O NOVO ORDO MISSÆ DE PAULO VI É MAU EM SI MESMO?

NOM

O Missal de Paulo VI tornou obscuro e ambíguo o que o Missal de São Pio V havia tornado explícito e esclarecido.

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome n ° 645 – Tradução: Dominus Est

Estado da questão

1 – A avaliação do Novus Ordo Missae feita pela Fraternidade São Pio X retoma as bases do Breve Exame Crítico apresentado ao Papa Paulo VI pelos Cardeais Ottaviani e Bacci. No Prefácio que precede e introduz este Breve Exame, os dois cardeais observam que o novo rito reformado por Paulo VI “representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento. Os “cânones” do rito definitivamente fixado naquele tempo constituíam uma barreira intransponível contra qualquer tipo de heresia que pudesse atacar a integridade do Mistério.” (1).

Breve Exame Crítico observa esse afastamento do ponto de vista das quatro causas:

  • Causa material (a Presença real),
  • Causa formal (a natureza sacrificial),
  • Causa final (o fim propiciatório)
  • Causa eficiente (o sacerdócio do padre). 

Esta grave falha obriga-nos a concluir que o novo rito é “mau em si mesmo” e proíbe-nos considerá-lo legítimo e até permite duvidar da validade das celebrações em vários casos.

Objeções em sentido oposto

2 – Esta constatação é negada por todos aqueles que afirmam que o Missal de Paulo VI contém, suficientemente, a expressão da fé católica no que se refere ao mistério da Eucaristia e que o celebrante e os fiéis podem, portanto, adotá-lo não somente de maneira válida, mas também com piedade e proveito espiritual.

Segundo eles, os abusos que assolaram ou ainda assolam as várias celebrações não podem ser evocados para questionar a validade e a santidade do novo rito. Esta conclusão pretende apoiar-se em quatro argumentos, que constituem outras tantas objeções à tese defendida pela FSSPX. Esses quatro argumentos pretendem provar que o Missal de Paulo VI não se afasta da teologia católica da Missa, formulada no Concílio de Trento, em suas quatro causas.

3 -Em primeiro lugar, quanto à presença real (a causa material da Missa) Paulo VI manteve o cânone romano que fala duas vezes da presença de Cristo, antes e depois da consagração.

Se objetamos que o novo rito estabelece a confusão entre quatro tipos de presença e minimiza a presença substancial ao insistir nas outras três presenças morais de Cristo(2), responde-se por um lado que o adjetivo “substancial” não aparece jamais na liturgia anterior a 1969 e, por outro lado, que Pio XII já evoca os quatro tipos de presença na Mediator Dei (DS 3840).

A constituição conciliar Sacrosanctum concilium e depois a Institutio generalis do novo Missal apenas seguiram Pio XII, insistindo como ele na especificidade da presença eucarística.

4 – Em segundo lugar, quanto à natureza sacrificial (causa formal da Missa), assim como no Missal de São Pio V, o cânon do Missal de Paulo VI apresenta repetidamente a Missa como um sacrifício.

Se objetamos que no Missal de São Pio V a Missa é formalmente o próprio sacrifício da cruz, realizado de forma incruenta, enquanto que no Missal de Paulo VI a Missa é meramente o memorial do sacrifício da cruz, responde-se que o sacrifício da cruz e o da missa sendo ao mesmo tempo idênticos e diferentes, a missa é ao mesmo tempo sacrifício e memorial do sacrifício. Além da diferença de acordo com o modo cruento ou incruento, há uma diferença quanto a Cristo oferecendo o sacrifício, ora mortal e agonizante, sozinho e sem o ministério de um sacerdote na cruz, ora ressuscitado e não agonizante, não mais sozinho mas com o ministério de um padre na missa. Outra diferença é segundo o objeto: o sacrifício da cruz redime, enquanto o da missa distribui as graças da redenção. A missa, portanto, não é apenas um sacrifício; é também um memorial. O Missal de São Pio V, o Concílio de Trento (DS 1740) e Pio XII (DS 3848) também afirmam estes dois aspectos.

A constituição Sacrosanctum concilium(3), a constituição Lumen gentium(4), a Institutio generalis(5) afirmam claramente a natureza sacrificial propriamente dita da Missa.

5 – Em terceiro lugar, quanto ao valor propiciatório, que é a causa final da Missa, uma vez que as palavras da consagração são idênticas nos dois Missais de São Pio V e Paulo VI, o valor propiciatório da Missa é também idêntico. Isso é afirmado pelo Novo Catecismo (n°s 1861 e 1992).

