos que recebem os sacramentos devem satisfazer certas condições necessárias para que existam e funcionem, e as graças recebidas por quem recebe os sacramentos variarão uma vez satisfeitas essas condições. O grau de graça recebido nos sacramentos variará de acordo com as disposições e ações individuais do destinatário, e estará ausente se algumas disposições e ações necessárias estiverem ausentes.

Mas o estado do recipiente individual não é a única coisa que determina o grau de graça concedido no sacramento. Os sacramentos são trazidos a existência como uma ação da Igreja. Cristo atua nesta ação da Igreja, e os fiéis individuais também atuam nela de acordo com seus respectivos papéis, mas os sacramentos não existem sem a ação da Igreja, e essa ação é o meio pelo qual eles recebem sua existência. Esta ação da Igreja inclui oração e adoração; a liturgia é a oração e o culto da Igreja. A oração da Igreja pede que as graças sejam dadas por meio dos sacramentos, e o culto da Igreja é um sinal externo que é, entre outras coisas, uma ação que manifesta a crença da Igreja nas graças a serem dadas, crença na glória e misericórdia de Deus que está envolvida em dar essas graças, e o compromisso da vontade com Deus que é necessário para receber essas graças. Essas ações podem ser feitas de forma desonesta, sem a crença e o compromisso da vontade que expressam, mas o inverso não é verdadeiro. Não podemos, em circunstâncias normais, possuir a crença e o compromisso de vontade necessários para receber as graças de Deus, a menos que ajamos voluntariamente de uma maneira que manifeste essa crença e compromisso. Este é o porquê de ser necessária uma celebração litúrgica dos sacramentos, e porque a matéria e a forma dos sacramentos não são a substância da liturgia, sendo todo o resto dispensável ou passível de mudança. 

            Pontuado isso, podemos apresentar dois argumentos para a não identidade do Novus Ordo com o Rito Romano:

A.

A maior parte do conteúdo do Rito Romano foi removido do Novus Ordo e substituído por um novo conteúdo que era radicalmente diferente em sua mensagem e intenção. 760 das 1182 orações contidas no Rito Romano foram retiradas inteiramente do Novus Ordo; que é 64%. Das 422 orações restantes, mais da metade foram alteradas significativamente, restando apenas 17% das orações originais.[6] Esses originais existem em um todo muito expandido no Novus Ordo, que contém várias centenas de orações a mais do que seu antecessor. O lecionário do missal antigo foi abolido e foi introduzido um novo ciclo de leituras de três anos que não tinha nenhuma semelhança com o lecionário anterior. O calendário dos santos foi completamente alterado e o ciclo temporal foi alterado de maneira importante; a oitava de Pentecostes foi abolida, e as duas estações seguintes ao Advento e Pentecostes foram substituídas por um único ‘tempo comum’ que não está relacionado a nenhuma festa. As orações privadas do padre e quase todas as orações do ofertório foram removidas da Missa. Três novas orações eucarísticas foram adicionadas ao Cânon Romano, que assim se tornou uma opção (raramente usada) em vez do centro do Rito Romano. A Oração Eucarística II, a mais usada, foi fabricada pelo Pe. Louis Bouyer e Dom Bernard Botte de alguns fragmentos de textos antigos em um episódio rídiculo ao longo de uma tarde em um bistrô em Trastevere (como o próprio Pe. Bouyer testemunhou em suas memórias). Pe. Joseph Gelineau SJ e uma pequena equipe escreveram a Oração Eucarística IV durante uma ou duas noites.

