PELA HONRA DA IGREJA

Palestra pronunciada em Viena, 29 de Setembro de 1975. Apesar da data, traz muitas luzes sobre nossa atitude, hoje, diante da crise da Igreja e sobre suas causas que procedem do espírito liberal, condenado pela Igreja.

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É a primeira vez que estou na Áustria diante de um número tão grande de católicos. Estive antes em vosso país, mas só com poucas pessoas e com pequenos grupos. Desta vez encontro-me diante de uma assembléia numerosa e sinto-me muito feliz porque entendo, todos entendemos, que aqui viemos com o desejo de compreender melhor a crise da Igreja, de melhor avaliá-la, a fim de buscar-lhe os remédios e trabalharmos todos juntos para o bem da Igreja. 

A Crise da Igreja

Creio que não é por outro motivo que estais aqui, mas para medir de maneira mais exata a amplidão da crise que nos causa tanta dor e nos perturba interiormente. Desejaríamos muito que a Igreja estivesse florescente, que não houvesse divisões em seu seio e sim uma unidade perfeita como antes. Como seríamos felizes não tendo problemas e vendo a Igreja crescer cada vez mais. Pessoalmente, pude assistir ao crescimento da Igreja de uma maneira absolutamente admirável na África. Com efeito, quando fui Delegado Apostólico, entre 1948 e 1959, tive ocasião de visitar todos os países africanos. Durante esses onze anos, atravessei toda a África, visitando as dioceses em nome do Santo Padre a quem ia logo dar conta de minhas visitas. Era para mim maravilhoso ver o crescimento da Igreja. O que se terá passado em nossa Igreja para que, imediatamente depois de ter estado em plenas ascensão, em pleno crescimento, se encontre agora diante de uma tal crise? Atualmente, tenho tido ocasião de visitar todos os países da Europa e América do Sul, bem como os Estados Unidos e a Austrália. De todos os lados, em todos os contatos que tive, os ecos são os mesmos: a Igreja está dividida, os católicos estão inquietos, os sacerdotes já não sabem o que pensar da situação. Os próprios bispos comprovam essas dificuldades em suas dioceses: paróquias divididas, dioceses divididas, faltas de vocações, seminários vazios, congregações religiosas que não atraem mais os jovens. Tudo isso traz à Igreja uma angústia verdadeiramente profunda em todo o mundo, e até em Roma sentimos os mesmos ecos. Quando se tem ocasião de encontrar cardeais, personalidades, há sempre a mesma inquietação, cada um se pergunta quando, por fim, terminará essa crise e o que se pode fazer para dar-lhe fim. Há, pois, um problema que se apresenta — digamos francamente — depois do Concílio.

Sem dúvida, já havia antecedentes dessa crise desde muito tempo antes do Concílio. Antes de tudo, o pecado original seguido de todas as suas conseqüências. Mas, de qualquer maneira, ocorreu nesse momento um acontecimento que provocou na Igreja um impacto — uma crise verdadeiramente dolorosa.

O Nascimento de Ecône

Queria lhes explicar como, por ocasião dessa crise e em seguida ao Concílio, me encontrei pessoalmente, por assim dizer, no próprio coração desse drama. Em 1968, já não sendo mais Superior Geral da Congregação do Espírito Santo, porque tinha entregue minha demissão, vieram me procurar alguns seminaristas enviados por sacerdotes, por seus pais, por amigos que me pediam com insistência que eu encontrasse um meio para que eles recebessem verdadeira formação sacerdotal. Precisava, pois, encontrar um seminário. Pensei tê-lo encontrado no Seminário Francês de Roma. Para lá enviei alguns seminaristas. Lamentavelmente, no fim de um ano ou dois, os bispos, pressionados pelos próprios professores do seminário, expulsaram esses seminaristas porque conservavam a batina, rezavam o Rosário, se reuniam na capela, mostrando assim uma certa divisão no seminário por serem mais regulares do que os outros nos exercícios de piedade. Isso foi considerado como uma espécie de rebelião e negaram-se a ordená-los. Era preciso, pois, procurar outra solução para os seminaristas. Alguns foram pôr-se debaixo da proteção do Cardeal Siri, em Gênova. De minha parte, procurei pela Europa uma Universidade que fosse bastante tradicional onde pudessem receber uma boa formação teológica e filosófica. Dirigi-me a Friburgo, na Suíça, porque conhecia Mons. Charrière que, quando eu era Arcebispo de Dakar, viera passar quinze dias comigo. Por isso disse a mim mesmo: a Universidade de Friburgo ainda é boa, tem bons professores, conheço Mons. Charrière e provavelmente será mais fácil colocar lá meus seminaristas. Viajei para Friburgo para vê-lo; arrumamos as coisas e aluguei uns quartos nos Salesianos. Um ano depois, comprei uma casa em Friburgo e nesse mesmo ano me instalei em Ecône com onze novos seminaristas que foram chegando nos anos seguintes. E assim me encontrei comprometido — atrevo-me a dizê-lo — mas não por minha vontade; jamais havia tido, de antemão, a intenção de agir dessa maneira; nunca me disse: farei um seminário, e o farei desta ou daquela maneira, em tal ou qual lugar. Absolutamente. Para falar a verdade, foram as circunstâncias que me forçaram a fazer esse seminário. Senti-me impelido por todos esses seminaristas que chegavam. Não podia desprender-me da engrenagem em que estava inserido, quando teria podido simplesmente retirar-me por causa de minha idade e dos muitos anos de África. E foi assim que nasceu Ecône. Com o acordo das autoridades eclesiásticas, de Mons. Charrière, de Mons. Adam. E como — perguntareis — nessas condições, Ecône se encontrou no centro da crise, em meio a oposições e ataques? 

