ENCÍCLICA MEDIATOR DEI – CONDENAÇÃO POR ANTECIPAÇÃO DA “REFORMA LITÚRGICA” DE PAULO VI

Resultado de imagem para missa ecumênicaUma “lei nociva”: o “Ordo Missae” ecumênico

Há 30 anos (3 de abril de 1969), o Novus Ordo Missae de Paulo VI sucedeu ao antiqüíssimo e venerável rito romano da Santa Missa.

Pela Festa de Corpus Christi deste mesmo ano, foi apresentado a Paulo VI um Breve exame crítico do “Novus Ordo Missae“, precedido duma “Carta” dos cardeais Ottaviani e Bacci, na qual se afirmava: “Os súditos, para o bem dos quais se quer estabelecer uma lei, tiveram sempre, mais do que o direito, o dever de pedir, com confiança filial, ao legislador a ab-rogação da própria lei, quando ela se demonstra ser nociva”.

E como o Novus Ordo era “nocivo”, a ponto de fundamentar um verdadeiro “dever” de pedir a sua ab-rogação, os dois cardeais diziam sem rodeios: o novo rito da Missa “representa, tanto no seu conjunto como nos seus pormenores, um afastamento impressionante da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na sessão XXII do Concílio de Trento”.

A “Mediator Dei”

Este “afastamento da teologia católica da Santa Missa” tinha já sido apontado e reprovado por Pio XII no movimento litúrgico que precedeu o Concílio Vaticano II. Na “Mediator Dei” (1947), escrevia o Papa: “Nós notamos com muita apreensão que alguns são demasiado ávidos de novidades e se afastam do caminho da são doutrina e da prudência. Na intenção e no desejo duma renovação litúrgica, eles interpõem freqüentemente princípios que, na teoria ou na prática, comprometem esta causa santíssima, e muitas vezes até a contaminam de erros que afetam a fé e a doutrina ascética“.

Com esta Encíclica, Pio XII se propunha “afastar da Igreja” “falsas opiniões… inteiramente contrárias à santa doutrina tradicional“, “erros que afetam a fé católica e a doutrina ascética“, “exageros e desvios da verdade que não se harmonizam com os preceitos autênticos da Igreja“… opiniões, erros, exageros, desvios, que são a alma da “reforma litúrgica” de Paulo VI e das suas múltiplas realizações que, chegando mesmo às vezes além da letra, se situam, não obstante, no “espírito do Concílio” e do Novus Ordo (como o demonstra também o fato de que eles não são objeto de nenhuma sanção disciplinar).

Uma “ruptura formal e violenta”

Na Mediator Dei Pio XII lembra antes de tudo o princípio fundamental da Liturgia: “Se queremos distinguir e determinar de modo geral e absoluto as relações que ligam unem Fé e Liturgia, pode-se afirmar com razão que a lei da fé deve estabelecer a lei da oração” (legem supplicandi lex statuat credendi): “Toda a liturgia tem, portanto, um conteúdo de fé católica, enquanto que ela atesta publicamente a fé da Igreja: ela é “uma contínua profissão de fé católica“. Por conseguinte, as cerimônias, com as quais a Igreja orna o Sacrifício de Cristo “conservam a religião e distinguem os verdadeiros cristãos dos falsos cristãos e dos heterodoxos“.

Mas eis que, 18 anos apenas depois da sua promulgação, a “reforma litúrgica” de Paulo VI dá à liturgia um novo “princípio e fundamento”: “A oração da Igreja não deve ser um motivo de constrangimento para ninguém” e, portanto, é preciso “arredar toda a pedra que poderia constituir qualquer sombra de risco de tropeço ou de desprazer para os nossos irmãos separados” (art. do Osservatore Romano de 19 de março de 1965, com a assinatura do Pe.  Aníbal Bugnini, membro eminente do “Consilium” que então elaborava o Novus Ordo Missae e a revisão de todos os ritos litúrgicos) 1. Portanto, não é mais “a lei da fé que deve estabelecer a lei da oração”, mas a lei da oração deve ser estabelecida pela intenção “ecumênica”; e doravante a lei da liturgia testemunhará publicamente, não mais a fé da Igreja, mas o forte desejo “ecumênico” dos homens da Igreja.

Todo o Novus Ordo aí está para provar esta “ruptura formal e violenta contra as regras que, até o Vaticano II, tinham guiado o culto católico2, a partir de seu princípio fundamental: “A lei da fé deve estabelecer a lei da oração”. A conseqüência (é preciso dizer, pretendida?) disto foi que os novos ritos litúrgicos não “conservam a religião” nem “distinguem mais os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos” (Mediator Dei, cit). 