As novas orações e as mudanças nas antigas orações que sobreviveram foram motivadas por uma visão teológica radicalmente diferente que foi projetada para ser aceitável para os protestantes e para o mundo moderno (como o mundo moderno foi entendido pelos arquitetos do novo missal); portanto, seu conteúdo difere do das orações originais em aspectos essenciais. Em sua defesa das mudanças litúrgicas instituídas por Paulo VI, John F. Baldovin SJ aceita que existem profundas diferenças teológicas entre o missal de Paulo VI e seus predecessores. Comentando sobre o problema da reforma litúrgica , [7] um estudo de teólogos da Fraternidade São Pio X, ele diz:

O problema da reforma litúrgica é um livro extremamente útil, não porque seus autores estejam corretos, mas porque em nenhum outro lugar vi o que está em jogo com a reforma da liturgia pós-Vaticano II de maneira tão claramente delineada e tão bem compreendida. … Nada parece escapar à sua atenção: o conceito de mistério, o papel da Trindade nos sacramentos, a natureza da graça, o significado da representação (repraesentare), a noção bíblica e patrística de memorial, o significado analógico da palavra ‘ sacramento’, a natureza da Escritura vis-à-vis o magistério. … Em tudo isso, eles estão completamente no alvo. Ou seja, essas são as questões que estão em jogo na reforma da liturgia. A liturgia reformada representa uma mudança radical na teologia e na piedade católica. [8]

Pe. Baldovin continua; “Mas a acusação deles é de que a reforma litúrgica também se afasta da ortodoxia da doutrina católica romana, e aqui devo discordar.”

Precisamos distinguir três questões diferentes aqui: 1) se os princípios teológicos centrais da liturgia latina tradicional não estão contidos no Novus Ordo, 2) se os princípios teológicos centrais da liturgia latina tradicional são contraditos pelo Novus Ordo, e 3) se os princípios teológicos centrais introduzidos no Novus Ordo se afastam da fé católica. Uma resposta afirmativa a qualquer uma dessas três perguntas implicará que o Novus Ordo não é uma forma de liturgia latina tradicional, uma vez que os princípios teológicos desta última liturgia são essenciais para ela. Não estamos aqui considerando o conteúdo teológico do Novus Ordo do ponto de vista de sua verdade, então nos restringiremos à questão 1). De acordo com a própria declaração do Pe Baldovin, esta pergunta deve receber uma resposta afirmativa; a liturgia reformada é uma mudança radical na teologia católica. Como a teologia da liturgia latina tradicional não está contida no Novus Ordo, este não pode ser uma forma do rito latino tradicional. Esta conclusão só pode ser rejeitada se for defendido que o conteúdo teológico da liturgia latina tradicional não é um atributo essencial dessa própria liturgia. Mas essa afirmação é absurda.

Embora as observações do Pe. Baldovin são suficientes por si mesmas para mostrar que a teologia do Novus Ordo não é a mesma da liturgia latina tradicional, nem ele nem os autores tradicionalistas que ele critica fazem plena justiça ao grau em que o Novus Ordo rejeita a teologia do rito tradicional. Além dos tópicos teológicos que ele menciona – que são centrais o suficiente em toda a consciência – as referências ao sacrifício, pecado, culpa, penitência, punição, inferno, necessidade da graça e ira divina foram quase totalmente removidos do Novus Ordo, e a subordinação deste mundo ao próximo não é mais enfatizada ou claramente apresentada nele. Os Padres Antoine Dumas e Mathias Augé, ambos envolvidos na produção das orações do Novus Ordo, descreveram essa nova perspectiva teológica, e estudiosos como a Dra Lauren Pristas documentaram a sua existência através da análise e comparação cuidadosa das orações antigas e novas [9]. Isso equivale a um completo afastamento da teologia do rito tradicional, pois as expressões dessa teologia que se conservam no Novus Ordo têm seus significados fundamentalmente alterados pelo novo contexto em que estão inseridas. O significado do amor de Deus, por exemplo, é inteiramente diferente em um contexto em que o pecado, a culpa, o castigo divino, a expiação e o inferno estão presentes, em oposição a um contexto em que estão ausentes. Portanto, não há dúvida de que a teologia da liturgia tradicional não está presente no Novus Ordo e, portanto, o Novus Ordo não pode ser uma forma do rito latino tradicional.

B.