A Oposição Pessoal do Episcopado Francês

Antes de tudo, de onde vinham estes ataques? Da França. Sem dúvida, meu seminário é internacional, já que lá estão norte-americanos, australianos, ingleses, belgas, alemães, suíços, italianos. Mas, evidentemente, a maioria é francesa e os bispos franceses, há muito tempo, se opunham a mim mesmo, porque, no Concílio, não os segui. Posso dizer sem problemas: efetivamente, em minhas intervenções no Concílio, não segui a Conferência episcopal francesa. Eles tinham suas reuniões nas quais davam exatamente o texto das intervenções que se devia fazer: “O senhor, D. Fulano, fará uma intervenção sobre o tema tal; tal teólogo redigirá seu texto e o senhor não terá mais do que dizê-lo”. Não quis ficar prisioneiro desse sistema e, por ser muito livre, por não ter o costume de atuar com a Conferência francesa — atuei sozinho, fora da Conferência. Por isso não perdoavam que eu, um bispo francês, tenha tomado posições contrárias à representação francesa. Na realidade, não foi contra ela que adotei posições que não concordavam com as suas; tomei-as porque achei que era meu dever tomá-las. Desde então comecei a ser mal visto pela assembléia episcopal francesa, a tal ponto que passava por ser um ultratradicionalista; deve ser dito que minha posição era tradicional e contrária a esse espírito de novidade que me parecia muito perigoso. Então, quando os bispos franceses viram que eu tinha um seminário florescente, onde crescia o número de seminaristas, tiveram medo. Disseram consigo mesmos: esses seminaristas, uma vez ordenados, trarão para a França as idéias tradicionais de Mons. Lefebvre, e não queremos que isso aconteça. Não queremos em nossas dioceses sacerdotes tradicionais que as dividirão, que não seguirão a corrente, que se oporão a seus colegas, etc. Tive, pois, uma oposição imediata dos bispos da França, que só fez crescer à medida que meu seminário aumentava, que ficavam sabendo que eu estava construindo edifícios, que o número de seminaristas passava de 20 a 40, a 60, a 80, a 100. Isso não era possível. Era um importuno e meu seminário também. Foi então que pressionaram Roma, o Cardeal Villot, francês como eles, que os conhecia bem e que era amigo deles e também o Cardeal Garrone, igualmente francês, para suprimirem meu seminário, dizendo: não queremos esse seminário, tem de ser suprimido. Aí está o que se pode chamar a razão histórica dessa oposição, que se faz em nome da resistência que meu seminário representa frente à atual corrente e, digamos, às reformas conciliares, ao próprio Concílio. 

A Igreja Condena o Liberalismo

Temos que situar essa oposição na história da Igreja. Porque essa oposição entre os bispos? Com efeito, eu não era o único: muitos lutaram comigo no Concílio. Éramos 250 no grupo que se chamou: “Coetus Internationalis Patrum (Reunião Internacional de Padres [Conciliares]), que tinha uma tendência tradicional e que defendia a tradição contra 2000 ou quem sabe 2500 Padres que se tinham organizado para defender as teses liberais. Pois bem, já sabeis, não tenho necessidade de repetir a história da Igreja desde há muitos séculos; conheceis suficientemente, sobretudo vós que desejais conhecer melhor a situação da Igreja: Papas escreveram encíclicas sobre esse tema. Lede e relede todos os documentos que os Papas nos legaram, desde o Concílio de Trento até a Encíclica Humani Generis do Papa Pio XII. Seja na Bula Auctorem Fidei, que condena o Concílio de Pistóia, na Encíclica Quanta Cura e Syllabus de Pio IX, na Encíclica Immortale Dei, de Leão XIII ou nos atos de São Pio X condenando o Sillon e o modernismo, todos os Papas condenaram o liberalismo. E se assim fizeram, é porque assim viam que essas teses eram diretamente opostas à fé da Igreja. Não é somente uma condenação de pontos secundários, mas de teses que se opõem a Nosso Senhor Jesus Cristo, que destroem o sobrenatural, porque o liberalismo destrói e nos faz cair no materialismo, condenado por todos os Papas. Pois bem, essas teses liberais, por diversas vezes condenadas, encontram sempre católicos dispostos a defendê-las. Inclusive alguns bispos se opuseram a esses documentos pontifícios. 