Uma “trágica necessidade de optar”

Uma vez colocada na base da “nova liturgia” a intenção ecumênica, eliminaram-se cuidadosamente dos ritos litúrgicos, mesmo com o conselho de seis “observadores” protestantes, os “motivos de constrangimento“, e toda “pedra” e mesmo “risco de escândalo” para os assim chamados “irmãos separados“, a começar por “toda essa abominação que se chama Ofertório” (Lutero) que foi integralmente eliminado. O resultado desta “feroz amputação litúrgica que se fez passar por reforma” (Guido Ceronetti La Stampa 18 de julho de 1990) foi, inevitavelmente, um rito que não era mais católico, mas protestantizado, “uma missa recortada, reduzida a dimensões protestantes“, como a definiu Julien Green, convertido do protestantismo (O que é preciso de amor ao homem).

Isto não perturbou, mas pareceu satisfazer os “reformadores” cuja preocupação — nos atesta Bugnini — tinha sido promover o que “teria podido ser útil espiritual e psicológicamente à união3. “A reforma litúrgica deu um passo notável avante no domínio ecumênico e se aproximou das formas litúrgicas da Igreja luterana”, informava o Osservatore Romano a 13 de outubro de 1967. Caberá aos cardeais Ottaviani e Bacci apresentar o reverso lógico da medalha: e por isto mesmo “o novo rito representa, no seu conjunto como nos seus pormenores, um afastamento impressionante da teologia católica da Santa Missa“. É impossível avançar ao mesmo tempo em duas direções opostas.

Na realidade, o problema posto pelo Novus Ordo à consciência católica não é um problema de nostalgia romântica para com o antigo rito, mas um problema de fé: “É evidente que o “Novus Ordo” não quer mais representar a fé [do Concílio] de Trento. Não obstante, a consciência católica está ligada para sempre a esta fé… O verdadeiro católico está, portanto, colocado pela promulgação do “Novus Ordo”, numa trágica necessidade de opção” (Breve exame crítico, cit.). A “fé de Trento“, de fato, não é outra senão a “antiga fé fundada sobre o Santo Evangelho, as tradições dos Apóstolos e a doutrina dos Santos Padres” (D. 9471), e isto basta para justificar a recusa dum Novus Ordo Missae que “se aproximou das formas litúrgicas da Igreja luterana” (Osservatore Romano, cit.) e “não quer mais representar a fé de Trento” (Breve exame crítico, cit.).

A sombra de Lutero sobre a “reforma” de Paulo VI

Na Mediator Dei, Pio XII escreve: “Há, com efeito, …, pessoas que aproximando-se de erros condenados outrora [pelo Concílio de Trento],ensinam hoje que, no Novo Testamento, a palavra “sacerdócio” designa unicamente as prerrogativas de todo aquele que foi purificado no banho sagrado do batismo… é porque eles pretendem que o povo goza dum verdadeiro poder sacerdotal, e que o sacerdote age somente como um funcionário delegado pela comunidade: por causa disto, pensam que o sacrifício eucarístico é, no sentido próprio, uma “concelebração” e que os sacerdotes deveriam “concelebrar” com o povo presente, de preferência a oferecer o sacrifício em particular sem o povo… Outros afirmam que os sacerdotes não podem oferecer a vítima divina ao mesmo tempo em diversos altares porque assim eles dissociam a comunidade e põem em perigo a sua unidade”; outros “chegam mesmo ao ponto de crer necessária a confirmação e a ratificação do Sacrifício pelo povo para que ele possa ter a sua força e sua eficácia“. Contra estes erros, que foram já os de Lutero, Pio XII repete a fé católica, a “ [do Concílio] de Trento“: “o sacerdócio exterior e visível de Jesus Cristo se transmite, na Igreja, não de modo universal, geral e indeterminado, mas é conferido a indivíduos escolhidos com a geração espiritual da Ordem, um dos sete sacramentos“. É por isso que o padre “vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a Ele, mas superior ao povo“. Quando “se diz que o povo apresenta a sua oferenda juntamente com o padre“, quer-se dizer apenas “que ele une suas preces de louvor, súplica, expiação e agradecimento à intenção do sacerdote, digamos mesmo do próprio Sumo Sacerdote“.

