BREVE CRÔNICA DA OCUPAÇÃO NEO-MODERNISTA NA IGREJA CATÓLICA – PARTE 3

Para ler a primeira parte clique aqui.

Para ler a segunda parte clique aqui.

TERCEIRA PARTE

A CONDENAÇÃO OFICIAL DA NOVA TEOLOGlA  

O Papa Pio XII condena a nova teologia 

O cardeal Eugenio Pacelli, eleito Soberano Pontífice em 1939 com o nome de Pio XII, perfeitamente consciente das consequências letais de uma tomada de poder na Igreja pelos novos teólogos, interveio resolutamente para condenar em nome da Igreja a nova teologia e seus propagadores.

Num discurso pronunciado em 17 de setembro de 1946 no Capítulo Geral dos Jesuítas, o Papa já tinha alertado os Padres capitulares contra uma “nova teologia que evolui juntamente com a evolução de todas as coisas, semper itura, numquam perventura, “sempre a caminho (para a verdade) sem nunca atingi-la”, acrescentando estas palavras proféticas: “Se tal opinião for abraçada, o que será da imutabilidade dos dogmas, o que seria da unidade e da estabilidade da fé?[1]”.

É quase o mesmo discurso que Pio XII dirigirá depois aos padres dominicanos, reunidos também em Capítulo Geral, confirmando como antídoto contra o novo modernismo a obrigação de não se afastar da doutrina de Santo Tomás de Aquino, assim como foi prescrito pelo Canon 1366, parágrafo 2, do Código de Direito Canônico[2].

Mas os efeitos desta denúncia foram praticamente nulos por causa da profundidade da infecção neo-modernista no mundo da intelligentsia católica, a ponto de o Papa decidir intervir de modo oficial e definitivo pela publicação da encíclica Humani generis[3].

Nesta grande encíclica, que pode ser considerada como o terceiro Syllabus contra os erros da época moderna (depois do Syllabus, com a encíclica Quanta cura, do bem aventurado Pio IX, e depois do decreto Lamentabillii com a encíclica Pascendi de São Pio X). O Papa condenava severamente “certas opiniões falsas que ameaçavam arruinar os fundamentos da doutrina católica”, sem nomear explícita e individualmente seus partidários.

A nova teologia era condenada particularmente pelos seguintes erros:

Espirito anti-escolástico e subjetivista

Contra os ataques à filosofia escolástica feitas por Blondel, Lubac e seus amigos, que queriam substituí-la pelas correntes filosóficas modernas e, especialmente, pela “nova filosofia” imanentista e subjetivista blondeliana, o Soberano Pontífice reafirmou que a filosofia escolástica “é como um verdadeiro patrimônio transmitido pelos séculos do passado cristão… e goza ainda de uma autoridade de ordem superior, já que o magistério da Igreja submeteu seus princípios e suas teses essenciais, que tinham sido pouco a pouco esclarecidos e definidos por homens de gênio, à balança da revelação divina”.

E continuava:

“Esta filosofia reconhecida e recebida na Igreja defende, sozinha, o autêntico e justo valor do conhecimento humano; os princípios inabaláveis da metafísica, a saber, de razão suficiente, de causalidade e de finalidade; e finalmente, a busca de toda verdade certa e imutável.

Eis porque — prossegue ele — “pode-se reforçar esta filosofia com desenvolvimentos mais eficazes, desembaraçá-la de alguns procedimentos escolares insuficientemente adaptados, enriquecê-la discretamente também… mas nunca é possível revertê-la, contaminá-la com falsos princípios. Pois a verdade e toda sua explicação filosófica não podem mudar a cada dia…”.

E então, acrescentava o Papa, “se compreendemos estas precisões, veremos sem dificuldade por que razão a Igreja exige que seus futuros padres sejam instruídos nas disciplinas filosóficas ‘segundo o método, segundo a doutrina e os princípios do Doutor Angélico” (CIC, can. 1366, 2)… “Sua doutrina é de todas a mais eficaz para pôr em segurança os fundamentos da fé, assim como para recolher utilmente e sem perigo os frutos de um verdadeiro progresso”.