6 – Em quarto lugar, quanto ao papel próprio do sacerdote, que é a causa eficiente da Missa, a liturgia reformada de Paulo VI apenas esclareceu o papel próprio da comunidade.  Pio XII (DS 3851) já ensinava que Cristo desejava associar os fiéis ao seu sacrifício, de uma forma diferente daquela do sacerdote.


Princípio de resposta

7 – Dizemos precisamente com o Breve Exame Crítico que a Nova Missa “se afasta” da teologia católica da Missa formulada no Concílio de Trento. Devemos distinguir entre uma proposição doutrinal e um rito. Apenas uma proposição é necessária e suficiente para afirmar ou negar a doutrina. Ao contrário de uma proposição doutrinal, a Missa é um rito, ou seja, um conjunto de sinais (gestos e palavras), cada um dos quais, embora necessário, não é suficiente e deve convergir com todos os outros para afirmar a doutrina. Desse modo, a integridade de todos os sinais parciais é exigida para o valor significante do rito. Se um desses sinais parciais é omitido, os outros que permanecem já não são mais suficientes e por isso o rito “afasta-se” da verdade que ele deveria significar (no sentido de que seu valor significante é defeituoso).

8 – Portanto, reprovamos o novo rito não por negar explicitamente tal ou qual ponto da doutrina (como faria uma proposição herética), mas por ter alterado o conjunto de todos os sinais que constituem o rito, de modo a não afirmar a doutrina tão suficientemente como no passado.

Por exemplo, para significar adoração da Presença real, por que passamos de 14 genuflexões para 3? Em termos do sinal, essa redução equivale a uma omissão, que oblitera a expressão da doutrina necessária à integridade do rito. Especialmente porque essas 3 genuflexões, ali onde foram deixadas (2 depois e não mais antes da elevação; 1 antes da comunhão dos fiéis), apresentam um significado equívoco: já não é claro se exprimem a verdadeira presença eucarística em sentido estrito ou a presença espiritual e mística de Cristo na assembleia, resultado da fé dos fiéis. Criticamos neste rito as omissões por redução que acabam por vilipendiar a expressão da fé católica. Os desenvolvimentos doutrinais posteriores (Novo Catecismo de 1992 e Compêndio de 2005) não podem ter valor de argumento para justificar a Missa Nova, uma vez que ela permanece, apesar de tudo, enquanto rito significante, com a sua profunda deficiência.

9 – A restauração do rito da Missa realizado por São Pio V teve como resultado explicitar os aspectos da fé católica negados pela heresia protestante. A reforma litúrgica realizada por Paulo VI teve como resultado o obscurecimento desses mesmos aspectos. O Missal de Paulo VI, portanto, não veio especificar o de São Pio V. Afastou-se dele, no sentido de tornar obscuro e ambíguo o que o Missal de São Pio V havia tornado explícito e esclarecido. Se nos é objetado que a reforma litúrgica de Paulo VI quis esclarecer outros aspectos deixados obscuros até agora(6), respondemos que um novo esclarecimento não pode pôr em causa o esclarecimento já realizado.


Respostas a objeções

10 – À primeira: é precisamente o novo rito de Paulo VI que se afasta da definição católica da Missa, ou seja, o rito como conjunto de sinais convergentes. Isso permanece verdadeiro, independentemente dos textos doutrinais extrínsecos ao rito. A encíclica Mediador Dei de Pio XII, bem como a constituição Sacrosanctum concilium e a Institutio generalis do novo missal são precisamente textos doutrinais, não o rito em si. Não negamos que os textos doutrinais de Pio XII reafirmam claramente a doutrina. Estamos prontos para admitir, depois de um exame diligente e contextualizado, que tal declaração, extraída dos textos do Vaticano II ou dos comentários autorizados da reforma litúrgica subsequente, diz o mesmo que Pio XII. Mas isso não afeta nossa crítica, que não se dirige precisamente a estas proposições doutrinais, mas sim ao rito. Este não significa claramente a presença real, principalmente por meio dos gestos do celebrante. As expressões mantidas no cânon não são mais suficientes, se forem postas em convergência com todo o resto do rito.