Pio XII opõe também à condenação das Missas “particulares” a “fé de Trento“: o Santo Sacrifício da Missa “tem… da parte da sua natureza intrínseca, uma função pública e social… quer os fiéis a ele assistam, quer não, pois não se requer de modo nenhum que o povo ratifique o que faz o ministro sagrado“.

É evidente que o Novus Ordo Missae com o “povo de Deus reunido […] para celebrar [sic] o sacrifício Eucarístico” (Institutio, artigo 7o. revisto e corrigido!), com o sacerdote reduzido ao papel de “presidente” da assembléia (ibid. no. 7) e, portanto, virado para o povo (ibid. no. 271); com a consagração tornada, não simplesmente uma mera “narração“, mas também uma “prece presidencial” (ibid. no. 10), consagração que, portanto, deve ser dita “em voz alta e inteligível” (ibid. no. 10 e 11); com o povo que, após a consagração, não adora mais em silêncio, mas ratifica, em voz alta, o Mysterium Fidei; com o favor concedido às concelebrações, que aumentam talvez o número de participantes da “comunidade”, mas que diminuem certamente o número das “missas particulares” é evidente — dizíamos nós — que um talOrdo Missae “representa… um afastamento impressionante da teologia católica da Santa Missa” (Breve exame crítico, cit.) e a aceitação destes deslizes protestantes já condenados por Pio XII na encíclica Mediator Dei. 

Uma “refeição de comunidade fraterna”

Intimamente ligada à heresia do “sacerdote presidente” e do “povo celebrante” está a pretensa “absoluta necessidade que os fiéis se nutram da Refeição Eucarística ao mesmo tempo que o sacerdote“.

Com este objetivo — escreve Pio XII — os modernistas “afirmam capciosamente que não se trata só dum Sacrifício, mas dum sacrifício e duma refeição de comunidade fraterna, e fazem da Santa Comunhão, realizada em comum, o ponto culminante de toda a celebração“. Aí também — adverte Pio XII — está uma outra “nova e falsa doutrina de Lutero“, que o Concílio de Trento, “fundando-se na doutrina conservada na tradição ininterrupta da Igreja“, condena assim: “Quem diz que as missas nas quais só o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas e, portanto, devem ser ab-rogadas, seja excomungado“. A Santa Comunhão, com efeito, “é absolutamente necessária ao ministro sacrificador, e somente se deve recomendar vivamente aos fiéis“. Na Mediator Dei não falta, igualmente, a condenação da outra pretensa “necessidade”, a saber, que o povo comunga com hóstias consagradas nesta mesma missa, pretensão com a mesma raiz herética que a precedente: mesmo se “se comunga… com hóstias consagradas precedentemente [quando se comunga antes da missa]… o povo participa regularmente do Sacrifício Eucarístico“. E, estas duas pretensas “necessidades” condenadas por Pio XII na base da “fé de Trento”, foram acolhidas pela “reforma litúrgica” de Paulo VI, e a segunda — a de comungar com hóstias consagradas na mesma Missa (v. art. 55 da constituição sobre a Santa Liturgia — foi estigmatizada com ironia pelo escritor Tito Cassni, ao falar sobre o “Jesus fresco” e o “Jesus dormido” 4 

O ativismo litúrgico

Da heresia do “sacerdote presidente” e do “povo celebrante” nascem também as “falsas opiniões” sobre a participação “ativa” dos fiéis à Santa Missa. Pio XII louva os que enconrajam esta participação ativa com cantos, respostas ou pondo “nas mãos do povo o ´Missal Romano´“, mas ele precisa que “estas maneiras de participar do Sacrifício… não são necessárias para constituir o caráter público e comum“. Ademais, adverte muito sabiamente que “o espírito, o caráter e a natureza dos homens são tão variados e diferentes que nem todos podem ser igualmente impressionados e dirigidos por preces, cantos ou ações santas realizadas em comum. Além disso, as necessidades das almas não são iguais para todos, nem permanecem as mesmas em cada indivíduo“. Pode-se, portanto, participar frutuosamente do próprio Sacrifício “dum modo que parece a alguns mais fácil como, por exemplo, meditando plenamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora diferentes na forma, dos santos ritos, contudo correspondem a estes pela sua natureza[por exemplo, a meditação dos mistérios dolorosos]”. Mesmo nisto a “reforma litúrgica” de Paulo VI, para a qual a “participação ativa” dos fiéis é sobretudo um fato exterior em detrimento da devoção interior que, portanto, baniu qualquer outra forma de devoção (especialmente o Santo Rosário), se coloca claramente contra a Mediator Dei, na trilha das “falsas opiniões” condenadas por Pio XII. É preciso, ademais, dizer que, diante da sabedoria pastoral do Papa Pacelli, o “caráter pastoral” da “reforma litúrgica” de Paulo VI, que arregimenta os fiéis sem ter em conta as exigências pessoais, por isto mesmo se revela o que é: um simples pretexto de fachada.