“É por tantos motivos, que é no mais alto grau lamentável que a filosofia recebida e reconhecida na Igreja seja hoje desprezada por certos homens que, não sem imprudência, as declaram velha em sua forma e racionalista em seu processo de pensamento”. 

E ele concluía:

“Nós não teríamos certamente de deplorar estes afastamentos para longe da verdade se todos, mesmo em filosofia, quisessem escutar o magistério da Igreja com todo o respeito que lhe é devido; pois lhe cabe, por instituição divina, não somente guardar e interpretar o depósito da verdade divinamente revelada, mas ainda exercer toda sua vigilância sobre as disciplinas filosóficas para que sistemas errados não atinjam os dogmas católicos”.

Infelizmente, enfatizava ainda Pio XII, “hoje, para se apegar, mais do que convém, às novidades no temor de passar por ignorantes de tudo o que surge num século de progressos científicos, vê-se que, em sua pretensão de se subtrair à direção do magistério sagrado, eles se encontram em grande perigo de afastar-se pouco a pouco da verdade divinamente revelada e de induzir com eles os outros ao erro”. 

Relativismo dogmático

Continuava a condenação em bloco dos novos teólogos:

“No que concerne à teologia, o propósito de alguns é enfraquecer o mais possível o significado dos dogmas e liberar o dogma da formulação usual na Igreja há muito tempo e das noções filosóficas em vigor nos Doutores católicos para voltar, na exposição da doutrina católica, ao modo de se exprimir da Santa Escritura e dos Padres. Eles nutrem a esperança de que o dogma, assim desembaraçado de elementos que eles consideram extrínsecos à revelação, poderá ser comparado, com fruto, às opiniões dogmáticas daqueles que estão separados da unidade da Igreja: chegar-se-á então a assimilar ao dogma católico tudo o que agrada aos dissidentes.

“Bem mais, quando a doutrina católica tiver sido reduzida a tal estado, a via estará aberta, pensam eles, para dar uma satisfação às necessidades atuais exprimindo o dogma por meio das noções da filosofia moderna, do imanentismo, do idealismo, do existencialismo ou de qualquer outro sistema que surgir.”

“Que isso possa e mesmo deva ser feito assim — continuava o Papa —, os mais audaciosos, o afirmam pela boa razão, dizem que os mistérios da fé não podem ser significados por noções adequadamente verdadeiros, mas por noções. segundo eles, aproximativas e sempre mutáveis, pelas quais a verdade é indicada sem dúvida até certo ponto, mas fatalmente deformada.” Segundo eles seria necessário que a teologia “substituísse às noções antigas noções novas, para que, sob modos diversos e frequentemente opostos, e, entretanto apresentados por eles como equivalentes, ela nos exprimisse verdades divinas”.

“Conclui-se, com evidência, do que dissemos — terminava o Papa — que tantos esforços não apenas conduzem ao que se chama “relativismo” dogmático, mas já o comportam de fato: o desprezo dos termos através dos quais ele é significado favorecem muito [esta posição equivocada]”.

O que propunham de fato os novos teólogos em substituição da teologia escolástica? Nada além de “noções conjeturais e expressões flutuantes e vagas de uma nova filosofia chamadas a uma existência efêmera, como a flor do campo; isso equivale a fazer do próprio dogma algo como um caniço agitado pelo vento“. 

O “sobrenatural naturalizado” de Lubac

Outros — escrevia o Santo Padre — corrompem a verdadeira gratuidade da ordem sobrenatural, já que defendem que Deus não pode criar seres dotados de inteligência sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica“. 