Influência do Liberalismo Sobre o Concílio

No Concílio, essas teses encontraram defensores na organização de cardeais das margens do Reno, como se lhes chamavam, isto é, os cardeais da Holanda, Alemanha, França e Áustria (por certo a Áustria está um pouco longe do Reno, mas este a toca numa pequena parte). Estes cardeais se viam regularmente e sua organização, que existiu durante o Concílio, tinha uma multidão de secretários, escritórios, dinheiro em quantidade, fornecido pelas conferências episcopais, principalmente pela holandesa e pela alemã que, por serem muito ricas, financiavam todo esse secretariado. Todos os dias, durante o Concílio, recebíamos páginas e páginas de documentos do IDOC. Todos os Padres as recebiam, encontrando-as em nossas caixas postais. Logo organizaram conferências com teólogos e tinham seus próprios “experts”: uma verdadeira organização. Como se vê, o grupo que defendia as teses liberais estava organizado de maneira inacreditável, enquanto que os outros Padres, que tinham vindo de suas dioceses, sem pensar um só momento que poderia chegar a existir uma organização desse gênero para condicioná-los de determinada maneira, se encontraram desprevenidos, completamente inertes. Pensava-se que a maioria dos Padres ia defender simplesmente as teses tradicionais e que ninguém poderia defender teses secularmente condenadas pelos pontífices. Pois bem, por infelicidade, estou pessoalmente convencido de que essa organização logrou triunfar no Concílio, e o fez desde o começo, desde os primeiros dias. Com efeito, o Concílio tinha apenas oito dias quando os membros dessa organização já tinham em suas mãos todas as posições. Tiveram-nas nas Comissões, quando conseguiram a revisão das nomeações de todos os seus membros, já que se opunham aos nomes que foram propostos ao consentimento dos Padres. Propostos e não impostos pelo Cardeal Ottaviani, que citara os nomes dos que tinham integrado as Comissões pré-conciliares, mas somente para informar aos Padres, sem nada lhes impor. No entanto, o Cardeal Liénart levantou-se imediatamente e disse: “Protestamos, é inadmissível, querem nos impor listas, querem nos impor nomes. Queremos ter liberdade, compete às Conferências Episcopais apresentar os nomes dos membros das Comissões”. Em suma, uma história inverossímil. Mas a organização já tinha preparado as listas que foram distribuídas com toda a rapidez nas caixas de correio dos Padres. Iam votar dentro de vinte e quatro horas. Ninguém tivera tempo de preparar listas internacionais, a não ser esse grupo. Assim tiveram nas mãos dois terços dos membros das Comissões, que seriam os redatores dos esquemas. Em seguida, veio a segunda vitória — pode ser lida no livro do Padre Wiltgen, O Reno desemboca no Tibre — A segunda vitória dos liberais foi conseguirem eliminar todos os esquemas preparatórios. Todo o trabalho de preparação, do qual eu mesmo tinha participado como membro da Comissão Central, tudo o que fizemos durante dois anos e meio, foi repelido e ficamos sem esquema. Foi, pois, necessário que as Comissões fizessem tudo de novo. E assim, as Comissões nomeadas por eles mesmos refizeram os esquemas segundo seu pensamento — segundo o pensamento liberal. Essas são coisas que se deve saber, que não se pode ignorar se queremos tomar conhecimento de como se pode ter chegado a esse estado de coisas, como toda essa influência liberal pôde dominar a Igreja e como a domina na atualidade.

