JOÃO PAULO II, UM NOVO PAULO

Pe. Dominique Bourmaud – FSSPX

«Esperamos que a Providência conserve-nos por muito tempo a Paulo VI, mas o dia em que precisarmos de um Papa, eu já tenho o meu candidato: é Wojtyla. Só que isso é impossível, não tem a menor probabilidade!» — De Lubac 1.

De Lubac tinhas seus motivos para apoiar a eleição de um cardeal polonês, cuja eleição surpreendeu muitas pessoas. Durante o conclave, estava presente, obviamente, o cardeal primaz Wyszynski, que encarnava a Igreja dos mártires. Mas ele não era nenhum papabile, porque denunciava muito abertamente a Igreja pós-conciliar, uma Igreja cujo credo tornou-se elástico e cuja moral fez-se relativista, uma Igreja mergulhada na penumbra, uma Igreja que havia fechado os olhos diante do pecado. Por outro lado, o cardeal Wojtyla era moderno e, mais ainda, um modernista de fato e de direito. O arcebispo de Cracóvia apoiava a edição polonesa da revista Communio e, uma vez eleito Papa, não tardaria em promover ao cardinalato os seus três fundadores, Ratzinger, De Lubac e Von Balthasar, embora este último tenha vindo a falecer na véspera de sua entronização. 

O padre Meinvielle, em um livro memorável escrito em 1970 2, anunciava a formação de uma dupla Igreja: a Igreja da promessa, que professaria a fé incorruptível de seu Fundador, e a Igreja da propaganda, a serviço da gnose cristã e progressista. O mesmo Papa poderia, inclusive, presidir ambas as Igrejas. Professaria a doutrina imaculada da fé, mas em seus atos equívocos sustentaria a Igreja da propaganda. Este livro, escrito no tempo de Paulo VI, descreve-o admiravelmente. Sob o pontificado de João Paulo II, não é necessário dizê-lo, a duplicidade e o engano sobre o depósito revelado tornou-se algo comum em Roma. Depois de esboçar uma rápida biografia do Papa, estudaremos seu verdadeiro pensamento. Deste modo estaremos em melhores condições para definir a finalidade do seu pontificado: o estabelecimento da religião universal. Se Paulo VI foi qualificado simplesmente de novo Moisés, João Paulo II é melhor qualificado como um segundo São Paulo, mas de um novo tipo.

O caminho de Damasco 

Karol Wojtyla é um filósofo, um moralista para ser mais exato. Na medida em que sua filosofia segue a corrente existencialista, fica evidente que seu universo mental é muito diferente do pensamento de um realista. Seu sonho é reconciliar Kant com Santo Tomás, Scheler e Heidegger3. Sua visão, que pode ser considerada original, depende principalmente do existencialismo subjetivo e antropológico. João Paulo II é, sobretudo, um intelectual, ou melhor, um teórico. Argumenta a partir de princípios e não de experiências. Defendeu o documento sobre a liberdade religiosa no Concílio e opôs-se àqueles que queriam publicar uma condenação severa do ateísmo4. Para ele, o ateísmo deveria ser estudado, com a ajuda da sociologia e da psicologia, não como negação de Deus, mas sim como um estado de consciência da pessoa humana5. Ecumenista convicto, visitou vários vezes Taizé, esta comunidade de monges protestantes que ele queria usar como ponte ecumênica. 

São Paulo recebeu sua vocação no caminho para Damasco, quando ao cair de sua montaria, lançou-se aos pés de Cristo. João Paulo II teve uma conversão não menos fulminante, mas aparte disto bastante diferente. Foi em Roma, durante o Concílio. De fato, o Concílio ajudou-lhe a fazer a síntese de sua fé pessoal. O que entende por «fé pessoal»? Ele mesmo o explica: 

«A fé já não força a inteligência e nem a submete a um sistema de verdades já feitas»6. 

Em pleno debate conciliar, no ano de 1963, Wojtyla não parava de enaltecer os neomodernistas: 

«Em menos de quatro anos, a situação dentro da Igreja mudou de maneira incrível… Teólogos tão eminentes como Henri de Lubac, Jéan Daniélou, Yves Congar, Hans Küng, Ratzinger, Lombardi, Karl Rahner e outros, desempenharam um papel extraordinário naqueles trabalhos preparatórios. O objetivo de João XXIII era principalmente a unidade dos cristãos; foram dados passos gigantescos neste sentido. A Igreja está persuadida como nunca de que aquilo que une os cristãos é mais forte do que aquilo que os divide. A nostalgia da unidade dos cristãos toma corpo com a nostalgia da unidade de todo o gênero humano. O novo conceito de Povo de Deus tomou o lugar da antiga verdade sobre a possibilidade de uma redenção fora dos limites visíveis da Igreja. Este fato mostra a atitude da Igreja para com as outras religiões, baseada ao mesmo tempo no reconhecimento dos valores espirituais, humanos e cristãos, contidos em religiões tais como o islã, o budismo, o hinduísmo… A Igreja quer empreender um diálogo com os representantes destas religiões. E aqui o Judaísmo ocupa um lugar muito particular»7. 