O falso ecumenismo e a dissolução da Igreja Católica Romana

Pio XII percebeu e condenou o ecumenismo irenista subjacente à nova teologia — a hoje dominante na Igreja — como grave erro, causa de ruína da fé católica:

“Levados por irenismo imprudente — escrevia o Papa — alguns parecem considerar como obstáculos à restauração da unidade fraterna tudo aquilo que se apoia nas leis e princípios que Cristo nos deu e nas instituições que Ele estabeleceu, em tudo que se constrói, em suma, como tantas defesas e sustentações para a integridade da fé: o desabamento do conjunto garantiria a união, pensam eles, mas, digamo-lo, seria uma união na ruína“.

E ele precisava a este propósito: “Alguns estimam que eles não estão ligados pela doutrina que Nós expusemos há poucos anos em nossa carta Encíclica (Mystici Corporis) e que está fundamentada nas fontes da revelação, segundo a qual o Corpo Místico e a Igreja Católica romana são uma só e mesma coisa. Alguns reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a salvação eterna”.

Todos estes erros, condenados desde sempre, são difundidos hoje pela Hierarquia conciliar, como veremos mais adiante.

Depois de ter enumerado outros erros gravíssimos (a respeito da inerrância bíblica, da Santa Eucaristia, do evolucionismo, do poligenismo e de outros assuntos para os quais remetemos nossos leitores ao texto integral da encíclica), o Soberano Pontífice concluía com estas severíssimas palavras:

Sabemos […] que estes novos sistemas podem enganar os imprudentes; é por isso que Nós preferimos Nos opor a eles desde seu princípio, antes de ter de remediar um mal inveterado.

“Também, depois de ter amadurecido, pesado e considerado o assunto diante de Deus, para não faltar com nosso dever sagrado, exortamos os Bispos e os Superiores de famílias religiosas, tornando-lhes uma grave obrigação de consciência velar com o maior cuidado para que estas opiniões não sejam expostas nas escolas, nas reuniões, nem em qualquer publicação e que não sejam ensinadas de modo algum aos clérigos e aos fiéis”.

Quanto aos professores dos institutos eclesiásticos — terminava o Papa — “que eles saibam que não podem exercer com tranquilidade de consciência o encargo de ensinar que lhes é confiado se não aceitarem religiosamente as normas doutrinais que Nós editamos, e se eles não as seguirem exatamente ao longo da formação de seus alunos… Que eles trabalhem, usando de todas suas forças e de toda sua aplicação, a fazer avançar as disciplinas que eles ensinam, mas que eles se guardem também de ultrapassar os limites que nós fixamos em vista de proteger as verdades da fé e a doutrina católica”. 

O banimento dos novos teólogos

“Eu me lembro — relatará vários anos mais tarde o Pe. Spiazzi O.P., professor do Angelicum em Roma — que alguns meses depois da publicação de Humani generis, fiz uma alusão à encíclica por ocasião de uma audiência com Pio XII e o ouvi dizer: “Se eu não tivesse intervindo, poderiamos ter chegado a um ponto em que quase nada mais ficaria de pé”.

A publicação da encíclica, mesmo tendo tido algum eco, não chegou a deter o avanço dos novos teólogos. Mas seu valor fundamental foi — e ainda é — o de constituir o documento oficial da condenação definitiva, pelo Magistério da Igreja, da nova teologia e de seus discípulos, e portanto também a condenação antecipada, e definitiva, da atual “nova corrente” eclesial.