Conto estas coisas para lhes explicar como o Concílio estava submetido à influência liberal. Do mesmo modo é preciso saber que as subcomissões podiam ser formadas por pessoas que não tinham sido designadas como “experts”. E foi assim que nelas tivemos teólogos como Schillebeckx, Rahner, Küng, Congar, Murphy dos Estados Unidos, Leclerc de Louvain, Davis, de Lancaster. Todos esses senhores, alguns dos quais já estão casados, outros são verdadeiros hereges, estavam nas subcomissões e redigiram os esquemas, os quais, por isso mesmo, ficaram totalmente submetidos a influência liberal. Além disso, os esquemas eram equívocos. O próprio Schillebeckx escreveu: “Sabemos muito bem o que fazemos pondo frases equívocas nos esquemas do Concílio. Quando este acabar, tiraremos as conseqüências”. Insisto: é preciso saber essas coisas para se dar conta da influência liberal que pesou sobre o Concílio. Porque é impossível mudar completamente um esquema que já está redigido. Pode-se mudar frases, acrescentar parágrafos, modificar algumas palavras, mas não se pode mudar completamente seu espírito a menos que se o recuse e se o refaça. O que então se passava era que, na maior parte das vezes, não tínhamos ocasião de mudar os esquemas, pois justamente a primeira pergunta que se apresentava era: “Estais de acordo em tomar como tema de discussão este esquema que está em vossas mãos?”. E então respondia-se que sim, pois, se recusávamos, a demora ia ser enorme. Os Padres Conciliares estavam cansados pela penosa situação nos hotéis e não desejavam que o Concílio durasse indefinidamente; por isso, não queriam recusar esquemas permanentemente, e respondiam: “… aceitamo-lo como tema de discussão”. Mas quando se os aceitava, não mais poderia mudar os temas fundamentais, apenas fazer modificações acidentais. Se algum Padre queria fazer uma intervenção contra um ponto fundamental, era logo contestado: “Ah, perdão, haveis aceitado o tema em discussão e, em conseqüência, haveis aceitado as idéias fundamentais. Agora se trata, evidentemente, de saber sob que forma deve ser apresentado, se falta acrescentar um parágrafo ou modificar a redação, mas não mudar os temas fundamentais”. Encontrávamo-nos, pois, na impossibilidade de modificá-los profundamente. E foi assim que idéias como colegialidade, ecumenismo e uma quantidade de outras encontraram expressão nesses esquemas. Às vezes o equívoco era tal que foi preciso, no esquema sobre a Igreja, inserir uma nota explicativa para precisar as relações que existem entre os bispos, o colégio de bispos e o Papa, entre o Colégio Episcopal e o Colégio Apostólico. É um absurdo introduzir frases equívocas em um Concílio de 2.350 bispos. Por isso nós, uma dezena de bispos, escrevemos ao Santo Padre para suplicar-lhe que prestasse atenção aos equívocos que se produziam no Concílio. Não tivemos resposta, mas ao menos o Santo Padre foi advertido. São coisas que é preciso saber para se dar conta do peso da influência liberal no Concílio. E cabe acrescentar, depois do Concílio os que receberam a direção e têm hoje a responsabilidade dos Dicastérios, são aqueles que os atacaram com maior virulência durante o Concílio. O Cardeal Garrone, por exemplo, atacava violentamente em uma de suas intervenções, o Dicastério de Estudos e Universidades. Lembro-me ainda da estupefação que causou essa intervenção e o aturdimento do Cardeal Antoniutti, que estava presente, e de seu secretário, Mons. Staffa, hoje Cardeal, diante dos ataques contra seu Dicastério. São coisas significativas. Naturalmente, os que têm os Dicastérios nas mãos são os mesmos que lutaram no Concílio para fazer triunfar as idéias liberais. Não deve espantar que apliquem as decisões do Concílio com espírito liberal, e que nos encontremos numa incrível situação de desordem na Igreja, com uma “autodemolição da Igreja”, como disse nosso Santo Padre, o Papa. Essas idéias liberais são essencialmente corrosivas, destroem tudo o que tocam, se pode-se dizer assim, destroem tudo o que fazem. 

O Que é Liberalismo

O liberalismo, se quereis, pode-se defini-lo em duas palavras — já que não posso fazer um estudo completo diante de vós — em duas palavras: libertação do homem. Libertá-lo de que? Da Verdade que lhe foi imposta de cima. O homem deve fazer ele próprio a sua verdade e julgar por si mesmo sua verdade. A verdade estaria no interior da consciência de cada homem. O homem dispõe assim de sua verdade, que não lhe é imposta de cima já que isto é contrário à sua dignidade, a seu caráter de homem adulto, de homem moderno, de homem liberal. Liberta-se da Verdade porque vê nisto uma prisão. Pelo contrário, se a Verdade existe e se nos impõe, devemos submetermo-nos. Se a Igreja é a única Verdade, devemos submetermo-nos à Igreja. Porém, não querem uma Verdade que se lhes imponha.