Assis já era avistada no horizonte do espírito wojtyliano desde 1963! De Lubac mostra até que ponto Wojtyla estava imbuído do espírito globalista, uma vez que contribuiu para a redação do esquema da Igreja no mundo moderno e para o da liberdade religiosa. Graças a ele, talvez mais que a ninguém, Gaudium et spes, depois de suas numerosas vicissitudes, salvou-se da suspensão em um momento em que muitos começavam a perder esperanças de conseguir impô-la. Com a mesma amplitude de visão, abordou com interesse e vigor os dois grandes temas do ecumenismo e da liberdade religiosa8. 

Eleito Papa em 1978, manter-se-á fiel aos seus amigos e mestres. Em 1981, centenário do nascimento de Teilhard, o Secretário de Estado enviou em nome do Santo Padre uma carta que aclamava «a maravilhosa repercussão das investigações de Teilhard, este homem cativado por Cristo no mais profundo do seu ser, solícito em honrar ao mesmo tempo a fé e a razão, respondendo deste modo, quase com antecipação, ao chamado de João Paulo II: “Não tenhais medo, abri de par em par as portas a Cristo, abri os imensos espaços da cultura, da civilização e do desenvolvimento”» 9. 

Em 1984 enviou felicitações pessoais a Rahner antes da sua morte, como também a Von Balthasar. Em sua visita à França em 1980, comprometeu-se em honrar particularmente seus amigos franceses Yves Congar e Jacques Maritain, o defensor da liberdade religiosa. Enviou dois telegramas na morte do «venerado cardeal De Lubac… recordando o longo e fiel serviço realizado por este teólogo, que soube reunir o melhor da tradição católica em sua meditação sobre a Igreja e o mundo moderno [a Gaudium et spes ]… Com o correr dos anos, cheguei a apreciar vivamente a vasta cultura, a abnegação e a honestidade intelectual que fizeram deste religioso exemplar um grande servidor da Igreja, especialmente durante o Concílio Vaticano II» 10. 

As afeições do Papa dirigem-se também aos pioneiros da teologia da libertação, entre outros ao comunista brasileiro Helder Câmara. Mas João Paulo II manifesta o favoritismo do seu coração principalmente ao nomear Ratzinger como defensor titular da Doutrina da Fé. Ora, Ratzinger pratica a técnica da corda11: graças a ele, todo um regimento de teólogos modernizantes controla o Magistério da Igreja. Como duvidar da orientação que o Papa impõe à Igreja quando tudo alinha-se a ele? 

A glória do homem 

Seria enfadonho querer definir o pensamento dogmático de João Paulo II a partir das suas intermináveis encíclicas. Freqüentemente parece difícil compreender o Papa, porque é literalmente «complicado», no sentido de ser fechado e aberto em si mesmo, simultaneamente. O leitor que acredita que o Papa fala para todos engana-se enormemente. Ao contrário, a mensagem wojtyliana está escrita em forma enigmática, para que somente os iniciados possam compreendê-la. Dizendo de outra forma, ele toca sua melodia em dois registros diferentes: um ortodoxo e outro modernista. São Pio X denunciou as táticas modernistas de misturar o racionalista com o católico. Nas grandes encíclicas não é difícil ilustrar o uso de uma terminologia de duplo sentido que permite uma leitura ambígua, tradicional e modernista ao mesmo tempo12. Por isso usaremos um texto inequívoco, datado de 1976, quando ainda era cardeal e pregou um retiro ao Papa Paulo VI e aos membros da Cúria, comentando alguns textos conciliares no sentido neoteológico. Estava em família e não tinha nenhum motivo para cuidar para não desagradar os conservadores. Dez anos antes do encontro de Assis, este retiro revela-se como a perfeita introdução doutrinal desta reunião. Dois textos ilustrarão nosso propósito. O primeiro explica a noção de Deus, e o segundo a tese da redenção universal. 