Entretanto, algumas medidas foram tomadas e alguns “expurgos” realizados, como mais tarde Urs Von Balthasar descreveu:

“Haviam nutrido suspeitas sobre ele [o Pe. de Lubac] desde antes do Sobrenatural (1946)… Garrigou­-Lagrange lançava contra Lubac e seus amigos a palavra de ordem na Nova Teologia (1946); o papa, furioso (sic) atacou, o L’Osservatore Romano trazia o discurso; o padre geral Janssens de início se comportou lealmente em relação a Lubac, mas depois, quanto mais os ataques aumentavam de todos os lados, mas ele foi se tornando diplomático. Buscava-se também o que podia parecer suspeito em outras obras (Sur La connaissance de Dieu, Corpus Mysticum, e também o livro sobre Orígenes). Com Humani generis a tormenta se abateu sobre o escolástico de Lyon e Lubac tornou-se o principal bode expiatório. Os dez anos seguintes foram um calvário para Lubac, que foi demitido do ensino, expulso de Lyon, jogado de um lado para o outro. Seus livros, difamados, foram retirados das bibliotecas da Companhia de Jesus e retirados do comércio […]. A mudança se fez muito lentamente […]. Do arcebispo Montini chegaram palavras de adesão e de encorajamento; mais tarde, já como Papa Paulo VI, ele insistiu para que Lubac, no encerramento do congresso tomista na grande chancelaria, falasse de Teillard de Chardin. Mas durante anos, névoas impenetráveis persistiram, até que chegou a nomeação de Lubac por João XXIII como conselheiro dos trabalhos preparatórios [do Concílio Vaticano II – ndr] da comissão teológica, com o Pe. Congar. Este fato mudou a direção dos acontecimentos[4].

A coisa não pode deixar de surpreender. Os novos teólogos, Marie-Dominique Chenu e Yves Congar, de fato, tinham sido afastados do ensino quatro anos antes de Humani generis, depois foi a vez de Lubac. Mais eis que incrivelmente — nos informa Von Balthasar — e sem levar em conta qualquer das condenações da Santa Sé, “do arcebispo Montini chegam palavras de adesão e encorajamento”, para os novos teólogos gnósticos.

Mas, o “arcebispo Montini”, ressaltava Von Balthasar, ia depois se tornar o Papa VI.

Este é um fato que contribuiu para explicar muitas coisas, e que nos obriga a examinar de mais perto sua pessoa e suas idéias. 

Monsenhor Giovanni Battista Montini

Nascido em 1897 e ordenado padre em 1923, o futuro arcebispo Montini, quando ainda estava no início de sua carreira eclesiástica, trabalhava como redator na Secretaria de Estado, assumindo ao mesmo tempo o cargo de Assistente eclesiástico da F.U.C.I., (Federação Universitária Católica Italiana).

Mas eis o primeiro sintoma inquietante de suas idéias pró-modernistas: Montini foi obrigado à pedir demissão pelo Cardeal Vigário de Roma, Sua Eminência Maechetti Selvaggiani, de 1933. O que tinha acontecido? Assim o jovem Montini explicava os fatos numa carta a seu bispo de Brescia, de 19 de março deste ano:

“O motivo de minha demissão é antes uma oposição, que me parece ainda inexplicável […] A tal ponto que fui descrito por alguns ao Eminente Cardeal Vigário como anti-jesuíta e, conseqüentemente, como alguém a ser vigiado em todos os âmbitos, tanto práticos quanto doutrinais e a quem se pode com razão atribuir intenções inquietantes[5]”.

O jovem Montini, entretanto, graças à benevolência insuficientemente previdente de Monsenhor Ottaviani, excelente homem, futuro Cardeal prefeito do Santo Oficio[6], conseguiu se reciclar nos meios vaticanos, chegando mesmo, com o tempo, a recuperar o cargo de substituto na Secretaria de Estado, sob o pontificado de Pio XII.

Mas que Monsenhor Montini fosse realmente “alguém a ser vigiado em todos os âmbitos, tanto práticos quanto doutrinais, e a quem se podem com razão atribuir intenções inquietantes” e que o cardeal Marchetti-Selvaggiano tivesse razão, a sequência dos acontecimentos mostrará cada vez claramente, sobretudo por ocasião da publicação da encíclica Humani generis, de Pio XII. 

O Papa interveio, como vimos, para condenar a nova teologia que ameaçava a própria existência da Igreja.