Segunda libertação, libertação dos dogmas da fé. Não querem a imposição de dogmas, já feitos, uma Revelação toda acabada, que nos é proposta. Já não querem um Credo que nos seja imposto, uns Sacramentos que nos sejam impostos, nem um sacrifício da Missa que nos seja imposto. Tudo isso, para eles, não é possível. O homem moderno não pode aceitar dogmas que lhe sejam impostos. É preciso criticá-los com seu raciocínio, submetê-los à sua razão, à sua ciência, à sua própria consciência. Por conseguinte, esses dogmas também devem estar submetidos a uma evolução segundo os tempos e à consciência que se tome. E assim, tudo deve estar submetido ao homem, que se converte em amo de tudo, o deus.

Terceira libertação, libertação da lei. Já não se quer admitir nada como lei, porque esta limita necessariamente a liberdade, obrigando-a a conduzir-se com regra em uma certa orientação. Mas isso é inadmissível. É o homem que faz sua própria lei, tem sua consciência e, por conseguinte, tendo feito sua lei, não pode ser obrigado a cumprir outra além da sua. Se considera que uma lei social a ele imposta é necessária, admite-a; se acha que não convém, não a aceita. É isso que se dá em nossos países e também na Igreja. Veja-se as leis, o direito canônico ou ao menos o que dele resta. Em se tratando das rubricas litúrgicas, dos programas catequéticos, dos regulamentos dos seminários, cada um faz o que lhe apraz. Porque é este o princípio básico do liberalismo: cada um faz a sua lei. E esse princípio corrosivo se opõe diretamente a Deus — quem senão Deus nos impõe a Verdade? A revelação não é mais do que Nosso Senhor Jesus cristo. E Nosso Senhor é a lei. Ele é o Verbo, a lei de Deus, a lei da caridade que Ele nos impõe. Por isso, pode-se dizer que o liberal ataca diretamente Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo. Isto é muito grave, sumamente grave. Sem dúvida os católicos liberais não têm essa intenção nem esse desejo, mas pelo fato de praticar estes princípios, lutam contra Deus e Nosso Senhor, ainda quando não tenham teoricamente tal intenção. E além disso, esses homens vivem constantemente em contradição, como o sublinhava Cardeal Billot ao definir o católico liberal como o homem que vive na incoerência: com efeito, o católico liberal proclama corretamente a tese da Igreja, mas na prática toma a opinião pública e a sua opinião pessoal por lei.

Por conseqüência desses princípios, para o liberal, tanto em política como na Igreja, não há inimigos à esquerda. Só há inimigos à direita. O católico liberal é um sectário, já dizia Louis Veuillot. Não podem suportar os que mantém os dogmas, os que mantém a lei. E não podem suportá-los porque são para eles uma reprovação permanente.

Único Inimigo para o Liberalismo: A Tradição

Queridos amigos, aqui reside todo o problema de Êcone. Os liberais que estão instalados atualmente em Roma, que dominam na Igreja, que melhor diríamos ocupar a Igreja e deter os postos mais importantes, estão prontos para aceitar todos os compromissos possíveis com a esquerda, com os protestantes, com os budistas, com os pentecostais, com os comunistas, não põe nenhuma dificuldade, contanto que seja à esquerda. Mas dos que mantém a tradição, os que conservam a Santa Missa e os Sacramentos, não querem ouvir falar. Por isso não se deve dizer, como às vezes fazem alguns de nossos amigos tradicionalistas: “mas os senhores deviam fazer alguma pequena concessão. Nada de importante, uma parte da nova missa, por exemplo, e com isso seriam muito bem vistos em Roma e talvez até recebam o chapéu cardinalício”. Não podemos fazer isso porque nos encontramos diante de uma ideologia.

E a melhor prova de que eles não aceitariam essas concessões, é seu encarniçamento contra os que sustentam simplesmente uma atitude tradicional. Vede o que se passou em Friburgo (Suiça), há quinze dias. Quiseram destituir o Pe. Noël, pároco há 25 anos de uma paróquia do Baixo Friburgo. No entanto, esse sacerdote diz a missa nova e nunca se opôs a seu bispo nem ao Concílio, nem ao Papa, nem a qualquer coisa, mas mantém uma atitude tradicional, usa batina, faz rezar o rosário na Igreja, visita seus doentes, confessa durante todo o dia, não virou seu altar, em suma, conservou certas tradições, em conseqüência é preciso afastá-lo. Armou-se um escândalo. Todos os fiéis de sua paróquia o rodearam e seiscentos deles foram ao bispo entregar uma petição para impedir a destituição deste pároco que não tinha mais de sessenta anos, lembrando todo o bem que fizera na paróquia. Mas não: manter uma atitude tradicional basta para destituí-lo.

