RESTAURAÇÃO DO MATRIMÔNIO CRISTÃO – PARTE 1

mat2Até agora, Veneráveis Irmãos, temos admirado com veneração as disposições estabelecidas pelo sapientíssimo Criador e Redentor do gênero humano acerca do matrimônio, magoados simultaneamente por ver os santos objetivos da divina Bondade tantas vezes tornados vãos e vilipendiados pelas paixões, erros e vícios dos homens. É, pois, natural, que empreguemos a solicitude paterna do Nosso espírito em buscar remediar oportunamente e extirpar completamente os perniciosos abusos já mencionados, e em restituir por toda a parte ao matrimônio a devido respeito.

Para isto servirá principalmente recordar aquela máxima certíssima, que é geralmente admitida pela sã filosofia e pela sagrada teologia: para reconduzir ao antigo estado, de harmonia com sua natureza, as coisas que se desviaram da reta ordem, não existe outro caminho senão conformá-las com a razão divina, que, como ensina o Doutor Angélico (Summ. Theolog. 1ae. 2ae. q. 91, a 1-2), é o exemplar da perfeita retidão. Foi por isto que o Nosso Predecessor, de feliz memória, Leão XIII com razão atacava os naturalistas com estas gravíssimas palavras: “É lei divinamente sancionada que as coisas instituídas pela natureza e por Deus se nos apresentem tanto mais úteis e salutares quanto mais inteira e imutavelmente permaneçam em seu estado natural, uma vez que o Deus Criador de todas elas bem soube o que é necessário à sua instituição e manutenção e a todos ordenou, por vontade e inteligência sua, de modo que cada uma possa convenientemente alcançar seu fim. Mas, se a temeridade e a maldade dos homens quiser mudar e transformar a ordem das coisas providentissimamente estabelecida, então as próprias coisas instituídas com suma sapiência e igual utilidade ou começam a prejudicar, ou deixam de beneficiar, quer porque, com a mudança, tenham perdido a virtude de fazer bem, quer porque o próprio Deus resolvesse assim castigar o orgulho e audácia dos mortais” (Enc. Arcanum, 10 fevereiro de 1880).

O desígnio divino

É pois necessário, para pôr em sua devida ordem a matéria matrimonial, que todos considerem o desígnio divino acerca do matrimônio e procurem conformar-se com ele.

Uma vez que a tanto se opõe sobretudo a força da concupiscência desenfreada, que é sem dúvida o motivo principal por que se peca contra as santas leis conjugais, e não podendo o homem submeter as paixões se primeiro não se submeter a Deus, precisa, antes de mais nada, de dirigir a isto os seus cuidados, conforme à ordem divinamente estabelecida. É lei irrevogável que quem vive sujeito a Deus veja as paixões e a concupiscência submeter-se a si com o auxílio da graça divina, e que, ao contrário, quem é rebelde a Deus experimente e sofra a luta interna que lhe é movida pelas paixões violentas. E com quanta sabedoria isto foi determinado, assim o expõe Santo Agostinho: “De fato é justo que o inferior se submeta ao superior, de forma que todo aquele que deseja que o que lhe é inferior se lhe sujeite deve sujeitar-se ele mesmo ao superior. Reconhece a ordem, procura a paz! Tu a Deus, a carne a ti. Que há de mais justo, de mais belo? Tu ao maior, o menor a ti; serve tu Aquele que te criou a fim de que te sirva a ti aquilo que para ti foi criado. Não entendemos nem propomos a ordem pela forma seguinte: a ti a carne e tu a Deus, mas tu a Deus e a ti a carne! Mas, se desprezares o ‘tu a Deus’, nunca realizarás o ‘a ti a carne’. Tu, que não obedeces ao Senhor, serás atormentado pelo servo” (S. Agost., Enarrat. in Ps. 143).

Tais disposições da Sapiência divina são também atestadas, por inspiração do Espírito Santo, pelo Santo Doutor das Gentes, quando, a propósito dos sábios amigos que recusavam prestar culto e veneração ao Criador do Universo, deles bem conhecido, se exprime assim: “Por isso Deus os entregou aos desejos dos seus corações, à impureza, para que ultrajem em si mesmos os seus corpos”, e ainda: “Por isso Deus os entregou às paixões da ignomínia” (Rom 1, 24, 26). Porque “Deus resiste aos soberbos e concede a graça aos humildes” (Tgo 4, 6), sem a qual, como ensina o mesmo Doutor das Gentes, o homem não pode subjugar a rebelde concupiscência (Cf. Rom 7, 8).