A afirmação de que o Novus Ordo não é o Rito Romano foi feita por eminentes liturgistas que estiveram realmente envolvidos na construção do Novus Ordo. Joseph Gelineau SJ, o principal compositor da Oração Eucarística IV, declarou: “Comparemos a Missa antiga com Missa que temos agora. Não só as palavras, as melodias e alguns dos gestos são diferentes. Para dizer a verdade, é uma liturgia diferente da Missa. Isso precisa ser dito sem ambiguidade: o Rito Romano como o conhecíamos não existe mais. Ele foi destruído. [10] O Pe. Louis Bouyer descreveu o missal de Paulo VI como um nanico disforme (‘un avorton’), e desculpou sua participação em sua redação, alegando que ele havia participado apenas para evitar males piores. O testemunho do Pe. Bouyer sobre este tema é particularmente significativo, pois além de seu envolvimento próximo na produção do Novus Ordo, ele foi o liturgista progressista mais importante anteriormente ao Concílio Vaticano II. Pe. Annibale Bugnini, o principal arquiteto do Novus Ordo sob Paulo VI, expôs seus objetivos com essa forma: “Não se trata simplesmente de restaurar uma obra-prima valiosa, mas em alguns casos será necessário fornecer novas estruturas para ritos inteiros … será uma criação verdadeiramente nova.'[11]

Não há, portanto, a mais remota dúvida de que o Novus Ordo não é uma forma do Rito Romano. Só se poderia afirmar que é uma forma do Rito Romano se assumíssemos que o Rito Romano é simplesmente qualquer coisa que o Papa opta por chamar de Rito Romano, e que o conteúdo daquilo a que o Papa dá este nome é irrelevante para a sua identidade. Mas já vimos que este não é o caso.  Esta conclusão é assegurada pelas diferenças drásticas entre o Novus Ordo e os missais romanos anteriores, e pela intenção de destruir o Rito Romano expressa pelos redatores do Novus Ordo. Pode-se imaginar um caso em que uma revisão litúrgica teria sido de grande alcance, mas não suficientemente extensa para garantir que o resultado já não fosse o missal romano; tal resultado existiria numa zona cinzenta, onde nem a sua identidade nem a sua não-identidade com a Missa do rito romano fosse clara.  Algumas das formas litúrgicas de transição que foram introduzidas entre o missal de 1962 e o missal de 1970 podem ter caído nesta categoria, mas vale a pena sublinhar que devido à extensão das diferenças entre o Novus Ordo e os missais romanos de 1962 e anteriores, o Novus Ordo não é um caso limite deste tipo. Não se encontra numa zona cinzenta, mas é uma produção totalmente nova – como os seus designers pretendiam, e disseram que pretendiam que fosse. Podemos, portanto, concluir que a promulgação do Novus Ordo pelo Missale Romanum não tem força legal, e que o Novus Ordo é ilícito. Não é permitido a nenhum padre católico rezá-lo, e não é permitido a nenhum católico assisti-lo, exceto talvez nas circunstâncias mais excepcionais (como talvez num funeral, onde é evidente que a sua presença não pretende ser um ato de culto, mas simplesmente um ato de respeito pelos mortos). Nem, de acordo com o actual Código de Direito Canónico, a assistência ao Novus Ordo pode cumprir o preceito obrigatório do domingo; essa obrigação exige a participação numa Missa de um rito católico, e o Novus Ordo não pertence a um rito católico.