Não há inimigos à esquerda, todos estão à direita. Todos os que quiserem manter ainda que seja um pouco da Tradição, os que têm simplesmente uma atitude tradicional, são indesejáveis. Nessas condições, é inútil dizer-nos que basta fazer uma pequena concessão e tudo irá bem. Isso não é verdade. Isso é enganar-se totalmente sobre a natureza desses liberais. Vemo-lo a cada instante. Um seminário de Paray-le-Monial foi refugiar-se na diocese de Cortona com a aprovação do Cardeal Siri. Nesse seminário se usava toda a nova liturgia em língua vernácula, os seminaristas eram muito livres e tinham televisão, mas também havia disciplina, uma disciplina de piedade e uma atitude exterior de tradição — os seminaristas recebiam a batina, alguns a usavam, outros não. Pois bem, fecharam o seminário e puseram os seminaristas na rua.

Não nos venham dizer que é assunto de menor importância o que fazem com Êcone, que o fazem porque não aceitamos a nova liturgia e que se a adotássemos, tudo iria bem. Não é verdade, não é certo, as coisas são bem mais graves. Acabo de explicar-vos que se trata de uma história que vem de muitos séculos atrás. Trata-se da luta secular entre os Papas e a Verdade da Igreja contra os que querem casar a Igreja com o mundo, com a Revolução, a Verdade com o erro, o Bem com o mal. Esse é o liberal que não descansará até que a Igreja acabe por aceitar o mundo tal qual ele é: nem corrigido, nem convertido, mas assim como é. Pois bem, não é isso que Nosso Senhor quer, não é isso que Deus quer. Nosso Senhor quer que se convertam à Igreja e não que a Igreja se converta ao mundo. 

O Liberalismo nas Reformas Pós-Conciliares

No entanto, o que se passou no Concílio foi que a Igreja se converteu ao mundo, e não o mundo à Igreja. Os Padres se perguntavam o que fazer para aproximar-se do mundo, ser melhor recebido por ele, para que se mostrem mais favoráveis à Igreja. Os bispos conciliares disseram: “Tiraremos nossas cruzes de ouro, nossos anéis, e que o Papa tire a tiara, desça da cadeira gestatória. Vivamos como os pobres. Estejamos atentos ao mundo. Aceitemos suas misérias, que se ampliem as leis do matrimônio, da moral, suprimam os mandamentos da Igreja — isso pediu Máximos IV! — suprimam os mandamentos da Igreja, cada um faça o que quer, vá à missa quando tem vontade, uma vez por mês, ou a cada dois meses, isso basta…”. Em uma palavra, liberalizar, liberalizar, liberalizar. Esta foi a atmosfera que reinou no Concílio e nas reformas pós-conciliares. Poderia contar-vos — sem querer abusar de vossa paciência — o que me aconteceu como Superior Geral da Congregação dos Padres do Espírito Santo por ocasião do Capítulo Geral Extraordinário. Fui Superior Geral de 1962 a 1974. O Capítulo se reuniu em 1968. Tinha ainda seis anos como Superior. Pois bem, Mons. Moro, secretário da Congregação de Religiosos, na ausência do Cardeal Antoniutti, que estava em viagem pela América do Sul, me disse: “Deixai os vossos capitulares fazerem o que quiserem. Desde o Concílio, compreendeis, é necessário que sejam as bases que mandem, é necessário que vossos membros do Capítulo Geral se organizem entre si e nomeiem eles próprios alguém para presidir o Capítulo. Porque já não é necessário que seja o Superior Geral que o presida. Faríeis melhor indo passear na América”. Disse-me isto: “Faríeis melhor indo passear na América”. E ainda me restavam seis anos de mandato. Como quereis que uma congregação subsista nessas condições? E Mons. Moro me encareceu: “Deixai fazer, deixai fazer. Desde o Concílio, compreendeis, cabe aos capitulares tomar suas responsabilidades”. De fato, os capitulares nomearam uma equipe de três membros para presidir o Capítulo e isto foi uma revolução total em nossa Congregação. Desde o momento que vi tudo isto, disse que não continuaria exercendo o cargo em tais condições: a Santa Sé não apoiava os Superiores Gerais, não havia mais Direito Canônico, nem Constituições, entreguei minha demissão. Foi aceita rapidamente. Naquele momento, havia 5.200 membros em nossa congregação; hoje há menos de 4.000 (em 1975). Esse foi o resultado! A ruína pura e simples de nossa Congregação. Entreguei minha demissão porque não queria que a história pudesse dizer que foi Mons. Lefebvre quem arruinou a Congregação. Deste exemplo poderíeis dizer: “Não passa de um caso em particular, afetou somente ao senhor”. De maneira nenhuma. Contaram-me o caso do Superior Geral dos Redentoristas que foi passear na América durante seu Capítulo Geral Extraordinário. O conselho foi dado a outros. Tratava-se então de uma receita dada pela Congregação dos Religiosos. Pela mais alta instância do ponto de vista dos religiosos. Podeis facilmente imaginar o que poderá sair das congregação religiosas com tais princípios de governo. 