Piedade profunda

Uma vez que não é possível refrear, como se deve, os indômitos desejos sem que primeiro a alma preste humilde homenagem de piedade e de reverência a seu Criador, é sobretudo necessário que os que contraem o sagrado vínculo matrimonial estejam perfeitamente compenetrados de profunda piedade para com Deus, que lhes informe toda a vida, e lhes encha a inteligência e a vontade de suma veneração à Majestade divina.

Bem procedem, pois, e conforme ao mais são e perfeito sentido cristão, os Pastores de almas que, para impedir que os esposos venham durante o matrimônio a afastar-se da lei de Deus, os exortam principalmente a unir-se totalmente a Deus por meio de exercícios de piedade e religião, invocando-O constantemente, a freqüentar os sacramentos, a fomentar e a manter sempre em tudo sentimentos de devoção e piedade para com Ele.

Ao contrário, enganam-se redondamente os que, postos de parte ou desprezados estes meios que transcendem a natureza, julgam poder, mediante o uso e as descobertas das ciências naturais (como a biologia, o estudo das transmissões hereditárias e outras), persuadir os homens a dominar as concupiscências carnais. Nem com isto queremos dizer que não se tenham em conta também estes auxílios naturais, quando não sejam ilícitos; pois é o próprio Deus, o único Autor da natureza e da graça, que dispôs que os bens, tanto de uma como de outra ordem, sirvam para uso e utilidade dos homens. Os fiéis podem e devem, pois, servir-se também destes auxílios naturais, mas erram aqueles que julgam bastarem estes para garantir a castidade da união matrimonial, ou que julgam encontrar neles maior eficácia do que no auxílio da graça sobrenatural.

Obediência à Igreja

Mas a conformidade da convivência e dos costumes matrimoniais com as leis de Deus, sem a qual a sua restauração não pode ser eficaz, supõe que por todos possa ser conhecido facilmente, com firme certeza e sem perigo de erro, quais sejam essas leis. É claro que se daria ensejo a grande número de enganos e se misturariam muitos erros com a verdade se tal investigação fosse entregue à razão individual, munida somente de luz natural ou confiada à interpretação privada da verdade revelada. Se isto se pode dizer de muitas outras verdades de ordem moral, deve-se especialmente dizer das que se referem ao matrimônio, uma vez que é tão fácil que a paixão da voluptuosidade venha a dominar, e enganar, e corromper a frágil natureza do gênero humano, tanto mais que a observância das leis de Deus requer por vezes dos cônjuges sacrifícios árduos e diários, e que a experiência demonstra ser destes exatamente que se serve a fragilidade humana como pretexto para se eximir da observância da lei divina.

Para que, portanto, o conhecimento verdadeiro e sincero da lei divina, e não a sua simulação ou imagem corrompida, sirva de luz e guia às inteligências e ao procedimento dos homens, é necessário que a par da piedade a do desejo de obediência a Deus exista uma filial e humilde obediência à Igreja, pois que foi o próprio Cristo Senhor Nosso quem constituiu a Igreja Mestra da verdade também nestas coisas respeitantes à direção e à regulamentação dos costumes, apesar de muitas delas não serem, por si mesmas, inacessíveis à inteligência humana. E assim como o Senhor, quanto às verdades naturais respeitantes à fé a aos costumes, quis acrescentar à simples luz da razão a revelação, para que estas coisas justas e verdadeiras, “ainda nas condições presentes da natureza humana, possam por todos ser conhecidas facilmente, com certeza absoluta e sem sombra de erro” (Conc. Vat. sess. III, cap. 2), assim com o mesmo fim constituiu a Igreja guarda e mestra de todas as verdades que dizem respeito à religião e aos costumes. A ela, por conseguinte, devem os fiéis, se quiserem conservar-se imunes de erros de inteligência e da corrupção moral, obedecer e submeter a inteligência e o coração. E, a fim de não se privarem de um auxílio prestado com tão larga benignidade por Deus, devem prestar a devida obediência não só às definições mais solenes da Igreja mas também, guardadas as devidas proporções, às outras constituições e decretos por que certas opiniões são proscritas e condenadas por perversas ou perigosas (Cf. Conc. Vat., sess. III, cap. 4; Cod. Jur. Can., c. 1324).

