BENÉFICAS COAÇÕES

Resultado de imagem para marcel lefebvreNão considereis que estais obrigados, mas a que estais obrigados, se é ao bem ou ao mal”. Santo Agostinho

Como lhes disse, o liberalismo faz da liberdade de ação, definida no capítulo anterior, uma liberdade de toda coação, um absoluto, um fim em si. Deixarei ao Cardeal Billot a análise e contestação desta pretensão fundamental dos liberais:

“O princípio fundamental do liberalismo, escreve ele, é a liberdade de toda coação, qualquer que seja, não só daquela que se exerce pela violência e que somente atinge os atos externos, como também da coação que provém do temor das leis e penalidades, das dependências e necessidades sociais, ou resumindo, dos laços de qualquer natureza que impeçam o homem de agir segundo sua inclinação natural. Para os liberais, esta liberdade individual é o bem por excelência, o bem fundamental, inviolável, ao qual tudo deve ceder, excetuando talvez o que exige a ordem puramente material da cidade; a liberdade é o bem ao qual tudo mais está subordinado; ela é o fundamento necessário de toda construção social”36.

“Este princípio do liberalismo, continua o Cardeal Billot, é absurdo, antinatural e quimérico”. Eis a análise crítica que ele desenvolve; eu resumo e comento:

O Princípio Liberal é Absurdo

Este princípio é absurdo: “incipit ab absurdo”, começa com a insensatez de pretender que o principal bem do homem é a ausência de todo liame que atrapalhe ou restrinja a liberdade. Realmente o bem do homem deve ser considerado como um fim: aquilo que é desejado em si. Vejamos porém que a liberdade, a liberdade de ação, é somente um meio, é somente a faculdade que pode permitir ao homem adquirir um bem. É portanto relativa ao uso que se faz: boa se é para o bem, porém má se é para o mal. Não é portanto um fim em si mesma e certamente não é o fim principal do homem.

De acordo com os liberais, a coação constitui sempre um mal (a não ser para garantir uma certa ordem pública). Mas é claro, por exemplo, que a prisão de um malfeitor, não só por garantir a ordem pública mas também para castigo e emenda do culpado é um bem. Igualmente a censura da imprensa é praticada até pelos liberais contra seus inimigos, de acordo com o ditado (liberal?): “não há liberdade para os inimigos da liberdade”. Em si mesma a censura é um bem para defender a sociedade contra a expansão do veneno do erro que corrompe os espíritos.

Como conseqüência, deve-se afirmar que a coação não é em si mesma um mal, que é inclusive do ponto de vista moral, “quid indifferens in se”, algo em si mesmo indiferente; tudo dependerá da finalidade para a qual seja empregada. É aliás o ensinamento de

Santo Agostinho, doutor da Igreja, que escreve a Vincentium (carta nº 93):

“Penso que não se deve considerar que se é obrigado, mas a que se é obrigado: se ao bem ou ao mal. Não é que ninguém seja capaz, sozinho, de um esforço para se tornar bom, mas é que o temor daquilo que não se quer sofrer põe fim à obstinação e empurra ao estudo da verdade que se ignorava; faz afastar o falso que se sustentava e procurar a verdade que não se conhecia, e assim se chega a querer o que não se queria”.

Durante o Concílio Vaticano II, intervi pessoalmente várias vezes para protestar contra a concepção liberal de liberdade que estava sendo aplicada à liberdade religiosa, concepção segundo a qual a liberdade se definiria como a ausência de qualquer coação. Eis o que então eu declarava:

“A liberdade humana não pode ser definida como uma liberação de toda coação, sob pena de destruir toda autoridade. A coação pode ser física ou moral. A coação moral no campo religioso é de grande utilidade e é encontrada praticamente em todas as Sagradas Escrituras: “o temor de Deus, é o começo da sabedoria37.

“A exposição contra a coação, nº 28, é ambígua e falsa sob certos aspectos. O que resta da autoridade paterna dos pais de família   cristãos   sobre   seus   filhos?   Da   autoridade dos professores nas escolas cristãs? Da autoridade da Igreja sobre os apóstatas, os hereges e os cismáticos? Da autoridade dos chefes de estado católicos sobre as falsas religiões, que trazem com elas a imoralidade, o racionalismo, etc38.

A mim me parece que não se pode reafirmar melhor o qualificativo de “absurdo”, que o cardeal Billot dá ao princípio do liberalismo, senão citando o Papa Leão XIII:

“Nada se poderia ter dito ou imaginado de mais absurdo e de mais em oposição ao bom senso, do que esta afirmação: o homem sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei”39.

Equivale a dizer: sou livre, logo devem deixar-me livre! O sofisma escondido, fica claro ao se explicar um pouco: sou livre  por natureza, dotado de livre arbítrio, portanto sou livre também em relação a qualquer lei, e de toda coação exercida pela ameaça de castigos! Ou seja, leis sim, mas sem prever qualquer sanção. Mas isto seria a morte das leis: o homem não é um anjo, nem todos os homens são santos!

Espírito Moderno e Liberalismo

Gostaria de fazer agora uma observação. O liberalismo é um erro gravíssimo, cuja origem histórica já vimos. Mas há um espírito moderno que, sem ser francamente liberal, apresenta uma tendência ao  liberalismo.  Desde  o  século  XVI  o  encontramos  em   autores católicos que não são suspeitos de simpatia com o naturalismo ou com o protestantismo. Não há dúvida que é um sinal deste espírito moderno considerar que “alguém é livre enquanto não haja lei que lhe venha restringir”40. Sem dúvida, toda lei limita a liberdade de ação, mas o espírito da Idade Média, ou seja, o espírito da ordem natural e cristã de que falamos antes, sempre considerou a lei e suas coações primeiramente como uma ajuda e uma garantia de verdadeira liberdade, não como uma limitação. Questão de ponto de vista?, dirão; eu direi: não! Questão essencial que marca o começo da troca fundamental de mentalidade; um mundo dirigido para Deus considerado como fim último a alcançar custe o que custar. Um mundo orientado completamente para o Soberano Bem, dá lugar a um mundo orientado para o homem, preocupado com as prerrogativas do homem, seus direitos, sua liberdade.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

Acompanhe a publicação dos capítulos aqui, ou compre por aqui ou aqui

36 Op. Cit. Págs. 45-46

37 Obs. Enviada ao Secretariado do Concílio, 30 de Dezembro de 1963.

38 Intervenção oral na Aula Conciliar, Outubro de 1964.

39 Encíclica “Libertas”, PIN. 180

40 Suárez SJ. (1548-1617) exprime este espírito ao escrever: “homo continet libertatem suam”, o homem detém sua liberdade, no sentido de que a liberdade é anterior à lei (De Bon.Et Mal.Hum.Act., disp. XII, sect. V, pág. 448, citado por DTC. XIII, 473). Um espírito tomista como Leão XIII não admitiria esta distinção de duas realidades estritamente correlatas.