Mas eis que Mons. Montini, desde então Substituto na Secretaria de Estado, respondendo às interrogações inquietas do filósofo Jean Guitton, que viera encontrá-lo em 8 de setembro de 1950, se permitiu franca oposição à intervenção do Papa e “reconfortou” o amigo neo-modernista:

“O senhor certamente também terá observado as nuances desse texto pontifical. Por exemplo, a encíclica não fala nunca de erros (errores). Ela fala somente de opiniões (opiniones). Isso indica que a Santa Sé não procura condenar verdadeiros erros, mas modos de pensamento susceptíveis de produzir erros, apesar de serem respeitáveis em si. Por outro lado, existem três razões para que a encíclica não seja deformada.

A primeira razão, eu confidencio ao senhor, é a vontade expressa do Santo Padre.              

“A segunda é a mentalidade do episcopado francês, de vistas largas, aberto às correntes contemporâneas. Certamente um episcopado, todo episcopado (porque exerce um contato direto com as almas, e porque deve permanecer fiel a seu ministério pastoral, como se diz…), é sempre levado a alargar as vias da doutrina e da fé. E ele sem dúvida tem razão. Em Roma, temos o dever de velar também sobre o lado doutrinal. Somos particularmente sensíveis a tudo o que poderia alterar a pureza da doutrina que é verdade. O soberano pontífice deve guardar o depósito, como diz São Paulo.

“E chego à terceira razão. Ela se resume em duas palavras: ‘os franceses são inteligentes[7].

E assim, enquanto o Papa condenava radicalmente sem apelo o novo modernismo de Lubac e de seus amigos, um de seus mais próximos colaboradores, Mons. Montini traía sua confiança e minava seu Magistério apresentando as heresias dos novos teólogos como “respeitáveis em si”, tentando fazer crer que esta interpretação da Humani generis era a interpretação autêntica, a ser difundida conforme a “vontade expressa do Santo Padre”, para evitar que a encíclica não fosse “deformada”.

O “reconforto” dado por Montini a seu amigo Guitton traíam, infelizmente, sua mentalidade pró-modernista.

O que igualmente impressiona é sua aprovação, com o habitual pretexto da “pastoral”, da tendência a “alargar as vias da doutrina e da fé“, tendência própria a bispos que, evidentemente, não têm mais fé. Trata-se, além do mais, da mesma tendência, típica dos modernistas, que encontraremos na base dos documentos do Vaticano II e da “pastoral pós-conciliar” que está devastando a Igreja.

É também evidente que Mons. Montini têm uma noção modernista da autoridade da Hierarquia, vista como elemento que frearia o processo de evolução da doutrina (enquanto o elemento progressista seria, ao contrário, a elite modernista, mergulhada na vida a na “pastoral”), exatamente como São Pio X já havia denunciado na Pascendi:

“Digamos então — escrevia São Pio X — para mostrar plenamente o pensamento dos modernistas, que a evolução resulta [para eles] do conflito de duas forças, das quais uma empurra ao progresso, enquanto a outra tende à conservação.

A força conservadora, na Igreja, é a tradição, e a tradição está representada pela autoridade religiosa. Isso, de direito e de fato: de direito, porque a defesa da tradição é como um instinto natural da autoridade; de fato, porque, planando acima das contingências da vida, a autoridade não sente, ou sofre muito pouco os estímulos do progresso. A força progressiva, ao contrário, que responde às necessidades, fermenta nas consciências individuais, e, sobretudo naquelas que estão em contato mais íntimo com a vida. […] Ora, é em virtude de uma sorte de compromisso e de transação entre a força conservadora e a força progressiva que as mudanças e os progressos se realizam“.

Tese, antítese, síntese: Hegel no estado puro, em suma, para uma evolução indefinida rumo ao “Ponto Ômega” teilhardiano…

Com estes pressupostos, era perfeitamente lógico — a lógica do erro — que o substituto Montini tentasse “reconfortar” seu amigo filósofo com uma mensagem codificada reservada aos iniciados: os bispos franceses eram “inteligentes” e certamente à altura de se organizar para deixar a Humani generis cair no esquecimento.