                   Como o Novus Ordo é celebrado pela esmagadora maioria dos católicos de rito latino, esta é uma conclusão alarmante. É provável que o desejo de evitar tal conclusão explique o fracasso geral em examinar a questão da licitude do missal de Paulo VI. Mas, embora essa conclusão não seja bem-vinda, também é esclarecedora. Em seu discurso ao Plenário da Congregação para a Doutrina da Fé em janeiro de 2012, Bento XVI observou com precisão que “em vastas áreas da terra a fé corre o risco de se extinguir, como uma chama que não se alimenta mais. Estamos enfrentando uma profunda crise de fé.’ [12] O mistério desta crise raramente foi suficientemente enfatizado. Não é como se a Igreja fosse confrontada com inimigos que têm um apelo espiritual real, embora distorcido, e uma mensagem poderosa, como foi o caso dos primeiros protestantes; ou um inimigo apoiado por mentes brilhantes e talentos literários, como o Iluminismo; ou um inimigo com slogans e objetivos que atraem pessoas sérias e abnegadas, como a Revolução Francesa com sua ‘liberté, égalité, fraternité’. A Igreja está sendo derrotada por um hedonismo secularista cujos objetivos e slogans são a ganância consumista, o aborto, a contracepção, a fornicação, a eutanásia, a legitimação e celebração da perversão sexual, o ateísmo e a rejeição de qualquer diferença entre o homem e os animais brutos. Estas são todas doenças puras da sociedade humana, ao invés de formas distorcidas de busca de objetivos legítimos como justiça e conhecimento – formas distorcidas que existiam em movimentos anticatólicos como a Revolução Francesa e o Comunismo, e que deram força a esses movimentos. Eles não fazem mais do que aleijar e destruir seus adeptos. Eles são uma fonte de fraqueza para os inimigos da Igreja, ao invés de uma base de força real. É, portanto, estranho que esses inimigos, avançando nessas posições, tenham triunfado sobre a Igreja em todos os lugares. Tais oponentes fracos, corruptos e decadentes não devem representar um sério desafio para a Igreja.

                   O fato do Novus Ordo ser ilícito, no entanto, explica em grande parte esse triunfo. Se a forma divinamente estabelecida de adoração a Deus foi suprimida de longe na maior parte da Igreja Católica, isso significa que o dever de adorar a Deus não está sendo cumprido nesta parte da Igreja. Os frutos produzidos pela adoração a Deus, como resultado, foram em grande parte perdidos para a Igreja; seus membros não são santificados por sua participação na adoração que agrada a Deus, e a graça e a misericórdia que Deus provê em resposta a tal adoração são perdidas. Isso explica o atual declínio interno da Igreja – um declínio sem paralelo na história – e sua derrota por inimigos intrinsecamente fracos. A preponderância do vício antinatural sobre a fornicação nos pecados sexuais do clero católico, e o importante papel da perversão sexual na ideologia dos inimigos da Igreja – tudo isso mesmo como coisas sem paralelo na história – também pode estar ligado ao próprio abandono da adoração devida a Deus. Tal perversão é identificada por São Paulo como consequência de deixar de dar a Deus a honra e o louvor que lhe são devidos (Romanos 1:21, 24-27), e essa honra e louvor é dado principalmente pela celebração da liturgia.