«O homem possui o conceito de infinitude. Emprega-o em seu trabalho científico, por exemplo, na ciência matemática. Assim, pois, a infinitude encontra nele, em sua inteligência, o espaço adequado para aceitar Aquele que é Infinito, o Deus de imensa majestade, Aquele de quem a Sagrada Escritura e a Igreja dão testemunho dizendo: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos exércitos! Os céus e a terra estão cheios de Vossa glória!.” A este Deus confessa o monge trapista ou o camaldulense em sua vida de silêncio. A Ele dirige-se o beduíno no deserto quando chega o momento da oração. E talvez também o budista que, concentrado em sua contemplação, purifica o pensamento preparando o caminho para o nirvana. Deus em sua transcendência absoluta, Deus que transcende absolutamente todo o criado, tudo o que é visível e compreensível»13. 

O outro texto comenta o Concílio. 

«Segundo essas palavras [Gaudium et spes, 10], o nascimento da Igreja na cruz, no momento da morte messiânica e redentora de Cristo, foi também substancialmente o nascimento do homem, de cada homem e de todos os homens; do homem que, saiba-o ou não, aceite-o ou não na fé, passa a uma nova dimensão de sua existência, concisamente expressa por São Paulo com a fórmula “em Cristo”14. O homem existe “em Cristo”, e existiu deste modo desde o princípio no eterno desígnio de Deus; mas por meio da morte e da ressurreição, esta “existência em Cristo” tornou-se um fato histórico, radicado no tempo e no espaço»15. 

A partir destas idéias do cardeal Wojtyla, podemos formar uma pequena visão do universo mental do Papa João Paulo II. Se após sua conversão, São Paulo procurou submeter sua inteligência e sua vontade a Cristo crucificado, João Paulo II, porém, constitui-se doutor da religião que glorifica o homem e somente o homem, fazendo que tudo emane da própria consciência do homem. O passado filosófico de Wojtyla revela-se nos textos pontifícios pela linguagem kantiana ou hegeliana e pelas teses existencialistas que formam o enredo de seu pensamento. Com efeito, tudo gira em torno da consciência — a «autoconsciência», o alfa e o ômega do conhecimento, da realidade e da fé, de acordo com seus próprios escritos — . Para ele,  «conhecer é referir-se, seja para nossas experiências exteriores, seja para nosso mundo interior no qual nos reconhecemos como seres morais ou religiosos. Como um homem conhece as questões religiosas referindo-se às suas categorias interiores, a fé é a relação que se estabelece entre seu impulso interior e o “Tu” absoluto. Na busca da fé já há uma fé implícita e cumpre-se a condição necessária para a salvação»16. «Na verdade, este profundo estupor com respeito ao valor e à dignidade do homem chama-se Evangelho, quer dizer, Boa Nova»17. 

Fundado na consciência pessoal e subjetiva, todo o sobrenatural fica reduzido ao nível do natural na encíclica Redemptor hominis, que dará o tom do pontificado de João Paulo II. A Revelação divina é simplesmente o homem que se revela ao homem; a redenção de Cristo justificou a todos os homens automaticamente pelo único fato de fazê-los tomar consciência de sua dignidade; o pecado não é mais que uma incoerência da consciência; a liberdade, fruto da consciência e fundamento da dignidade humana, é inviolável até mesmo em matéria de religião; a Igreja de Cristo identifica-se perfeitamente com a humanidade18; a Igreja romana deve ser mediadora para o advento da fraternidade universal; o diálogo é necessário para encontrar a unidade ainda que seja à custa da verdade. A modo de exemplo, bastarão alguns trechos para ilustrar este giro antropocêntrico de João Paulo II: 

«Por meio da encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem… o Cristo Redentor revela plenamente o homem ao próprio homem… Cada homem foi compreendido no mistério da redenção, e com cada um uniu-se o Cristo para sempre» 19. «O misterioso pecado original é a fonte da debilidade que se denomina pecado, pela qual o homem tende a viver de maneira incoerente com sua dignidade» 20. «A liberdade religiosa constitui o coração mesmo do direito humano. É tão inviolável que exige que os demais reconheçam a liberdade de mudar de religião se a própria consciência assim o reclama» 21. «O Concílio ecumênico deu um impulso fundamental para formar a autoconsciência da Igreja, dando-nos de modo tão adequado e competente a visão do orbe terrestre como um “mapa” de várias religiões»22. «A Igreja é “em Cristo” como “um sacramento, isto é, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”»23. «[A unidade é] um crescimento que deveria ir ao mesmo ritmo que a superação de nossas divisões, que procedem em grande parte da ideia de que se possui o monopólio da verdade»24. 