O panliturgismo

A condenação de Pio XII se estende às “novas teorias sobre a ‘piedade objetiva’, as quais… quereriam negligenciar ou atenuar a ‘piedade subjetiva’ ou pessoal pela qual alguns.. pensam que devem negligenciar as outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto público“. Pelo contrário “a obra da redenção […] requer o esforço íntimo de nossa alma” e, portanto, antes de tudo, a nossa participação pessoal ou “subjetiva“; e, por isso, os “exercícios de piedade não estritamente litúrgicos… são, não apenas eminentemente louváveis, mas necessários“, porque nos “dispomos a participar com as melhores disposições do augusto Sacrifício do altar, a receber com maiores frutos os Sacramentos” (aquilo em que consiste essencialmente a “participação ativa” na vida litúrgica). entre estes exercícios de piedade, Pio XII assinala e recomenda a meditação, o exame de consciência, os retiros espirituais, assim como “outros exercícios de piedade que, embora não pertencendo de estrito direito à Santa Liturgia, revestem de uma importância e dignidade particulares, de sorte que podem ser considerados como inseridos, de algum modo, na ordenação litúrgica”. Tais são os meses de maio, de junho, “os tríduos e as novas, a ‘Via Sacra’ e outros semelhantes”. Eles excitam também os cristãos à freqüência dos Sacramentos e do Santo Sacrifício e, portanto, “quem ousasse temerariamente reformar estes exercícios de piedade para os constranger a entrar somente nos esquemas litúrgicos faria, portanto, uma coisa perniciosa e totalmente errônea” (1305).

Neste ponto também, a “reforma” de Paulo VI marcou o triunfo das “novas teorias” condenadas por Pio XII com o panliturgismo e o menosprezo das “outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto público“; e, portanto, esta “reforma” bem merece os qualificativos de “perniciosa” e “temerária” que lhe tinha dado Pio XII por antecipação.

Os “frutos envenenados” dos “ramos infectados”

Pio XII previu também os ataques contra o “culto eucarístico de adoração distinto do santo sacrifício“, com as “visitas dos divinos tabernáculos, as bençãos do Santíssimo Sacramento, as procissões solenes nas aldeias e cidades“, as “quarenta horas“, a adoração noturna, etc, práticas todas questionadas, se não eliminadas com a “reforma litúrgica” de Paulo VI.

Pio XII pressentiu as ameaças contra a devoção a Maria e a prática salutar da confissão. Daí o grito de alarme lançado aos Bispos: “não permitais — como alguns pensam sob a escusa duma renovação da Liturgia, ou falando com leviandade duma eficácia e dignidade exclusiva dos ritos litúrgicos — que as igrejas sejam fechadas nas horas não destinadas às funções públicas, como já acontece em certas regiões; que se negligencie a adoração e a visita ao Santíssimo Sacramento; que se desaconselhe a confissão dos pecados feita somente com o fim de devoção; que se negligencie, especialmente na juventude, até o ponto de o enfraquecer, o culto da Virgem Mãe de Deus, culto que é, como dizem os Santos, um sinal de predestinação.

“São estes os frutos envenenados, inteiramente nocivos à piedade cristã, que nascem dos ramos infectados duma árvore sã; é, portanto, necessário cortar estes ramos para que a seiva da árvore possa nutrir somente frutos agradáveis e excelentes”.

A “reforma litúrgica” de Paulo VI, pelo contrário, parece ter-se atribuído precisamente a tarefa de cultivar apenas os “ramos infectados” do movimento litúrgico e, há trinta anos, o povo cristão se alimenta com os seus “frutos envenenados“, perdendo a fé e pervertendo a moral.

A exaltação de Cristo glorificado e o escondimento de Cristo sofredor

Na “Mediator Dei“, Pio XII condena “proposições e iniciativas deploráveis” que “tendem a paralisar a ação santificadora” da Liturgia.