Fiéis Guardiões da Tradição, Somos os Melhores Servidores do Papa

São essas as razões pelas quais não admitimos nenhum tipo de compromisso com respeito a Êcone. Poderão dizer o que quiserem: não aceitaremos abandonar a Tradição da Igreja. Não aceitaremos separarmo-nos de todos os Papas que têm falado desde o Concílio de Trento e com o Concílio de Trento. Preferimos estar com os Papas de quatro séculos do que estar com a atual Cúria romana que procura novidades, as realiza e tende assim a converter-nos em protestantes e modernistas. Não queremos isso, e estamos persuadidos de que, assim agindo, estamos com o Papa. O Papa não pode estar contra a Tradição, é impossível. Porque, com efeito, o que é um Papa? Disse-nos Pio XI na constituição Pastor Aeternus: “O Espírito Santo não foi prometido aos Sucessores de Pedro para lhes permitir publicar, segundo suas revelações, uma doutrina nova, mas para conservar estritamente e expor fielmente, com sua assistência, as revelações transmitidas pelos Apóstolos, quer dizer, o depósito da fé”.

Esta é a missão do Papa: guardar fielmente o depósito da fé e transmiti-lo também fielmente. Está claro que algumas expressões podem mudar, mas ainda assim se deve conservar as expressões definidas pelos Concílios, empregadas nas Profissões de Fé, como, por exemplo, a expressão “um só Deus em três Pessoas”. Essas expressões definidas têm um sentido tão preciso que não se pode mudá-las sem risco de modificar a substância de nossa fé para cuja expressão são necessárias palavras precisas e fixas. É também o caso do termo “transubstanciação” para a Sagrada Eucaristia, que a Igreja definiu uma vez por todas. Não podemos dizer hoje: “Já não sabemos o que é substância; com as descobertas da ciência moderna já não se pode falar em transubstanciação”. Isto é falso, absolutamente falso. Não se tem o direito de mudar essas coisas que já são definitivas. Por isso rejeitamos as novidades. E estamos persuadidos de estar com o Santo Padre ao conservar a Tradição, de sermos seus melhores servidores, ainda que eventualmente pareçamos em oposição a ele, por causa das tendências liberais dos que o rodeiam, tendências estas sobre as quais é preciso dizer que sua infância, sua adolescência transcorridas em meio liberal o tornaram mais sensível a elas do que qualquer outro Papa. Essa influência liberal que pesou sobre o Santo Padre em sua juventude é conhecida de todos e segundo um artigo, a meu ver muito bem composto, ele participava nessa época de um jornalizinho de esquerda chamado La Frondo. Compreende-se muito bem que um Papa assim possa ter sido mais influenciado por tendências liberais. É normal, não é impossível. Deus não declarou que toda palavra saída da boca do Papa seria infalível, nem que todos os Papas seriam santos, nem que estavam isentos de má ações. Isto não é certo, a história nos ensina. Talvez se haja insistido demais sobre a infalibilidade papal desde o Concílio Vaticano I. É certo que tivemos Papas extraordinários e que por isso se estendeu entre o povo fiel e alguns clérigos a crença de que toda palavra saída da boca do Papa seria infalível. Mas isso não é a verdade. Há condições para a infalibilidade que foram exatamente definidas, segundo o Papa fale “ex cathedra” ou somente em seu magistério ordinário. Compreende-se então, muito bem, que um Concílio que é pastoral, que quer realizar um “aggiornamento”, um Concílio que não se quer dogmático — o Papa lembrou isso há um mês — compreende-se perfeitamente que nem todas as palavras de semelhante concílio sejam infalíveis. É preciso saber estabelecer distinções, pois este concílio não é semelhante aos outros, os quais foram convocados para lutar contra um erro determinado e precisar uma verdade da Igreja. Este não, como o disse expressamente o Papa João XXIII: “Nós não queremos definir nenhuma nova verdade; por conseguinte, não queremos fazer um concílio dogmático, queremos fazer um concílio pastoral”. Por isso mesmo, deixava de lado, se assim se pode dizer, o carisma da infalibilidade que é necessário quando o Papa faz alguma definição. Por isso, creio pessoalmente que podemos julgar esse concílio e ainda criticá-lo, isto é, examinar cada esquema para ver quais são as frases absolutamente conformes a tradição e quais as novas, as quais, por novas, terão de passar pelo crivo da Tradição. Da Tradição, e não de nosso próprio juízo, como nos reprovam. Dizem que somos nós que julgamos, mas não é assim. Dizem-nos: “Os senhores se opõem ao Papa, aos bispos, ao Concílio”. Mas não! Nós simplesmente comparamos o que disseram os Papas e o que disse o Concílio. Se há coisas que parecem contraditórias, é de absoluta necessidade confrontar o Concílio com a Tradição. Não se pode fazer outra coisa. 