Esta teologia do Papa é exatamente a mesma que a do «cristão anônimo». Ora, afirmar a salvação incondicional de todos os homens é destruir completamente os princípios da moral cristã. Se todos os homens já estão salvos, para quê preocupar-se? Por que não abandonar-se ao laxismo do «peca com força, mas crê ainda com mais força»25? A maior gravidade do problema, porém, está no fato de que o dogma é corrompido radicalmente, uma vez que impõe a condição: se acaso o inferno existe, certamente está vazio. Se a salvação não depende da fé e do batismo, para quê serve a Igreja? Como podemos ver, já encontramos os pontos cardeais do pensamento do Papa em outra parte deste nosso estudo. Os erros, as idéias confusas, os pontos de doutrina discutíveis são só alguns pedaços de gelo que emergem aqui e ali das profundezas do mar em que se acha o iceberg. Qual é o pensamento compacto e unificado que se esconde por baixo disto? Quem poderá decifrar com segurança o enigma que atormenta mais do que um teólogo católico, assustado de ver sair das profundezas do pensamento papal estes depósitos de heterodoxia? A pergunta está aberta, mas de agora em diante, com o que já vimos sobre os neomodernistas precedentes, tudo nos leva a pensar que, apesar das divergências menores, existe uma comunhão de pensamento entre eles e o Papa. Nota-se principalmente uma convergência de pontos de vista entre João Paulo II e Rahner, ambos antigos existencialistas. Compreender Karl Rahner é entender as mudanças do Concílio, é entender o pensamento de Ratzinger e — será muito arriscado dizê-lo? — penetrar completamente o pensamento do Papa. Alguns textos, comparados com os do príncipe do neomodernismo, são pelo menos inquietantes, como a seguinte passagem: 

«Mediante este “humanar-se” do Verbo-Filho, a autocomunicação de Deus alcança sua plenitude definitiva na História da criação e da salvação. Esta plenitude adquire uma especial densidade e eloqüência expressiva no texto do Evangelho de São João: “O Verbo se fez carne”26. A encarnação do Filho de Deus significa assumir não só a unidade da natureza humana com Deus, mas também assumir nesta natureza humana, de certo modo, tudo o que é “carne”: toda a humanidade, todo o mundo visível e material. A encarnação, portanto, tem também um significado cósmico e uma dimensão cósmica. O “Primogênito de toda a criação”27, ao encarnar-se na humanidade individual de Cristo, une-se de certo modo com toda a realidade do homem, que também é “carne”28, e nela com toda a “carne” e com toda a criação»29. 

Para um católico, a doutrina de João Paulo II pode parecer incompreensível ou contraditória, porque o Papa está profundamente imbuído das teses rahnerianas. Não obstante, as circunstâncias obrigam-no a introduzir seus pontos de vista em um conjunto que, por questões de prudência, não é apresentado de modo claro do alto da Cátedra romana. Por seus escritos e ações, o Papa revela-se como um modernista convicto, e as verdades de que talvez se valha não só estão adulteradas pelos erros, mas servem como máscara para difundir mais amplamente o erro. A verdade só está ali para servir ao erro — e ao horror — do nirvana modernista. Desgraçadamente, o sistema passa da teoria à prática: a criação de uma Superigreja sincretista. 

Do Areópago para Assis 

Todo o pontificado de João Paulo II pode ser resumido a uma única finalidade: a abertura urbi et orbi da Igreja católica às religiões, demolindo, assim, todas as muralhas erguidas por Nosso Senhor Jesus Cristo. Embora sua teologia antropocêntrica tenha se mantido incólume durante vários lustros, é necessário reconhecer que se manifestou sobremaneira nestes últimos anos30: o espetáculo de Assis com os hindus e índios apresenta um maior atrativo que as meditações abstratas sobre o cristão anônimo. De fato, o insulto ao Deus três vezes santo faz-se muito mais evidente. Assis é o reconhecimento oficial do paganismo. Roma sucumbe finalmente à velha tentação dos pagãos, que ofereciam alegremente a hospitalidade do Panteão a Cristo, e teriam dado direito de cidadania à religião católica sem ter que derramar sangue cristão31. É necessário demonstrar que o Panteão de Assis vai contra toda a tradição da Escritura e do Magistério? A História sagrada repete continuamente que Israel será próspero se rende culto ao seu Deus, e será castigado se ficar a favor dos falsos deuses, que são demônios32. São Paulo, ao falar dos fiéis de ritos pagãos com os quais tinha que tratar diariamente, diz que eles não têm desculpa33. Indigna-se quando vê a cidade de Atenas consagrada à idolatria34. Pio XI condena severamente os Congressos das Religiões por razões de Fé, porque [esses congressos] têm a pretensão de que todas as religiões são mais ou menos dignas de aprovação, uma vez que manifestam o sentido inato de todos os homens que se dirigem para Deus. Aqueles que têm tais opiniões não só erram e se enganam, mas também falsificam e rejeitam a ideia da verdadeira religião, e pouco a pouco caem no naturalismo e no ateísmo. De tudo isto se deduz claramente que qualquer um que sustente estas teorias e as coloque em prática, abandona pura e simplesmente a religião divinamente revelada35. 