Entre outras, o Papa Pacelli assinala as “proposições e iniciativas deploráveis” “daqueles que utilizam a língua vulgar na celebração do Sacrifício Eucarístico” indiferentes ao fato de que “o uso da língua latina… é… um antídoto eficaz contra qualquer corrupção da pura doutrina; daqueles que transferem para outras datas, festas fixadas outrora por razões bem ponderadas. dos que querem restituir ao altar a antiga forma de mesa; dos que querem excluir dos templos [=das igrejas] as imagens de santos, dos que querem eliminar dos paramentos litúrgicos a cor preta; dos que desejam apagar, na representação do Redentor crucificado, as dores implacáveis que Ele sofreu“. Não é necessário demonstrar que estes propósitos e iniciativas deploráveis foram todos postos em ação com a “reforma litúrgica” de Paulo VI. 

Pio XII volta a falar longamente sobre o último ponto: o escondimento da Paixão (tema desagradável ao hedonismo moderno) e a exaltação da Ressurreição. “Ousam afirmar — escreve — que não se deve fixar a mente no Cristo histórico, mas no Cristo “pneumático e glorificado” e não se duvida em afirmar que se verificaria [no tempo] uma mudança na piedade dos fiéis… ocultando o Cristo glorificado” e, portanto, “se chega mesmo a querer tirar das igrejas as imagens do Divino Redentor sofrendo na Cruz“. E eis a condenação: “estas falsas opiniões são totalmente contrárias à sã doutrina tradicional“; porque a Paixão é o “mistério principal donde provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica pô-lo em evidência plena, por ser ele como que o centro do Culto divino, sendo o Sacrifício Eucarístico a sua representação e renovação quotidianas, com todos os sacramentos reunidos à cruz por meio dum vínculo estreitíssimo.” 

A emancipação da liturgia diante da autoridade: “criatividade” e “experiências litúrgicas”

Do princípio fundamental “a lei da fé deve estabelecer a lei da oração” — relembra Pio XII na Mediator Dei — decorre logicamente a autoridade exclusiva da Santa Sé em matéria litúrgica. Visto que “a pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta disciplina“, “não é possível deixar ao arbítrio de pessoas em particular, mesmo se fossem membros do clero, as coisas santas e veneráveis… o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo e do culto divino“.

Somente o Sumo Pontífice” tem o direito de legislar em matéria litúrgica. Os Bispos têm o dever de velar pela pontual observância das leis litúrgicas. Disto, que é “seu direito em matéria litúrgica, a Igreja se serviu para proteger a santidade do culto contra os abusos temerariamente introduzidos pelas pessoas em particular e por igrejas particulares [=Dioceses]. Acontece assim que os usos e hábitos deste gênero se multiplicaram durante o século XVI e as iniciativas particulares puseram em perigo a integridade da fé e da piedade para grande vantagem dos hereges e propaganda dos seus erros […] Sisto V instituiu em 1588 a Congregação dos Ritos, órgão ao qual cabe sempre atualmente ordenar e escrever com cuidado tudo o que concerne à Santa Liturgia“.

Portanto, em conclusão, Pio XII exorta os Bispos a velarem nas suas Dioceses “porque tudo se realize com a ordem e a dignidade necessárias e que a ninguém seja permitido, mesmo a um sacerdote, de se servir dos edifícios sagrados para experiências arbitrárias“.

Neste ponto também, não é necessário demonstrar que a “reforma” de Paulo VI se introduziu ousadamente no desvio condenado por Pio XII, com o resultado de que hoje, em nome da “criatividade”, o culto litúrgico está ao “arbítrio” não apenas das “igrejas particulares”, mas das pessoas “em particular”, não só dos membros do clero, mas até dos leigos!

Deste modo o que não fez diretamente a “reforma” de Paulo Vi fizeram-no e continuam sempre a fazê-lo as “iniciativas privadas“, em nome da “criatividade”, introduzida por esta “reforma”, pondo, ainda uma vez, “em perigo a integridade da fé e da piedade para grande vantagem dos hereges e para a propaganda dos seus erros“, e, antes de tudo, do erro protestante duma “religião sem autoridade”, inclusive em matéria litúrgica.