11 – À segunda: não negamos que a Missa seja ao mesmo tempo, embora em aspectos diferentes, memorial e sacrifício; mas seria preciso especificar que a Missa não é apenas o sacrifício de Cristo, pois ela é, ainda que sob a forma incruenta, o sacrifício de Cristo realizado na cruz. Apenas o modo da oferta difere (Concílio de Trento, DS 1743). Mas seja qual for o caso desses pontos doutrinais, cuja dificuldade exige uma exposição tão completa e matizada possível, e mesmo que essa exposição do mistério seja dada de forma satisfatória nos textos doutrinais externos ao rito, a crítica que fazemos diz respeito, precisa e formalmente, não a esses textos, mas ao rito como tal, ou seja, como constituindo um conjunto de sinais convergentes. A reforma do novo rito de Paulo VI atenua a identificação formal da Missa com o sacrifício da cruz, a ponto de a Missa aparecer muito menos como o sacrifício da cruz em si do que como seu simples memorial. O Breve Exame Crítico, portanto, observa que, uma vez que o alcance das palavras da consagração como aparecem no Novus ordo é condicionado por todo o contexto, essas palavras já não podem mais significar o próprio ato do sacrifício de Cristo, mas a simples narrativa de sua instituição por Cristo.

12 – Esta resposta à segunda também é válida para responder à terceira: as palavras da consagração só têm sentido se forem tomadas formalmente pelo que são, ou seja, como parte integrante de um conjunto de sinais. O significado exato dessas palavras resulta de sua convergência com todos os outros elementos significantes do rito, isto é, em última análise, do contexto de todo o rito. Ora, devido aos seus diferentes contextos, as palavras da consagração podem não ter o mesmo significado no Missal de Paulo VI e no Missal de São Pio V. Neste último, afirmam claramente a finalidade atualmente propiciatória de um sacrifício efetivamente tornado presente. Naquele outro, as palavras podem não mais significar o próprio ato do sacrifício de Cristo tornado efetivamente presente, mas o simples relato de sua instituição por Cristo. Todas as glosas subsequentes do Novo Catecismo, que são textos doutrinários externos ao rito, não podem ser contrárias a este fato.

13 – À quarta: não se trata de afirmar categoricamente duas verdades através de duas proposições doutrinárias distintas; trata-se de significá-las, ao mesmo tempo e em seu justo equilíbrio, através de um conjunto convergente de gestos e palavras que definem o rito. Por suas omissões e equívocos, o significado do novo rito de Paulo VI obscurece o papel do sacerdote em benefício da ação da comunidade dos fiéis.

Notas:

  1. Cardeais Ottaviani e Bacci, “Prefácio ao Papa Paulo VI” em Breve exame críticodo Novus ordo missæ, Ecône, p. 6
  2. Institutio Generalis Missalis Romani(IGMR) de 2002, n° 27: “Durante a celebração da Missa […] Cristo se faz realmente presente na própria assembleia reunida em seu nome, na pessoa do ministro, na sua palavra e também, mas de forma substancial e duradoura, sob as espécies eucarísticas”.
  3. No n ° 47: “Salvator noster, em Coena novissima, qua nocte tradebatur, Sacrificium Eucharisticum Corporis et Sanguinis sui instituit, quo Sacrificium Crucis in saecula, perpetuaret… Convivium paschale”.
  4. No nº 3 (“Quoties sacrificium crucis, quo Pascha nostrum immolatus est Christus (1 Cor 5,7) in altari celebratur, opus nostrae redemptionis exercetur”) e 10 (“Sacerdos quidem ministerialis… sacrificium eucharisticum in persona Christi conficit illudque nomine totius populi Deo offert”).
  5. No § 2: “…in his [Precibus eucharisticis] enim sacerdos, dum anamnesim peragit, ad Deum nomine etiam totius populi conversus, ei gratias persolvit et sacrificium offert vivum et sanctum, oblationem scilicet Ecclesiae et hostiam, cuius immolatione ipse Deus voluit placari, atque orat, ut Corpus et Sanguis Christi sint Patri sacrificium acceptabile et toti mundo salutare. Ita in novo Missali lex orandi Ecclesiae respondet perenni legi credendi, qua nempe monemur unum et ipsum esse, excepta diversa offerendi ratione, crucis sacrificium eiusque in Missa sacramentalem renovationem, quam in cena novissima Christus Dominus instituit Apostolisque faciendam mandavit in sui memoriam, atque proinde Missam simul esse sacrificium laudis, gratiarum catione, propitiatorium et satisfactorium”.
  6. Esta ideia da complementaridade dos ritos é afirmada nestes termos pelo Pe. Guillaume de Tanouärn: “Percebemos que o rito antigo podia trazer sacralidade, transcendência e a adoração, enquanto o novo rito trazia participação e proximidade. Desde de 1988 e do motu proprio Ecclesia Dei de João Paulo II, a Igreja foi se conscientizando gradualmente da complementaridade dos ritos”(Entrevista de Aurore Leclerc em L’Incorrect).