O acontecimento mais dramático da reunião de Assis, convocada pelo Papa no dia 27 de Outubro de 1986, ocorreu quando o Dalai Lama colocou a estátua de Buda sobre um altar da igreja de São Pedro. Como o Papa justifica este escândalo, que os próprios protestantes condenaram como um pecado contra o primeiro mandamento e uma etapa para a religião sincretista mundial? O Papa responde: «É necessário compreender Assis à luz do Vaticano II!». O Vaticano II é, portanto, o que justifica a blasfêmia contra a glória de Deus. E o Papa explica que o ato de Assis fundamenta-se na obediência à consciência, quer dizer, na liberdade absoluta da consciência, seja qual for, católica, protestante ou budista. Assis baseia-se no mistério da unidade que já alcançaram ou estão a alcançar aqueles que se orientam para o Povo de Deus. Assis fundamenta-se, sobretudo, no leitmotiv wojtyliano da redenção universal: 

«Este radiante mistério da unidade criada do gênero humano e da unidade da obra salvadora de Cristo, que traz consigo o nascimento da Igreja como seu ministro e seu instrumento, manifestou-se claramente em Assis, apesar das diferenças entre as profissões religiosas, que não foram ocultadas e nem diluídas»36. 

Ora, a traição de Assis é uma inovação que inaugura o desfile ininterrupto das manifestações ecumênicas mais ou menos desordenadas. Reconheçamos que esta primeira reunião quase alcançou a perfeição de seu gênero. Porém, em outubro de 1999, o Papa conseguiu dar mais um passo repetindo Assis, mas desta vez diante da Basílica de São Pedro. A abominação da desolação aproxima-se cada vez mais do santuário. Depois de semelhantes manifestações de impiedade para com o Deus feito homem, o que se pode esperar senão o dilúvio, ou pior ainda, a destruição de Sodoma e Gomorra pelo fogo e sangue?

O apóstolo da religião universal 

São Paulo foi instituído pela graça de Jesus Cristo como o Apóstolo das nações. O Papa do bimilenário é um segundo Paulo. Quer ser também o apóstolo das nações, mas vai ainda mais longe. Faz-se o apóstolo de todas as religiões, em nome da natureza do homem autodivinizado. Deixando à margem os Congressos das Religiões, podem ser mencionadas também as visitas mais pessoais e não menos cordiais aos inimigos seculares da Igreja. Nesta dança ecumênica desenfreada todos têm algo a ganhar, com exceção da honra de Deus e da sua Igreja. Assim, temos as declarações de Frankfurt, onde o Papa foi como peregrino em busca da herança espiritual de Martinho Lutero (1980); a rejeição de todo proselitismo entre os ortodoxos de Dimitrios I de Istambul (1988) e os acordos de Balamand no Líbano (1993); a visita de uma sinagoga em Roma (1986) e várias recepções oficiais da B’nai B’rith, maçons judeus, no Vaticano; a imposição das cinzas sagradas vibhuti e do sinal do tilac, característico dos hinduístas adoradores de Shiva (1986); o abandono do Filioque negado pelos ortodoxos (1996); a bênção para a inauguração de uma mesquita em Roma; o beijo do «santo livro» do Alcorão (1999). E a lista aumenta ao longo das numerosas viagens do Papa, que vão no sentido inverso das viagens apostólicas de São Paulo, que pregava aos pagãos a conversão à fé católica: 

«Se vou percorrendo o mundo para encontrar homens de todas as civilizações e religiões, é porque tenho confiança nas sementes de sabedoria que o Espírito suscita nas consciências dos povos: delas brota o verdadeiro ressurgir para o futuro humano de nosso mundo»37. 

O mais terrível de tudo isso é que o espírito do Vaticano II, subjacente em Assis como nos assegura o Papa, preside também as grandes obras pontifícias. Roma está concluindo sua revolução cultural e desprezando os últimos indícios do passado. Tudo deve estar em sintonia com o espírito conciliar. O que Paulo VI ainda tinha deixado em pé deve adaptar-se ao espírito do Vaticano II. 

