NOBREZA E SERVIDÃO DA FAMÍLIA

nobreQuem não receia os berços tem de amar o trabalho. Enfrentar com alegria o dever conjugal é sujeitar-se a múltiplos cuidados, aos longos dias de labor, numa época em que todas as condições da vida social estão concebidas e estão adaptadas à medida mesquinha do indivíduo. Com uma leviandade aterradora para que quer refletir um pouco, a França do século dezenove, a “França eterna” dos poetas e dos discursos oficiais instalava-se comodamente numa política de desnatalidade como se tivesse renunciado a perpetuar-se. Aceitar a família numerosa num ambiente destes, correspondia a uma vocação ao heroísmo.

O senhor Martin e a esposa não recuaram diante da perspectiva. Para dizer a verdade, a dificuldade, se existia, não os colocava ante um problema. Nunca leram Malthus. Ainda não se ouvira falar de Ogino (1). Por um certo tempo puderam “realizar” o esplendor de uma união santificada pela continência voluntária. Nem mesmo lhes ocorreu a idéia de frustrarem a natureza ou de atentarem contra o plano divino. Os filhos nasciam: eram acolhidos como uma benção do Céu, e, em razão do mandato confiado, lá se arranjavam para os alimentar, para os vestir, para os educar, para os dotar. Deus, que impunha a tarefa, daria os meios …

Entretanto lidavam sem descanso. O estabelecimento de ourivessaria tinha cada vez mais fregueses. Os clientes sérios preferiam aquele comerciante afável, de probidade legendária, que, nem por uma fortuna, violaria o descanso dominical. Nas outras joalharias era ao Domingo que a animação redobrava, que as vendas atingiam o auge.

Os camponeses iam a Alençon fazer compras, fornecer-se para casamentos e para fazer presentes. Dirigiam-se habitualmente ao grande armazém do Barateiro, na rua da Ponte Nova e depois encaminhava-se, instintivamente para a relojoaria situada mesmo na frente. Mas encontravam a porta fechada. Impacientavam-se, mas em vão. A ordem era inviolável: se queriam comprar bugigangas, relógios, jóias, que fossem a outro lado. Ali respondiam-lhes com as palavras de Joana d’Arc ligeiramente modificdas:

“É o dia do Senhor: só o Senhor será servido”.

Os amigos do senhor Martin consideravam isto um exagero. Achavam que não havia de desprezar assim as leis da concorrência. A casa tinha uma entrada particular. Pois que abrisse no corredor uma porta lateral por onde entrassem disfarçadamente os compradores excepcionais: assim o santo homem salvaguardaria os interesses e as aparências. Mas ele respondeu sem exitar que preferia perder algumas boas oportunidades de negócio e atrair sobre os seus as bençãos do Alto. O confessor, abordado, com certeza, por algum íntimo, e impressionado pelos argumentos expendidos, insistiu, por sua vez, com o senhor Martin para que o comércio não paralizasse, ao menos pela manhã. Não foi mais feliz que os outroas w apenas pode admirar a magnífica intransigência na fidelidade ao preceito divino.

Por seu lado a Senhora Martin continuava corajosamente com o negócio do “Ponto de Alençon”. Tanto para ela como para as operárias, que todas as quintas-feiras lhe levavam as suas tiras, tratava-se de uma indústria caseira, perfeitamente compatível com as obrigações familiares. Nem de outro modo se teria metido neste negócio pois considerava que o lugar da mãe é no lar e que, afastando-se a mãe, não há ninho, não há passarinhos.

O concurso do Senhor Martin, principalmente a partir do ano de 1863 em que, segundo parece, a mulher recomeçou a trabalhar por sua conta, permitiu uma rápida expansão da clientela. Ele não gostava da correspondência comercial, mas não exitava em fazer o trabalho de guarda-livros. Dirgia-se frequentemente a Paris onde tratava com os vendedores, comprava matérias primas, recebia encomendas, efetuava entregas importantes. Os gostos de contemplativo não prejudicavam nele a habilidade de homem prático: alcançava êxitos que maravilhavam a esposa. O artista, que sempre nele existira, não tardou a apreender a alma da renda. Esse trabalho de delicadeza e paciência não anda muito distante do da relojoaria. Um e outro atuam sobre os infinitamente pequenos.

Encarregou-se pois, de escolher os modelos, de mandar compor os desenhos. Reservou até, para as suas horas livres, a operação de fazer os “piques”, que consiste em perfurar os desenhos traçados, sobre um pergaminho, previamente colorido de verde, para atenuar a fadiga dos olhos. Esse trabalho que se executa em cima de um almofada, com uma agulha especial que permite furar o pergaminho sem o rasgar, é dos que exigem vista firme e segurança de mão. Não é pois sem motivo, como se vê, que o papel comercial tem o timbre “Luís Martin. Fabricante do Ponto de Alençon”.

A esposa tinha, contudo, a parte principal. Na estação morta preocupava-se com a sorte do pessoal. Quando afluiam as encomendas – e com esta clientela de luxo tratava-se sempre de negócios a curto prazo – não se poupava a vigílias. “É o maroto do Ponto de Alençon que me torna a vida difícil, suspirava ela. Quando tenho demasiada afluência de encomendas sou uma escrava, mas da pior escravidão. Quando não há trabalho e me vejo com encargos de vinte mil francos às costas e sou obrigada a dispensar operárias que me custaram tanto a encontrar e que tenho que mandar para outros fabricantes, há uma certa razão para me atormentar e por causa disso sofro pesadelos! Mas então? Não há remédio senão resignar-nos e encarar mais corajosamente possível.”

História de uma Família – P. Stéphane Joseph Piat