Há um ponto final a ser feito nesta discussão, que abordará os problemas que os católicos podem ter com as afirmações que foram feitas sobre o Novus Ordo. Embora não estejamos diretamente preocupados aqui com o conteúdo teológico do Novus Ordo enquanto tal, há uma conexão importante entre a afirmação deste artigo e a afirmação de que o Novus Ordo é radicalmente teologicamente defeituoso. A declaração do Pe.Baldovin acima, sobre as diferenças teológicas radicais entre o Novus Ordo e a liturgia tradicional, põe em dúvida sua afirmação de que nada no Novus Ordo está em desacordo com a doutrina católica. Se assumirmos, como devemos, que nada na liturgia tradicional estava em desacordo com a doutrina católica, como pode ser o caso de que as mudanças na teologia que o próprio Pe. Baldovin admite ter ocorrido não envolveu uma rejeição da doutrina católica? Como podem mudanças radicais no “conceito de mistério, o papel da Trindade nos sacramentos, a natureza da graça, o significado de representação (repraesentare), a noção bíblica e patrística de memorial, o significado analógico da palavra ‘sacramento”, a natureza da Escritura vis-à-vis o magistério não envolve a rejeição da doutrina católica, se as visões anteriores em si mesmas estavam de acordo com a doutrina católica? Esta questão torna-se mais aguda quando levamos em conta as mudanças teológicas posteriores documentadas pela Dra. Pristas. Se a “doutrina católica” é respeitada tanto pelo velho como pelo novo rito, então esta doutrina deve ser quase vazia de conteúdo; ou deve ser governada pelo relativismo histórico, com seu conteúdo estando função da mudança das circunstâncias históricas, em vez de uma descrição realista de como as coisas são. Mas nenhuma dessas alternativas é aceitável. Assim, parece muito plausível afirmar que a teologia do Novus Ordo é incompatível com a doutrina católica. Não é suficiente responder a essa afirmação dizendo que os elementos teológicos da antiga liturgia que são rejeitados pelo Novus Ordo são simplesmente extirpados, em vez de explicitamente contrariados. Pois a liturgia tem como uma de suas funções o ensino de toda a fé. Para uma posição teológica importante estar ausente da liturgia é necessário, portanto, que ela esteja implicitamente apresentada como não fazendo parte da fé católica. A excisão dos ensinamentos teológicos da antiga liturgia pelo Novus Ordo é, portanto, uma afirmação implícita de que eles não fazem parte da fé.

Mas isso levanta um problema grave. Tem sido considerado teologicamente certo que a infalibilidade da Igreja se estende à sua disciplina geral, e que isso significa que ela “nunca pode sancionar uma lei universal que esteja em desacordo com a fé ou a moralidade ou que seja por sua própria natureza conducente à o ferimento das almas”.[13] A bula Auctorem Fidei ensinou que a proposição de que “a Igreja que é governada pelo Espírito de Deus poderia ter estabelecido uma disciplina que não é apenas inútil e onerosa para a liberdade cristã, mas que é até perigosa e prejudicial e levam à superstição e ao materialismo” é “falsa, imprudente, escandalosa, perigosa, ofensiva aos ouvidos piedosos, prejudicial à Igreja e ao Espírito de Deus por quem é guiado, e no mínimo errônea”. Uma afirmação semelhante foi feita por Gregório XVI em Quo Graviora. O conteúdo teológico do Novus Ordo, especialmente sua remoção deliberada e quase completa dos conceitos de pecado, culpa, punição e necessidade da graça é por sua própria natureza conducente ao dano das almas. Por que então a promulgação do Novus Ordo não é uma refutação da pretensão de infalibilidade da Igreja? A afirmação do Pe Gleize de que o Novus Ordo é ilícito por causa do dano que causa ao bem comum não ajuda a responder a essa pergunta. Sua posição corre o risco de tornar a afirmação da infalibilidade disciplinar da Igreja circular e, portanto, vazia; a Igreja é infalível em sua disciplina porque não pode sancionar uma lei universal que, por sua própria natureza, conduza ao dano das almas – e podemos estar certos de que isso é verdade, porque o fato de uma lei ser, pela sua natureza, propícia à lesão das almas torna-a ilícita e, portanto, não sancionada pela Igreja.

A alegação do presente artigo oferece uma solução para este problema, porque fornece uma razão para se considerar que o Novus Ordo é ilícito, independente dos problemas teológicos do seu conteúdo. O Novus Ordo é ilícito simplesmente porque é uma fabricação humana e não uma forma de liturgia tradicional da Igreja. É de esperar que tal fabricação seja teologicamente gravemente problemática, mas os problemas teológicos com o Novus Ordo não são a razão para o seu carácter ilícito. Uma liturgia humanamente fabricada poderia ser teologicamente não objetável, mas continuaria a ser ilícita. O estatuto ilícito do Novus Ordo decorre do seu carácter anterior como uma fabricação humana, de modo que as questões das implicações do seu conteúdo teológico como liturgia da Igreja, e para a infalibilidade da Igreja, nem sequer se colocam.