Em 1983 é aprovado o novo Código de Direito Canônico, que substitui o anterior, de São Pio X. Esse novo código ecumênico ratifica a eclesiologia protestante do «Povo de Deus», da Igreja de Deus que só «subsiste» na Igreja católica, que permite administrar a sagrada comunhão aos protestantes. É o Código da colegialidade episcopal, que democratiza a Igreja e praticamente paralisa o poder do Papa na Igreja. 

O mesmo espírito preside o novo Catecismo da Igreja católica de 1992, que o Papa apresenta como uma chamada afetuosa a todos os que não fazem parte da comunidade católica. Quer dar um novo impulso no caminho para a plenitude da comunhão, que reflete e em certa forma antecipa a unidade total da cidade celestial38. Seu amigo Schönborn adverte-nos que o texto chave do novo catecismo é o leitmotiv do Papa: «O Filho de Deus, por sua encarnação, uniu-se de certo modo com todo homem»39. 

Um avanço importante no diálogo ecumênico, que suprime todos os tabus, é a Declaração conjunta sobre a justificação, de 31 de outubro de 1999. A declaração repete as heresias blasfemas de Lutero contra Deus, que deixa o homem em um estado de justo e pecador ao mesmo tempo, e destrói a liberdade humana e o mérito das boas obras. O resultado de trinta anos de trabalho intenso é o «consenso diferenciado» e, portanto, segundo seu próprio testemunho, ambíguo e herético. A Igreja católica é equipada com as confissões luteranas, que são um fantasma de Igreja desprovida de unidade. A doutrina da verdade infalível, definida pelo Concílio de Trento, é amalgamada com as blasfêmias de Lutero. Quer-se, por fim, alcançar uma unidade em que as diferenças persistentes possam «reconciliar-se» e não tenham força para voltar a dividir-se. O cardeal Kasper, perfeito da Unidade dos cristãos, explica este giro ecumênico: 

«No lugar do antigo conceito de ecumenismo de “regresso”, hoje domina o de um itinerário comum que orienta os cristãos à meta da comunhão eclesial, entendida como uma unidade na diversidade reconciliada»40. 

Isto supõe voltar à heresia dos artigos fundamentais, que segundo Pio IX, altera completamente a constituição divina da Igreja. Pio XI, por sua vez, condenou a iníqua tentativa de negociações em que se põe em jogo a verdade revelada por Deus, porque se trata precisamente de defender a verdade revelada41. 

Por iniciativa do próprio Papa, outra pedra foi lançada, desta vez contra o primado do Romano pontífice, para destruir o Corpo místico da Igreja. Isto ilustra perfeitamente a «autodemolição da Igreja» que Paulo VI já mencionava em 1968. Em 1995, o Papa exortou Ratzinger a convocar um simpósio sobre o «primado do sucessor de Pedro» com alguns teólogos, conhecidos principalmente por suas difamações sobre a Igreja. Ratzinger já é conhecido por sua defesa das idéias teilhardianas. Monsenhor Penna, professor de exegese na Pontifícia Universidade Lateranense, repete a heresia de Loisy, que afirmava que Nosso Senhor nunca pronunciou as palavras: «Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja»42. Giuseppe Colombo não é menos categórico, uma vez que pede para mudar o papado tal como o instituiu Jesus Cristo. Por quê? Simplesmente porque não corresponde com a compreensão madura do Evangelho. Com semelhantes «especialistas», o simpósio sobre o primado do Papa deveria revisar as modalidades estabelecidas por Nosso Senhor e definidas infalivelmente pela Igreja no Concílio Vaticano I. Consequentemente, o ecumenismo compromete o Papa a vender o papado ao melhor comprador. Ora, há quatro séculos os Padres do Concílio de Trento denunciaram o abandono do papado como a raiz do protestantismo. Vale então a pena perguntar-se: Quem é protestante aqui? Quem está contra o Papa? Quem é o inimigo da Igreja? Mais que nunca, os fiéis têm o estrito dever de ser mais papistas que o Papa, e de defender verdadeiramente o papado resistindo ao Papa quando este não age «de acordo com a verdade do Evangelho»43. 

