O ESPÍRITO DEVE SER TODO TRANQUILIDADE E PAZ

confOs Santos, por sua uniformidade com a von­tade divina, gozavam de um Céu sobre a terra.

Os antigos padres, diz Santa Dorotéia, conservavam em si uma paz constante, porque recebiam tudo como vindo da mão de Deus. Santa Maria Madalena de Pazzi ao ouvir somente as palavras — vontade de Deus —, ficou tão consolada que se extasiou de amor. A diversidade, sem dúvida, causa pena e dor em nossos sentidos, mas isto só tem lugar na parte inferior, porque o espírito, que é a parte superior, deve ser todo tranquilidade e paz, estando a vontade unida à de Deus: «O vosso gozo, disse o Senhor aos Seus Apóstolos, ninguém vo-lo tirará, e será completo.» (João XIV. 22 24.)

Aquele que está sempre em uniformida­de com a divina vontade, goza de uma paz inteira e perpétua: inteira, porque ele tem tudo quanto deseja, como acima dissemos: perpétua, porque ninguém o pode privar de tanto prazer, assim como ninguém pode obs­tar ao que Deus quer.

O padre João Thaulero, segundo o padre Sangiore (Tirar. Tom. III. ), e o padre Nieremberg (Vita. Div.), conta de si mesmo, que tendo por muitas vezes pedido a Deus que lhe ensinasse o caminho da vida espiritual, ouviu um dia uma voz que lhe dizia, que fosse a certa igreja, e ali acharia a pessoa que procurava. Ele se dirigiu à dita igreja, e à porta da mesma encontrou um miserável mendigo, descalço e roto, a quem saudou, dizendo: «Bons dias, irmão.» O pobre lhe respondeu: «Não me lembro de ter passado um só dia mau, senhor.» O padre replicou «Deus vos dê uma vida fe­liz»; ao que ele lhe tornou: «Eu nunca fui infeliz, acrescentando: Padre, não foi o acaso que me fez responder-vos que nunca tive um dia mau: porque, se tenho fome, louvo a Deus; quando cai neve ou chove, eu O bendigo; se alguém me despreza, me despede ou me aflige, ou se encontro ou­tra qualquer tribulação, dou sempre graças a Deus. Disse-vos que nunca fui infeliz, falei a verdade, pois que me tenho acos­tumado a conformar-me com a vontade de Deus, sem reserva; assim, tudo quanto me acontece de bem ou de mal, eu o recebo de Suas mãos com alegria, como se fosse a minha melhor sorte, e isto me torna feliz.

— E se Deus quisesse, disse Thaulero, a vossa condenação, que havíeis de dizer? — Se tal fosse a vontade de Deus, respondeu o pobre, eu com humildade e amor me abra­çaria com Nosso Senhor, e me lançaria de tal modo com Ele, que quando me quisesse precipitar no inferno, o obrigaria a ir ali comigo, e me acharia então mais feliz com Ele no abismo, do que gozando das delí­cias do Céu sem Ele. — Onde achastes a Deus? perguntou o padre: — Achei-O onde deixei as criaturas. — Quem sois vós? — Eu sou um rei. — Onde é o vosso reino? — Na minha alma, onde conservo a ordem: as minhas paixões obedecem à razão, e a minha razão obedece a Deus.» Por fim Thaulero lhe perguntou o que tinha feito para se adiantar na perfeição.«Guardei silêncio, respondeu o mendigo: ser silencioso com os homens em ordem a falar com Deus; e na união que tenho conservado com a vontade de meu Senhor, tenho achado e acho toda a minha paz» Tal era, em uma palavra, este pobre homem, pela sua uniformidade com a vontade divina: Ele na sua pobreza era seguramente mais rico de que todos os monarcas da terra, e mais feliz em seus padecimentos, que todos os mundanos no gozo de todos os prazeres. Quão grande é a estupidez daquele, que resiste à vontade divina! Forçoso é sofrer tribu­lações, porque ninguém se pode subtrair ao cumprimento dos divinos decretos. Quem resiste à Sua vontade? (Rom. IX. 19) E sofre-lás-ão sem fruto, e também trarão sobre si maiores castigos na vida futura, e maior ansiedade na presente quem jamais lhe resistiu, e obteve paz? (Job. IX. 4) Se o homem enfermo se queixa de suas do­res e enfermidades, se o que é pobre la­menta a sua sorte perante Deus, e se enfu­rece e blasfema; que lhe resulta senão o aumento de suas aflições? «Que procuras tu, oh homem, diz Santo Agostinho, quando procuras bens? Procura o único bem, no qual se encerram todos os bens.» Que procuras tu exceto Deus? Procura-O, e acha-O; une-te e liga-te a Ele, à Sua vontade, viverás feliz nesta e na outra vida.

Tratado da conformidade com a vontade de Deus – Santo Afonso