Educar e ajudar

Os cristãos devem, por conseguinte, afastar-se de uma exagerada independência de pensamento e de uma falsa “autonomia” da razão humana, ainda com respeito a certas questões que acerca do sacramento do matrimônio se debatem em nossos dias. Mal ficaria, efetivamente, a qualquer cristão digno deste nome o fiar-se na sua inteligência soberbamente a ponto de querer acreditar só nas verdades cuja natureza intrínseca venha a conhecer por si, o julgar que a Igreja, por Deus destinada para mestra e orientadora de todos os povos, não está suficientemente esclarecida quanto às coisas e circunstâncias modernas, ou então o não prestar-lhe assentimento e obediência senão no que impõe por meio de definições mais solenes, como se fosse lícito pensar que suas outras decisões pudessem ter-se como falsas ou não robustecidas por motivos suficientes de verdade e honestidade. Ao contrário, é próprio de qualquer verdadeiro e fiel cristão, sábio ou ignorante, deixar-se dirigir e guiar pela Santa Igreja de Deus em tudo o que respeita à fé e aos costumes, por meio do seu Supremo Pastor, o Pontífice Romano, que, por sua vez, é dirigido por Jesus Cristo Nosso Senhor.

Ora, assim como tudo se deve referir à lei e à mente de Deus, assim, para que se alcance uma geral e estável restauração do matrimônio, devemos empenhar-nos especialmente por que os fiéis sejam bem instruídos a seu respeito, oralmente e por escrito, não uma só vez e superficialmente, mas amiúde e aprofundadamente, com argumentos claros e sólidos, de modo que estas verdades se vinquem bem na inteligência e penetrem até ao íntimo do coração. Por que conheçam e meditem assiduamente na sabedoria, santidade e bondade demonstradas pelo Senhor para com o gênero humano, instituindo o matrimônio, baseando-o em leis sagradas e, especialmente, elevando-o à dignidade de Sacramento, pelo qual se abre aos esposos cristãos uma fonte de graças tão copiosas que possam corresponder, em castidade e fidelidade, aos altos fins do matrimônio, para bem e salvação própria e dos filhos, de toda a sociedade civil e da humanidade inteira.

E, se os modernos destruidores do matrimônio tratam com tanto empenho, por meio de discursos, livros e opúsculos e outras inumeráveis formas, de perverter as inteligências, corromper os corações, pôr a ridículo a castidade matrimonial e exaltar os vícios mais vergonhosos, muito mais devereis vós, Veneráveis Irmãos, a quem “o Espírito Santo constituiu Bispos para dirigir a Igreja de Deus por Ele conquistada com o seu sangue” (At 20, 28), aproveitar todos os meios próprios, quer por Vós mesmos, quer por meio dos sacerdotes a Vós sujeitos, quer ainda mediante os leigos oportunamente escolhidos entre os inscritos na Ação Católica, por Nós tão desejada e recomendada para auxílio do apostolado hierárquico, a fim de contrapordes a verdade ao erro, o esplendor da castidade à torpeza do vício, a liberdade dos filhos de Deus à escravidão das paixões (Cf. Jo 8, 32 e segs.; Gal 5, 13), a perene estabilidade do verdadeiro amor conjugal e a inviolabilidade, até à morte, do prestado juramento de fidelidade, à iníqua facilidade dos divórcios.

Assim, agradecerão os cristãos a Deus de todo o coração o estarem vinculados pelo preceito e constrangidos com suave violência a manter-se o mais afastados possível de toda a idolatria da carne e da ignóbil escravidão da impureza. Sentirão profundo horror e evitarão com o maior empenho as nefandas opiniões que hoje exatamente, para desonra da verdadeira dignidade humana, se vão divulgando oralmente e por escrito, apresentando com o rótulo de matrimônio perfeito um “matrimônio depravado”, como justa e merecidamente foi chamado.

Trecho da Encícilica Casti Connubii, de Pio XI