Pareceria que nada mais restava a ser sacrificado aos falsos deuses. Mas faltava ainda uma coisa: humilhar todo o passado da Igreja de Jesus Cristo, por temor que os nostálgicos recuperassem as esperanças investigando os gloriosos séculos da fé. A cerimônia de «arrependimento» do dia 12 de  março do ano 2000, celebrada pelo Papa, deveria preencher esta lacuna. Porém, é um ato muito perigoso. É confundir a instituição divina de Jesus Cristo, que é o Reino de Deus sobre a terra, com os homens da Igreja. É deixar que se acredite que a Igreja equivocou-se em matéria de fé e de costumes, e que deveria evoluir em suas crenças, destruindo assim toda sua credibilidade. É destruir a autoridade do Papa e desonrar a todos os católicos. Sobretudo, o fato de que a maior benfeitora da humanidade peça perdão pelo que é sua glória e seu dever estrito, constitui um enorme insulto para nossa Mãe comum: pedir perdão pela história das Cruzadas e pela Inquisição, por ter condenado Lutero e Calvino, por não ter caluniado a Pio XII, pelo fato de continuar promovendo bem ou mal a moral tradicional, e por defender o verdadeiro papel da mulher. Essas cerimônias penitenciais não fazem mais que liquidar a honra e todo o passado da Igreja, depois de ter vendido todo o resto. O que mais ainda poderá sacrificar o Papa para o Príncipe deste mundo? 

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O projeto do Papa não é nem a conversão nem o sincretismo, mas o «pluralismo legítimo», permitindo que todas as religiões ofereçam suas orações pela paz em profunda lealdade às respectivas tradições religiosas. Na verdade, este famoso «pluralismo legítimo» é só um eufemismo para designar o sincretismo religioso, ao qual se pode desculpar tão logo estiver concluído. Não  se pode legitimar o pluralismo dos credos, a não ser que se aceite, como único ponto de acordo, aquele impulso para o divino, que é o essencial da religião. Neste caso não resta dúvida de que Lúcifer, que desejou ser como Deus mais que qualquer outra criatura, é o mais religioso de todos44. A ideia que continua conduzindo os encontros inter-religiosos é a união moral das religiões, que supõe não privilegiar nenhuma das crenças. Isto destrói o exclusivismo e a veracidade da Igreja de Cristo. Mas é a própria definição da maçonaria, que diz ter uma moral e uma religião ricas pelo único fato de não ser exclusiva45. Católico, ortodoxo, protestante, israelita, muçulmano, hinduísta, budista, livre pensador, livre crente, etc., são somente nomes acumulados: o sobrenome é maçom46. Depois de Assis, as lojas maçônicas estão saltitantes de felicidade: 

«Nosso interconfessionalismo valeu-nos a excomunhão, recebida em 1738 da parte de Clemente XI. Mas pelo visto, a Igreja estava em um erro, uma vez que aos 27 de outubro de 1986 o atual Pontífice reuniu em Assis os homens de todas as confissões religiosas para rezarem juntos pela paz. E que outra coisa pretendiam nossos Irmãos quando reuniam-se nos templos, senão o amor entre os homens, a tolerância, a solidariedade, a defesa da dignidade da pessoa humana, considerando-se iguais acima dos credos políticos, dos credos religiosos e da cor da pele?»47.

Os graves erros de João Paulo II sobre o pecado original, sobre a diferença entre o natural e o sobrenatural, sobre a gratuidade do Salvador e sobre a eleição dos escolhidos e o inferno, deixam-nos perplexos. Mas suas amizades e seus atos pontifícios dissipam toda dúvida sobre suas intenções. Os vínculos de João Paulo II com Rahner, que recorda tão fortemente o panteísmo, e com De Lubac, que escreveu três livros sobre o budismo, a manifestação de seu encanto sem limites por Teilhard e sua profissão de abertura às religiões asiáticas de todas as classes, fazem-nos pressagiar o pior. A Igreja católica ainda não foi totalmente absorvida pela religião do homem que faz Deus à sua imagem e semelhança, porque o fruto ainda não está suficientemente maduro. Mas quando chegar este momento estará pronta para adotar o modelo tipicamente budista, cuja expressão mais completa foi formulada por Teilhard: a ascensão do homem para o Cristo cósmico