Sempre em seu livro de lembranças sobre seu amigo Paulo VI, Guitton acrescenta:

“Falo a Mons. Montini sobre o Pe. de Lubac, sobre a emoção que causaram na França certas disposições tomadas a seu respeito [precisamente depois deHumani generis – ndr].

Nós o sabemos — responde ele — mas não se inquiete, o Pe. de Lubac ainda prestará eminentes serviços à Igreja. Conhecemos sua doutrina, sua influência, seus méritos[8]”.

Portanto, o Pe. Lubac e os outros novos teólogos não deveriam se inquietar: Mons. Montini e seus “amigos” trabalhavam para tecer a trama de seu futuro golpe de estado, que iria reabilitá-los.

Não entraremos, no escopo deste artigo, no exame detalhado das outras atitudes “montinianas” efetuadas pelas costas do papa. Lembremos simplesmente acarta de felicitações ao modernista Maurice Blondel, enviada pela Secretaria de Estado e assinada pelo Substituto Montini, mas em nome de Pio XII e com votos, sempre em nome do Papa, para continuação de sua obra filosófica e apologética, definida como “uma preciosa contribuição para uma melhor compreensão […] da mensagem cristã[9]”.

Lembremos também de outra atitude de Montini: descobriu-se que ele mantinha, secretamente e contra a proibição de Pio XII, sempre em nome da Santa Sé, relações diplomáticas com o governo soviético de Stalin em Moscou[10].

Depois dessa última traição, Pio XII, muito contristado, afastou Mons. Montini da Secretaria de Estado, enviando-o a Milão como arcebispo, mas sem nomeá-lo cardeal, apesar de Milão ser uma sede cardinalícia há séculos.

Esta nomeação era na realidade um promoveatur ut amoveatur, uma espécie de promoção-destituição; mesmo os neo-modernistas estão de acordo com essa interpretação, como, por exemplo, o Pe. G. Martina, jesuíta e professor da Universidade Gregoriana de Roma, que admite que se tratava de um “afastamento do substituto Montini, ‘promovido’ arcebispo de Milão, jamais nomeado cardeal e jamais recebido em audiência privada pelo Papa (com quem ele tivera contato quotidiano durante anos)[11]”.

E o Pe. Maritina observa:

“O episódio do afastamento significativo de Mons. Montini para Milão ainda não está completamente esclarecido. Diversos fatores influenciaram a destituição: o pouco de simpatia de que ele gozava na Secretaria de Estado, a irritação de Pio XII em relação à independência de julgamento de seu colaborador, o atraso de Montini para comunicar certos fatos, na esperança de que, enquanto se esperava, as dificuldades se resolvessem[12]”.

Mas mesmo como arcebispo de Milão e apesar da clara advertência do Papa, Mons. Montini continuou imperturbável, a desobedecer, apoiando novos teólogos e o progressismo em geral.

Como já vimos, “do arcebispo Montini — relatou Von Balthasar — chegaram palavras de adesão e de encorajamento” para Lubac e seus amigos. E com seus melhores votos a Pio XlI.

A difusão velada da nova teologia nas costas do Papa

Os últimos anos do pontificado de Pio XII transcorreram num grande isolamento, ressaltado por todos os historiadores e interpretado de diferentes maneiras. O fato é que o Papa não podia mais confiar em ninguém.

A Igreja estava por demais repleta de Montinis e Lubacs de diversos calibres e em todos os níveis. Apesar de suas intervenções, Pio XII via subir a maré do modernismo, hipocritamente difundido às suas costas. 

Estas manobras desleais e secretas dos adeptos da nova teologia foram recentemente descritas com eloquência pelo Pe. Henrici, S.J., já citado, num artigo publicado na revista Communio, órgão de imprensa da ala “moderada” da nova teologia (co-fundadores: Henri de Lubac, Hans Urs Von Balthasar e… Joseph Ratzinger).