A alegação do presente artigo oferece uma solução para este problema, porque fornece uma razão para sustentar que o Novus Ordo é ilícito que independe dos problemas teológicos de seu conteúdo. O Novus Ordo é ilícito simplesmente porque é uma fabricação humana e não uma forma de liturgia tradicional da Igreja. É de se esperar que tal fabricação seja severamente problemática teologicamente, mas os problemas teológicos com o Novus Ordo não são a razão de ser ilícita. Uma liturgia humanamente fabricada poderia ser teologicamente inquestionável, mas ainda assim seria ilícita. O status ilícito do Novus Ordo decorre de seu caráter anterior como fabricação humana, de modo que nem sequer surgem as questões das implicações de seu conteúdo teológico para sua licitude como liturgia da Igreja e para a infalibilidade da Igreja.

Pode-se objetar que esta é uma defesa pobre da infalibilidade da Igreja em matéria disciplinar, porque a licitude do Novus Ordo foi de fato quase universalmente aceita, e o dano às almas resultante do Novus Ordo, consequentemente, ocorreu apenas como se essa infalibilidade não existisse. De que serve a infalibilidade disciplinar proporcionada por Deus à Igreja, quando nem a hierarquia que determina e impõe a disciplina nem o resto da Igreja que é governada por ela podem distinguir uma lei que é protegida por essa infalibilidade e uma medida ilegal relacionada à atividade mais importante da Igreja que não é tão protegida?

Para responder a essa objeção, devemos distinguir os sentidos em que nem a hierarquia nem os leigos podem distinguir entre um rito legítimo da Igreja e uma forma ilícita de culto. Em certo sentido, eles podem fazer isso; isto é, se fizerem uma investigação fiel e responsável sobre a natureza do Novus Ordo, descobrirão que é pelo menos impróprio para ser usado para celebrar a Eucaristia. De fato, muitos católicos fizeram isso, como testemunham as obras de Michael Davies e a Intervenção Ottaviani. Em outro sentido, eles não são capazes de fazer isso. Eles não fizeram tal investigação sobre o Novus Ordo, e muitas vezes não estão dispostos a fazê-lo. A garantia divina de infalibilidade à disciplina da Igreja não se estende à proteção de erro culposo sobre o que realmente consiste em essa disciplina.

Ao contrário de muitas catástrofes, o problema do Novus Ordo é suscetível de uma solução clara e simples; cabe aos sacerdotes de rito latino deixarem de dizê-lo e passarem a usar exclusivamente o legítimo rito latino. A razão ostensiva para a introdução do Novus Ordo e a supressão ilegal de fato do rito latino tradicional foi a promessa de que o Novus Ordo traria um aprofundamento da fé, um aumento na frequência à Missa, uma enxurrada de novos católicos a Igreja, e uma grande renovação em geral. O que de fato ocorreu foi um colapso na fé, na frequência à missa e na membresia da Igreja que é absolutamente sem precedentes na história da Igreja. Esse colapso não foi compartilhado pelas pequenas comunidades que persistiram no uso do rito tradicional latino, apesar das severas dificuldades e desânimo. Este resultado, que é o que se esperaria da adoção de uma forma ilícita de culto, torna obviamente desejável e urgente o abandono do Novus Ordo.

Dr. John R.T. Lamont é um filósofo e teólogo católico canadense. Lecionou filosofia e teologia em universidades e seminários católicos. É autor de Divine Faith (Routledge, 2004) e, com Claudio Pierantoni, de Defending the Faith against Present Heresies (Arouca, 2021). Ele publicou amplamente sobre questões teológicas, em revistas que incluem New Blackfriars, Nova et Vetera, Recherches de Théologie et Philosophie Médiévales e The Thomist.