  1. De Lubac, Entretien autour de Vatican II, p. 48, em Courrier II, p. 123.
  2. Meinvielle, De la Cábala al progresismo, conclusão.
  3. Malinski, Mon ami Karol Wojtyla, em Leroux, Pierre, m’aimes-tu?, p. 67. Ver as páginas 4-8, de onde foram retiradas as referências seguintes sobre a mentalidade de João Paulo II.
  4. Alain Woodrow, Le Mondede 18 de outubro de 1978.
  5. Documentation catholique,1965, p. 1888.
  6. André Frossard, N’ayez pas peur, Laffont, 1982, p. 63, em Leroux, p. 66.
  7. Wojtyla, em Malinski, p. 189, em Leroux, pp. 6-7.
  8. De Lubac, Entretien autour de Vatican II, pp. 46, 48, 106, em Savoir II, p. 73.
  9. Osservatore romano, 10 de junho de 1981, em Courrier II, p. 120.
  10. Osservatore romano, 5 de septembro de 1991, em Courrier II, p. 121-122.
  11. Esta técnica é utilizada pelos alpinistas, geralmente num grupo de três, na qual estas pessoas unem-se com uma corda para transitar em áreas montanhosas que apresentam dificuldade ou perigo. (Nota do Tradutor).
  12. Uma Revelação dupla, uma fé dupla, uma redenção dupla, uma Igreja dupla, uma missão dupla. Ver, por exemplo, o erudito trabalho de Dörmann, que já publicou três volumes para provar que, por trás das palavras de aparência católica, esconde-se, na realidade, uma doutrina neomodernista.
  13. Le signe de contradiction, Méditations,em Dörmann, El itinerario teológico de Juan Pablo II, pp. 55-56.
  14. Rom 6, 23.
  15. Le signe de contradiction, Méditations, em Dörmann, El itinerario teológico de Juan Pablo II, p. 65. Em outra parte do livro distingue inclusive, claramente a justificação (a salvação pessoal) da redenção (ibid., p. 69): «Todos os homens, desde o início até o fim de mundo, foram redimidos e justificados por Cristo e por sua cruz».
  16. Entrez dans l’espérance(ed. ingl. Crossing the Threshold of Hope), pp. 34, 36, 193.
  17. Redemptor hominis 10.
  18. Redemptor hominisnunca utiliza o qualificativo de «romana» para a Igreja de Cristo, o que é bem característico dos modernistas, que pecam mais por omissão que por comissão, para confundir melhor o contexto.’
  19. Redemptor hominis 8.
  20. Veritatis splendor.
  21. 1º de janeiro de 1999, suplemento do Osservatore romano, 16 de dezembro de 1998.
  22. Redemptor hominis 11.
  23. Redemptor hominis 7.
  24. Entrez dans l’espérance, ed. ingl., p. 147.
  25. O autor faz referência ao axioma luterano «Pecca fortiter sed crede firmius». (Nota do Tradutor).
  26. Jo 1, 14.
  27. Col 1, 15.
  28. Cf. Gen 9, 11; Lc 3, 6; 1 Pe 1, 24.
  29. João Paulo II, Dominum et vivificantem 50, 3, em Dörmann, parte II, vol. I, pp. 103-104.
  30. O Papa reinante era João Paulo II quando o presente trabalho foi publicado. (N. da P.)
  31. Chesterton explica até que ponto o rechaço desta tentação é «o eixo da História… Ninguém pode compreender o mistério da Igreja, ninguém faz uma idéia correta da fé dos primeiros tempos, se não tem em conta que o mundo esteve então a ponto de perecer na fraternização e compreensão mútua de todas as religiões…» (O homem eterno).
  32. Salmo 95.
  33. Rom 1,19 e ss.
  34. At 17: 17.
  35. Pio XI, Mortalium animos 82.
  36. João Paulo II, 22 de dezembro de 1986.
  37. João Paulo II, 11 de maio de 1986, em Courrier II, 118.
  38. João Paulo II, Osservatore romano, 15 de dezembro de 1992, p. 5.
  39. Gaudium et spes 22.
  40. Documentation catholique, número 2220, 20 de fevereiro de 2000, p. 167.
  41. Pio XI, Mortalium animos 13.
  42. Mt 16, 17-19.
  43. Gal 2, 14.
  44. Madiran, em Itinéraires, número 277, novembro de 1977, insiste na mesma coisa: «O pluralismo é um sistema… É a face sorridente do anti-dogmatismo, que é a substância do sectarismo maçônico. Porque o “pluralismo” é a pluralidade sistemática e obrigatória em matéria de dogmas, e, portanto, sua destruição… Basear a liberdade de espírito e a liberdade religiosa sobre o pluralismo é, pois, um contrassenso. Casualmente: porque é uma farsa fabricada expressamente para cairmos nela».
  45. Ploncard d’Assac, La Iglesia ocupada, p. 216.
  46. Yves Marsaudon, L’œcuménisme vu par un franc-maçon de tradition, Vitiano, París, p. 126.
  47. Armando Corona, Grão Mestre da Grande Loja do Equinócio e a Primavera, Irma, abril de 1987.