O precursor da “reforma litúrgica” de Paulo VI: o movimento litúrgico

Se, na Mediator Dei, encontramos a condenação antecipada da “reforma litúrgica” de Paulo VI, é porque esta é responsável por estas “falsas opiniões“, “exagerações e deformações da verdade“, estes “erros que afetam a fé católica e a doutrina ascética” que já se insinuavam no movimento litúrgico e que Pio XII, com a Mediator Dei, teria querido afastar da Igreja. O arcebispo de Friburgo-em-Brigau, D. Conrado Gröber, tinha denunciado, desde 1943, os perigos deste movimento litúrgico num “memorandum ao episcopado alemão”. O movimento litúrgico — denunciava — abre um sulco entre progressistas e conservadores, inclusive no clero; ele desliza em direção dos erros dos protestantes; despreza a escolástica e simpatiza com as falsas filosofias modernas; critica, sob o pretexto dum retorno às origens, tudo o que nos transmitiram os séculos passados, como se o progresso secular dogmático litúrgico, sob a conduta do Espírito Santo, tivesse deformado arbitrariamente tudo; ele revela a influência dos protestantes, especialmente de Karl Barth [ídolo da “nova teologia”!]; ele se abre inconsideravelmente às seitas para “reconstruir” a unidade da Igreja [que jamais se dividiu, pela graça de Deus!]; concebe, como os protestantes, a Igreja mais como um organismo invisível [no qual se possam englobar também as seitas] que como uma sociedade hierárquica visível [da qual as seitas são claramente excluídas]; ele favorece uma nova falsa “mística” (o carismatismo); faz ressaltar o “sacerdócio comum dos fiéis” em detrimento do sacerdócio ministerial do Clero; considera a liturgia como a panacéia universal (panliturgismo); ele libera as celebrações litúrgicas de toda a norma autoritária e obrigatória, condenando estas normas e qualificando-as de “rubricismo”; exige a Missa em língua vulgar que é o fundo comum necessário de todas as heresias.

Os perigos denunciados pelo Arcebispo de Friburgo-em-Brisgau, em 1943, são hoje uma triste realidade.

De fato, no último Concílio defrontaram-se dois movimentos: o movimento litúrgico e o movimento marial, tendendo este último a “desenvolver a originalidade católica‘ em face do mundo protestante e, portanto, na linha do Concílio de Trento; o primeiro, o litúrgico, tendente, como todos os movimentos de “aggiornamento” (=”atualização), a “acabar” com a contra-reforma para se abrir aos “irmãos separados” 5. No pós-Concílio, é um discípulo de Rahner6 que confessou ter sido o movimento litúrgico, na realidade, um dos numerosos movimentos surgidos para se libertar do jugo do “sistema romano“.

A “reforma litúrgica” marcou o triunfo deste movimento litúrgico insensato com todas estas infiltrações protestantes identificadas e condenadas por D. Gröber e depois por Pio XII na Mediator Dei. 

Filha da desobediência ao Magistério Romano.

Pio XII conclui sua Encíclica advertindo os promotores da renovação litúrgica a “deduzirem sua maneira de pensar e agir da doutrina cristã conforme os mandamentos da Imaculada, Esposa de Jesus Cristo e Mãe dos Santos” e fazendo-lhes um apelo a uma “obediência generosa e fiel“.

De fato, a “reforma litúrgica” de Paulo VI, como todo o curso eclesial atual, é filha duma longa desobediência à Igreja e ao Magistério dos Pontífices Romanos. E que não se diga — como o fez Paulo VI — que o “Papa de hoje” tem a mesma autoridade que o “Papa de ontem”. A contradição, na realidade, não está entre Pacelli e Montini; ela está entre a “Fé de ontem” e a “Fé de hoje”, que não deveria ser, também, diferente da Fé de sempre. Os Papas têm a mesma autoridade no que concerne aos fatos puramente disciplinares, cuja oportunidade pode mudar com as circunstâncias (e também nisto os Papas não podem exercer o seu poder caprichosamente), mas, quanto à fé e no que de algum modo a afeta (e a liturgia mais que qualquer outra coisa), eles têm a mesma autoridade para defender e explicar fielmente o “depósito da Fé“. E, do mesmo modo, os Papas não têm nenhuma autoridade para aprovar o que, direta ou indiretamente, o põe em perigo (o depósito da Fé): “Nós não temos nenhum poder contra a Verdade, mas ao contrário, pela Verdade” (São Paulo)

Fonte: Permanencia

  1. V. também A reforma litúrgica de Bugnini
  2. A. X. da Silveira “La nouvelle Messe de Paul VI, qu´en penser?” (335)
  3. A reforma litúrgica, cit.
  4. T. Casini La tunica stracciata[= a túnica dilacerada]
  5. E. Fouilloux. Movimentos teológicos espirituais e Concílioem “Na véspera do Vaticano II“, Lovaina 1992, pp. 188 e 198; v. também Sì sì no no de 30/09/1998 p. 5.
  6. H. Vormgrimler Karl Rahner verstehen(=Compreender Karl Rahner) p. 74 ss, citado em Sì sì no no de 15 de abril de 1998, p. 3.