Notas:

[1]  “Não pode ser objeto de uma lei que vincule como tal toda a Igreja. Com efeito, a lei litúrgica visa propor com autoridade o bem comum da Igreja e tudo o que lhe é exigido. A nova missa de Paulo VI representando a privação desse bem não poderia ser objeto de lei: ela não é apenas má, mas tambpem ilegítima, apesar de todas as aparências de legalidade com a qual foi possível cercá-la e novamente rodeá-la.” Padre Jean-Michel Gleize (FSSPX), Vaticano II em debate (Versalhes: Courrier de Rome, 2012), p. 63.

[2] As profundas diferenças entre a teologia e o conteúdo do Rituale Romanum e as bênçãos revisadas são discutidas de maneira útil no artigo do Pe. Uwe Michael Lang ‘Teologias da Bênção: Origens e Características do De Benedictionibus’, Antiphon 2011, 15 (1); está disponível online em http://liturgysociety.org/JOURNAL/Volume15/Antiphon15.1Lang.pdf.

[3] Fr. J. Steiger, ‘Major Causes’, Dicionário de Teologia Católica vol. II, col. 2039-40. Pe. Steiger prossegue afirmando que “em vez de considerar se uma medida papal arbitrária que lançaria a Igreja em confusão seria inválida, os teólogos preferiram considerar que Cristo nunca permitiria tal desastre; a história mostrou que sua posição está correta.” Ele não nomeia esses teólogos, cuja posição dificilmente seria compatível com a repreensão do Papa Gregório XI por Santa Catarina de Sena, ou a de São Pedro por São Paulo para esse assunto. (Gálatas 2:11; ‘quando Cefas chegou a Antioquia, opus-me a ele na cara, porque ele estava condenado’). Esses episódios refutam suficientemente as afirmações do Pe. Steiger sobre a história; eles poderiam ser multiplicados.

[4] 1 Clemente 40, tr, Kirsopp Lake, em The Apostolic Fathers, vol. I (Londres: Heinemann, 1919), pp. 77-79.

[5] Ratzinger, em Alcuin Reid, O Desenvolvimento Orgânico da Liturgia (Ignatius Press, 2005), p. 11.

[6] Veja Pe. Anthony Cekada, Trabalho de Mãos Humanas: Uma Crítica Teológica da Missa de Paulo VI (Philothea Press: West Chester, Ohio, 2010). O Ab. Arthur Roche afirma que o Novus Ordo retém 90% dos textos do missal de Pio V (‘O Missal Romano de São Paulo VI: Um testemunho de fé imutável e tradição ininterrupta’, Notitiae 597 (2020)). Essa afirmação é pura invenção.

[7] O Problema da Reforma Litúrgica: Um Estudo Teológico e Litúrgico (Kansas City: Angelus Press, 2002); os autores não são identificados.

[8] John F. Baldovin S.J., Reformando a Liturgia: Uma Resposta aos Críticos (Collegeville, Minn.: Liturgical Press, 2008), pp. 138-139.

[9] Ver Lauren Pristas, ‘The Orations of the Vatican II Missal: Policies for Revision’, Communio 30 (Inverno, 2003) e “Theological Principles that Guided the Redaction of the Roman Missal (1970)”, The Thomist 67 (2003). Alguns desses trabalhos estão disponíveis na página do Dr. Pristas em http://faculty.caldwell.edu/lpristas. Seu livro The Collects of the Roman Missals: A Comparative Study of the Sundays in Proper Seasons antes e depois do Concílio Vaticano II (Londres: Bloomsbury T&T Clark, 2013) expande seu trabalho anterior. Ela discute a perspectiva teológica de Pes. Dumas e Augé com base nas suas próprias declarações.

[10] Joseph Gelineau S.J., Demain la liturgie: ensaio sobre a evolução das assembleias cristãs (Paris: Cerf, 1977). p.p. 9-10.

[11] La Documentation Catholique, no. 1493, 7 May 1967

[12] https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/en/speeches/2012/january/documents/hf_ben-xvi_spe_20120127_dottrina-fede.html.

[13] Van Noort, Castelot, and Murphy, Dogmatic Theology vol II: Christ’s Church (Cork: The Mercier Press, 1958), p. 115.