Êcone Continua pela Igreja e Pelo Papa

Essa é nossa posição e nela continuaremos. Certamente temos quem nos reprove, mas de minha parte acho que não podemos dilapidar as vocações sacerdotais hoje em dia. Diria que é como se quisessem nos fazer pisotear as relíquias. A Igreja quase não tem hoje verdadeiros seminários, que apliquem as leis que sempre foram aplicadas na formação de santos sacerdotes. Visitei o Brasil, Argentina, Colombia, América do Norte. Conheci seus seminários e seus bispos, os quais dizem: “Não temos mais vocações”. E deve se ver os seminaristas que estão nesses seminários: cabelo comprido, violão, jovens que se perguntam o que fazem ali. E alguns queriam que fechasse meu seminário, que reuniu de todos os horizontes do mundo algumas boas vocações, e que as deixasse na rua. Não! Pela Igreja e pelo Papa, pela honra de Deus Nosso Senhor, quero conservar e continuar formando esses jovens — é impossível que Deus não bendiga essa obra. Abençoou-a dando tudo o que desejávamos, e esse é um sinal de que, apesar de tudo, nossa obra prestará um serviço à Igreja. Estou certo de que, depois da tormenta que hoje sacode a Igreja, reconhecerão seus bons fundamentos. O próprio Mons. Adam, bispo de Sion onde está o Seminário de Ecône, me dizia, fazem oito dias, durante uma refeição: “Monsenhor, é preciso que vosso seminário continue”. Respondi-lhe: “Monsenhor, o senhor mesmo foi quem o suprimiu, e quer que continue?!”. “É preciso que continue! É preciso. Continuem como Seminário Internacional. Talvez pudessemos torná-lo reconhecido por Roma, eu mesmo poderia reconhecê-lo, mas se fariam algumas modificações”. “Atenção, quero saber o que vai me pedir, porque não farei qualquer coisa. Em todo caso, se o senhor quer que meu seminário continue, eu também o quero”. Vede a incoerência: o mesmo Mons. Adam declara na televisão que o Seminário de Ecône é uma seita, e me pede para continuá-lo. Já não entendo nada, mas estou persuadido de que Deus quer que esse Seminário continue e por isso estamos decididos a continuá-lo. 

Conservemos a Fé

Agradeço de antemão as orações que podeis rezar por nós e a generosidade que tivestes e que ainda tendes para conosco. E espero que um dia, se Deus permitir, haverá vocações que virão da Áustria para Ecône. Sabeis que abrimos uma casa em Weissbad, perto de Appenzell e não longe do lago de Constança, para os seminaristas de língua alemã. Já temos um sacerdote austríaco neste seminário e espero que um dia teremos seminaristas austríacos. Peço-lhes que espalhem a notícia para que os jovens possam vir se unir a nós. Acrescento que espero que muita gente tome parte nessa associação mariana de São Pio X, e adquiram assim uma piedade profunda e uma grande devoção por São Pio X, o último Papa canonizado e que tanto lutou contra os erros de que lhe falei. Confiemo-nos a ele. Por último recomendo-vos o Catecismo do Cardeal Gasparri que foi recentemente reeditado, numa tradução do Dr. Steinhart, com um prefácio meu. Conservai zelosamente este catecismo. Ensinai-o a vossos filhos. Lede, para conservar a fé. A fé, com efeito, é um dom, mas é preciso mantê-lo. No dia de vosso batismo, o sacerdote perguntou aos padrinhos: “O que lhes dá a Fé?” e eles responderam: “A Vida Eterna”. Então, se a fé nos dá a vida eterna, não devemos ter bem mais precioso, e devemos estar prontos para morrer, para dar até a última gota de nosso sangue antes de abandonar a fé católica.

Fonte: Permanencia