E eis como o Pe. Henrici descreve a tática dissimulada dos novos teólogos que ensinavam nas universidades dos Jesuítas de certos países da Europa, nas quais ele tinha estudado (Suíça, Alemanha, França e Bélgica):

“Durante nossos estudos no seminário nós liamos Kant, Hegel, Heidegger e Blondel; Kant e Heidegger, em particular, constituíam referências constantes e onipresentes. Geist und Welt de Karl Rahner […] e todas as obras da escola de Marechal eram lidas como best-sellers[13]”.

Em Louvain, por exemplo, Henrici estudava “uma teologia fortemente apoiada nos autores da nova teologia bíblica e ecumênica[14]“.

E ainda: “Àqueles que tinham interesses teológicos particularmente pronunciados, o prefeito dos estudos aconselhava como primeira leitura os dois primeiros capítulos de Surnaturel de Henri de Lubac — o mais proibido dos livros proibidos! — e seu Corpus Mysticum, e isso com o intuito de levá-lo a adquirir uma sensibilidade para o fato de que afirmações teológicas idênticas, enunciadas em épocas diferentes e em contextos diferentes podem ter um sentido diferente[15], isto é, com o intuito de instilar nas almas dos estudantes o relativismo e o evolucionismo dogmáticos mais evidentes.     

Certamente, para salvar as aparências, os professores “propunham para cada matéria um Manual antigo (de estilo escolástico) que, entretanto, só era, no máximo, rapidamente folheado[16]“.

Depois disso, os mesmos professores se consagravam de corpo e alma à difusão entre os alunos do neo-modernismo mais escancarado no domínio bíblico e teológico.

O que era novo, ou melhor, surpreendente — continua o Pe. Henrici — para aqueles que começavam seus estudos de teologia, era sobretudo o modo de abordar a Sagrada Escritura. Era necessário se habituar a não tomar completamente ao pé da letra não apenas o Antigo Testamento, mas também os Evangelhos (por exemplo os Evangelhos da Infância)[17]”.

E ainda:

“No estudo da Bíblia também se fazia referência contínua e de modo natural a autores não católicos” enquanto que, inútil dizer, “a teologia estudada […] era inteiramente ecumênica[18].

Pio XII morreu em Castelgandolfo em 9 de outubro de 1958, deixando uma Igreja que, à primeira vista, ainda podia parecer sólida e tranquila em sua tradição apostólica. Mas era a bonança que precede a tempestade.

Courrier de Rome, março de 2007

Fonte/Tradução: Permanencia

(Continua) 


[1] L’Osservatore Romano, 19 de setembro de 1946.

[2] L’Osservatore Romano, 22-23 de setembro de 1946.

[3] De 12 de agosto de 1950.

[4] H. U. von Balthasar. “le p. Henri de Lubac. La tradition, source de renouveau”, Milan, Jaca BOOK, 1978.

[5] Fappani-Molinari, Giovanni Battista Montini jeune. Éd. Marietti.

[6] Ibidem.

[7] Jean Guitton, Dialogues avec Paul VI.

[8] Ibidem.

[9] Carta de 2 de dezembro de 1944, em Doc. Cath. 08/07/1945. Col. 498-499.

[10] Ver por exemplo o testemunho de Monsenhor Roche (que foi durante muitos anos secretário do cardeal Tisserant, e que havia herdado arquivos pessoais do cardeal) numa de suas cartas, publicada no número 285 da revista Itinéraires.

[11] AA. VV., Vatican II – Bilan et perspectives vingt-cinq ans après (1962-1987); éd. Cittadella, 1987.

[12] Ibidem.

[13] Communio, nov-dez. 1990, “La maturation du Concile. Expériences de théologie dans le pré-concile”.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem.