[Nota da Permanência: O artigo a seguir é uma compilação das conferências que o Pe. Hervé de la Tour proferiu ao corpo docente da Immacule Conception Academy, em Post Falls, Idaho, Estados Unidos, e aos padres da FSSPX do distrito estadunidense, na reunião anual ocorrida entre 12 e 16 de fevereiro de 2001.]
Introdução: A causa do problema da educação moderna
Em 1669, na Festa de Corpus Christi, os monges da Abadia de Saint-Wandrille cantavam Matinas. O quinto trecho era de Santo Tomás de Aquino. Lia-se: “Accidentia sine subjecto subsistunt.” O Doutor Angélico explicava ali que após a consagração, os acidentes do pão permanecem sem a sua substância, que se transformou no corpo de Nosso Senhor. Então algo inacreditável aconteceu. Os jovens monges começaram a assobiar com o intuito de demonstrar oposição a Santo Tomás. Por que tal atitude? Eles vinham estudando a filosofia de René Descartes (1569-1650), o qual rejeita a distinção tomista entre substância e acidente. Descartes recusou-se também a dar uma explicação filosófica ao mistério da Presença Real. Para ele, razão e fé pertencem a domínios inteiramente distintos. Visto que a Presença Real é um fenômeno sobrenatural, seria inútil utilizar a filosofia natural para compreendê-la. Foi por isso que os monges, imbuídos de filosofia cartesiana, rejeitaram o trecho de Santo Tomás e decidiram perturbar o Ofício Divino. O incidente deve ter sido algo marcante, pois foi registrado nos anais do mosteiro. (Continue a ler)
Reflitamos sobre essa anedota. É típica da segunda metade do século XVII, quando, na França, as ordens educadoras (jesuítas, oratorianos, doutrinários, etc) foram aos poucos se contaminando com os erros de Descartes. Até mesmo os noviciados das ordens contemplativas começaram a ensinar filosofia cartesiana, como aconteceu aos beneditinos de Saint-Wandrille. Ilustra também o tema desta conferência, que é a influência da filosofia na educação e, através da educação, na vida espiritual. É preciso entender que o Ofício Divino é o centro da vida do monge. O exemplo acima mostra que a sua paz foi destruída por uma falsa filosofia. A maneira correta de rezar foi desordenada por causa de uma educação errada.
Em 1969, quando foi promulgado o Novus Ordo, costumávamos dizer “lex orandi, lex credenti.” Rejeitamos a Missa Nova pois não expressa a fé católica. Da maneira que se reza depende a maneira que se crê. Uma liturgia defeituosa pouco a pouco envenena a fé. Pois bem, poderíamos ter dito em 1669, ao testemunhar os monges bagunceiros assobiarem durante Matinas, “lex studenti, lex orandi,”: da maneira que se estuda depende a maneira que se reza. Uma educação defeituosa traz graves conseqüências à vida espiritual. Esse incidente registrado nos anais da Abadia de Saint-Wandrille é portanto simbólico, e será o ponto de partida desta conferência.
Estudaremos a influência da falsa filosofia de Descartes no sistema moderno de educação. Acredito que a filosofia da educação de grande parte de nossas escolas não é suficientemente inspirada nos princípios de Santo Tomás, pois tem sido influenciada pelos erros cartesianos, tal como aconteceu nas escolas laicas. Essa é uma das razões pela qual nossas escolas não estão dando os frutos que esperamos. Parece haver uma desproporção entre a grande dedicação dos professores e o resultado apresentado pelos alunos. Poderia isso ser explicado (ao menos em parte) pela falta de princípios tomistas em nossa formação? Creio que sim. John Senior disse:
Controvérsias em educação, como em tudo mais, são conseqüências de divergências filosóficas e, em última análise, religiosas1.
O problema da educação moderna é a filosofia na qual se inspirou.
Idealismo cartesiano
Descartes é o pai do idealismo, um erro pernicioso que causou prejuízo inaudito ao conhecimento humano. Em resumo, em vez de partir do ser, a filosofia idealista toma como ponto de partida o pensamento. Este é um erro muito pior que os precedentes. Por quê? Porque não mais ataca uma verdade particular conhecida pelo intelecto, mas ataca o próprio intelecto como faculdade de conhecer a verdade. Descartes acreditava que nosso intelecto não atinge diretamente as coisas que nos rodeiam, mas sim as idéias que possuímos destas coisas. Sua filosofia era inteiramente racionalista, ou seja, ele acreditava na eficácia da razão sozinha, sem auxílio de mais nada. Havia uma completa separação entre fé e razão, em vez da colaboração mútua encontrada em Santo Tomás. A filosofia cartesiana é essencialmente anticatólica, embora Descartes acreditasse ser católico devoto.
Resumamos as três características principais do racionalismo. Em primeiro lugar, o racionalismo recusa submeter-se à realidade através da experiência (por conseguinte há separação entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual). Descartes não se interessava pela evidência do objeto, mas tão-somente pela chamada “idéia clara”. Isso é subjetivismo puro. Em segundo lugar, o racionalismo renega o conhecimento recebido dos antigos mestres através da tradição (isso afastou o pensamento moderno da sabedoria dos antigos, especialmente de Aristóteles). Descartes quis reconstruir por inteiro o edifício da investigação humana. Sua atitude demonstra individualismo temerário. Em terceiro, o racionalismo quer buscar a verdade sem auxílio da revelação sobrenatural (como resultado separa-se a filosofia da teologia). Descartes jamais permitiu que um dogma católico interferisse em sua busca por conhecimento. É naturalismo declarado.
Esse breve resumo nos demonstra que Descartes inaugurou uma nova orientação na filosofia. Pode-se notar o espírito do Renascimento em ação. A razão, em busca de independência, não quer mais se submeter a Deus. Descartes preparava o terreno para Kant e Hegel. Se nossas idéias não correspondem às coisas criadas por Deus, o que impedirá que nossa mente seja divinizada, já que se tornou a realidade última? Logicamente, o idealismo conduz ao panteísmo. É por isso que desde 1633 a Igreja manteve as obras de Descartes no Índice dos Livros Proibidos. Contudo, apesar da proibição, ao longo da segunda metade do século XVII todas as ordens educadoras contaminaram-se com seus erros filosóficos, como provou o grande historiador Jean de Viguerie, em seus livros bem documentados. Isso foi uma grande tragédia e trouxe graves conseqüências à educação, que é o assunto desta conferência.
Renovação católica do ensino
O século XX viu uma renovação na educação católica. A razão disso foi em grande parte a “redescoberta” do tomismo no final do século XIX. Após o Renascimento, a doutrina de Santo Tomás não era mais a fonte principal nas questões de educação. Foi preciso esperar por homens como Pe. Roger-Thomas Calmel (1914-1975) para que os princípios tomistas fossem novamente aplicados à organização de uma escola. Pe. Calmel escreveu uma excelente obra intitulada École chrétienne renouvelée2 (A escola católica renovada), onde mostra como a doutrina de Santo Tomás pode tornar-se a alma de uma escola católica. Foi ele a inspiração das irmãs dominicanas do Santo Nome de Jesus, de onde saíram as irmãs de Fanjeaux, que dirigem uma escola em Post Falls, Idaho, nos Estados Unidos.
Outro elemento dessa renovação na educação foi a “redescoberta” do canto gregoriano na segunda metade do século XIX. Após o Renascimento, a liturgia havia se diferenciado muito do que era na Idade Média. Dom Guéranger explica isso em seu maravilhoso prefácio de L’ Année Liturgique (O Ano Litúrgico). O retorno à antiga tradição da liturgia romana promovido por São Pio X deu-se principalmente através dos monges beneditinos de Solesmes. No século XX, homens como Henri Charlier (1883–1975) (cujo irmão André foi diretor da famosa escola de Maslacq) compreendeu que o canto gregoriano tinha importância capital para a formação da juventude. Henri Charlier ensinou canto aos paroquianos de Mesnil-Saint-Loup (a paróquia do monge beneditino Père Emmanuel). Seu irmão André conduzia sua escola sob os mesmos princípios. Escreve ele:
A Igreja desejou a restauração do autêntico canto gregoriano, pois julga que o objetivo de tal arte é fazer com que as almas entrem no imperscrutável mistério da Fé, cujas portas delicadamente abre.
Do século VI ao XII só existiram escolas monásticas. O Saltério latino era o livro padrão. Os salmos são uma ferramenta maravilhosa para ensinar aos estudantes o espírito de louvor. O homem foi criado para glória de Deus, e o Ofício Divino direciona nossa alma ao céu.
No século XIII fundaram-se as grandes universidades. Educadores dominicanos ensinavam a escolástica aos jovens medievais. No entanto, Santo Tomás crescera no Monte Cassino e morreu em Fossa Nova. De certo modo, a sementeira da teologia dominicana era a vida beneditina. Como disse o Cardeal Newman, “A Igreja não abandonou São Bento ao encontrar São Domingos.” Após a Reforma, no século XVI, entra em cena Santo Inácio e criam-se os colégios jesuítas. Foram escolas excelentes, mas os professores logo tomaram por mestre Suarez e abandonaram Santo Tomás, contrariamente ao que desejava Santo Inácio. Isso os enfraqueceu, e no século XVII os padres se defrontaram com Descartes, o qual havia sido educado pelos próprios jesuítas no colégio de La Flêche.
Não me estenderei aqui em questões históricas, desejo apenas demonstrar que a renovação católica na educação do século XX só se tornou possível quando os professores religaram-se às tradições beneditina e dominicana. A educação, para ser completa, necessita das humanidades (e os jesuítas eram justamente famosos por isso), mas também da sabedoria sólida de Santo Tomás e do espírito teocêntrico da liturgia. Homens como Pe. Calmel e André Charlier foram grandes educadores porque hauriram nesses três mananciais.
Mas voltemos a Descartes. Vejamos como sua doutrina contradiz Santo Tomás, qual influência tem no sistema moderno de educação, e o que se pode fazer para conter sua perniciosa influência. Resumiremos seus erros em cinco tópicos.
Descartes defendia que as idéias, para transmitir conhecimento verdadeiro, devem ser absolutamente claras. Portanto a teologia não pode ser uma ciência verdadeira, já que nela há certa obscuridade, em razão do mistério de Deus. No currículo moderno, dá-se pouquíssimo espaço à teologia. Dou-lhes um exemplo: há apenas uma hora semanal de doutrina cristã em algumas escolas francesas da Fraternidade. O motivo disso é a enorme quantidade de matemática e física exigida nos programas de vestibular. O problema é que nossos alunos acreditam que o que realmente importa é ciência (no sentido moderno da palavra). O conhecimento de Deus, em vez de iluminar o intelecto, é confundido com piedade emocional. Para Santo Tomás, Deus deve estar em primeiro lugar no currículo de uma escola católica. É necessário reconhecer a teologia como uma ciência verdadeira e a rainha das matérias. Ela é também um conhecimento sobrenatural, ao mesmo tempo especulativo e prático.
Pio XII dizia aos estudantes:
Todos os cristãos, mas especialmente aqueles dedicados ao estudo, devem ter uma educação religiosa o mais profunda e orgânica possível. Na verdade, é perigoso desenvolver o conhecimento em todas as áreas e não aprofundar a herança religiosa adquirida nos primeiros tempos de infância. Incompleta e superficial, essa herança acabará sufocada e provavelmente destruída pela cultura laica e pelos perigos da vida adulta. Muitos têm sua fé abalada porque não esclareceram dúvidas e não resolveram problemas. É necessário que a fundação da vossa fé seja racional, e é mister uma formação adequada em apologética. Posteriormente vós deveis provar as belezas da teologia dogmática e as harmonias da teologia moral. Por fim, tentareis incluir a ascética cristã em vossos estudos e avançar para os altos vôos da teologia mística. Ah, se pudésseis ver o cristianismo em toda sua grandeza e esplendor!3
No entanto, é certo que o desenvolvimento de vosso conhecimento de história, literatura e ciência, sem um aprofundamento adequado na religião, que é indispensável, poderia trazer grandes perigos para vossas almas… Não estejais satisfeitos até que tenhais penetrado o quanto possível no sentido profundo da verdade religiosa, e até que a própria verdade tenha penetrado em vós — vossa inteligência, vossa imaginação, vosso coração e todo o vosso ser4.
Importância da doutrina cristã
O que é preciso mudar em nossas escolas para que os alunos recebam uma formação religiosa sólida? Creio ser possível iniciá-los em teologia no Ensino Secundário. Precisamos ajudá-los a penetrar nos grandes mistérios da Fé. O Pe. Calmel explica que se pode fazer isso quando o professor possui formação teológica. Ensinará então o que aprendeu. Todavia, como é preciso averiguar se o aluno entendeu ou não a matéria, o professor deve fazê-lo falar. Sugiro reviver os exercícios orais da disputatio. Neles, o professor desempenha o papel de “advogado do diabo” ao utilizar os raciocínios perniciosos de hereges famosos (Ário, Nestório, Pelágio, Lutero, etc) e o aluno deve refutá-los com o que aprendeu na classe. Nas aulas de teologia (que o Pe. Calmel chama “doutrina cristã”) pode-se fazer relações com a história da Igreja (concílios, Padres e Doutores, etc). É preciso também usar estes exercícios para temas modernos como a Missa Nova, a liberdade religiosa e o ecumenismo. A única maneira de formar mentes católicas é dar aos alunos convicções profundas. Nossos rapazes precisam amar a verdade de todo o coração (Veritas é o moto da ordem dominicana). Desse amor ardente surgirá o desejo de comunicar a verdade ao próximo, em outras palavras, o zelo apostólico.
Oração mental
Tenho mais duas sugestões para implementar essa primazia de Deus nas mentes dos alunos: é preciso ensiná-los a meditar. Creio que a oração individual é importantíssima. Freqüentemente é o que faz a diferença entre o aluno que persevera após o Ensino Secundário e o que não o faz. Recitar o Rosário em família é necessário, mas não é suficiente. Os meninos precisam aprender a oração mental de algum modo, isto é, falar a Deus com suas próprias palavras. Cada professor deve adaptar isso a série para a qual ensina. Ele guiará o aluno na meditação ajudando-o a refletir sobre alguma verdade eterna aplicada em sua vida pessoal (como nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio: “Jesus sofreu por mim… o que posso fazer por Ele?”). Quando o tema da aula for a Encarnação, a Paixão, ou o Santíssimo Sacramento, deve-se concluir com cinco minutos de oração. É necessário que os alunos aprendam a evitar a separação entre o estudo e a vida de oração. Uma vez mais, tudo deve se integrar. Por que desejamos saber mais sobre Deus? Porque o amamos. Quanto mais sabemos sobre Ele, mais O amamos. O verdadeiro amor conduz à oração.
Visita a um mosteiro
A minha segunda sugestão é levar nossos alunos, ao menos uma vez nos anos de Ensino Secundário, a passar algum tempo num mosteiro. Geralmente é mais fácil que um padre venha à escola pregar um retiro. Com efeito, os retiros de Santo Inácio são proveitosos e nossos alunos devem fazê-los. Mas acredito que a companhia dos monges dá frutos que são particularmente importantes aos mais novos. André Charlier escreve: “Nosso mundo moderno não entende nada, pois perdeu o sentido do sagrado.” O Ofício Divino é o louvor a Deus, por vezes gratuito, descompromissado, sem valor utilitário. Nossos meninos precisam ver os monges, cuja vida é dedicada à adoração da Santíssima Trindade. O Abade Marmion dizia que a vida monástica é uma longa Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto. Os meninos, ao comer, trabalhar e rezar (ora et labora) com os monges, provarão a paz beneditina (de fato pax é o seu lema). E o canto do Ofício Divino nas escolas? Em alguns internatos os meninos rezam Completas. É recomendável que os alunos de Ensino Secundário cantem uma hora do Pequeno Ofício da Santíssima Virgem Maria todos os dias. Os salmos são curtos e podem ser facilmente memorizados. Não há escola de oração melhor que os salmos.
Secularização do conhecimento
Segundo Descartes, a teologia não é uma ciência. Não sendo uma ciência, não é um saber e portanto não tem nenhuma influência nas outras matérias do currículo. O Descartes filósofo e cientista estava divorciado do Descartes crente. Tal separação conduz à secularização do conhecimento. O objetivo de Descartes não é conhecer um mundo criado por Deus para melhor conhecê-Lo e amá-Lo, mas dominar o mundo a fim de tornar a vida mais confortável através da tecnologia. Há uma inversão na orientação do conhecimento. Para o homem medieval, as coisas falavam do Deus que as criou e ordenou. Para o homem moderno, as coisas não dizem nada, estão na terra para serem analisadas mediante equações algébricas. No sistema de educação medieval, todas as coisas integravam um todo. Não havia assuntos “seculares”. Tudo devia ser ensinado à luz da Fé. A teologia é um conhecimento, e um dos atributos do conhecimento é dar harmonia e unidade às partes do todo, é “integrá-las”. Nos livros escolares modernos de física ou biologia, não se faz nenhuma referência a Deus. Ocorre o mesmo na literatura. Os temas “seculares” estão completamente separados dos “religiosos”. Essa divisão é negativa. É um dos efeitos do espírito desagregador do Renascimento.
Ciência católica
Como podemos encorajar nossos alunos a ter uma perspectiva católica da ciência? Os livros modernos de biologia estão impregnados de biologia molecular, que exclui o Criador de suas páginas e não permitem que a criança se maravilhe com a beleza do universo. Acredito que o professor católico pode fazer um bom trabalho a despeito desses livros nocivos. Sempre que possível, não deve ter medo de citar uma passagem da Sagrada Escritura apropriada à lição do momento. Não se trata de transformar toda aula em aula de religião, mas de ajudar o aluno a adquirir uma mente católica, uma mente que percebe que todo o mundo está repleto do esplendor de Deus. O propósito utilitário da ciência torna-se pálido quando comparado ao ato de reconhecer o Próprio Deus em Sua maravilhosa Criação. A respeito disso há muitos versos nos salmos, como “Os céus publicam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos”, ou “estabeleceu o seu tabernáculo no sol; e ele mesmo é como um esposo que sai do tálamo. Dá saltos como gigante para percorrer o seu caminho” (Sl 18). Há também muitas analogias religiosas que podem ser tiradas da natureza, por exemplo, Nossa Senhora é “Estrela do mar”, “Rosa entre espinhos”, “Aurora matinal”, etc. Passagens como a seguinte, de Santa Teresinha de Jesus, também podem ser usadas:
Jesus abriu-me o livro da natureza, e vi que cada flor criada por Ele tem sua própria beleza, que a magnificência da rosa e a doçura do lírio não diminuem o perfume da violeta ou o encanto das margaridas. Vi que se todas as flores desejassem tornar-se rosas, a natureza perderia seu ornamento primaveril, e a variedade das flores não mais adornaria os campos. É assim com o mundo das almas, o jardim vivo do Senhor (…)5
O latim litúrgico
É triste ver que em muitas escolas da FSSPX os alunos estudam apenas o latim clássico, tal como nas escolas públicas. Como lhes falta motivação, ao fim de alguns anos de estudo o resultado não é satisfatório: a maioria dos alunos mal consegue decifrar frases de Cícero com a ajuda de um dicionário. Se estudassem o latim eclesiástico juntamente com o latim clássico, os alunos se motivariam mais, pois veriam a ligação entre o latim e a vida de oração. Poderiam então compreender o Evangelho da Missa, os salmos e o Ofício, além de outras orações litúrgicas. O Pe. Calmel escreve que para amar o latim é preciso ter o mínimo de senso católico, para ser “vehementer affectus suave sonantis Ecclesiae vocibus.” (Santo Agostinho foi deste modo “veementemente tocado pela voz suave da Igreja”, isto é, pelo canto dos salmos na Basílica de Milão). Que grande diferença há entre o Introito do Primeiro Domingo do Advento, tirado do Salmo 24, “Ad Te levavi animam meam,” e uma insípida frase sobre o escravo da sogra! Os estudantes podem aprender de cor, após tê-los traduzido, alguns versos do Adoro Te Devote, o Stabat Mater ou o Lauda Sion. Podem seguir o ciclo litúrgico através do hino de Vésperas (“Creator alme siderum” para o Advento, etc.) Eis uma citação de Pio XII:
O latim! Língua antiga, não, porém, morta, e cujos magníficos ecos, mesmo silenciados há séculos nos anfiteatros em ruínas, nos afamados fóruns e templos dos Césares, continua a reverberar nas basílicas de Cristo, onde os padres do Evangelho e os herdeiros dos mártires cantam sem cessar os salmos e hinos dos primeiros séculos na reconsagrada língua dos Quirites. Ora, a língua de Roma é primariamente uma língua sagrada, escutada nos ritos divinos, nos salões teológicos e nos atos da Sé Apostólica, e na qual vós mesmos muitas vezes saudais docemente a Rainha do Céu, vossa mãe, e a nosso Pai que reina nas alturas6.
O Pe. Berto foi o teólogo particular de Monsenhor Lefebvre durante o Concílio. Era terciário dominicano e grande educador. Ele advogava o ensino do latim como uma língua viva, ao passo que a maneira moderna de ensiná-lo se faz exclusivamente mediante exercícios de gramática e tradução. Por que o professor de francês diz a seus estudantes, “Fermez la porte” ou “ouvrez la fenêtre,” ao passo que o professor de latim nunca diz “Claude januam”, ou, “Aperi fenestram”, isto é, “fecha a porta”, “abre a janela”? Não tenho tempo suficiente para citar particularmente o Pe. Berto, mas é interessante saber que suas idéias a respeito do método de ensinar latim eram compartilhadas por homens como Pe. Calmel e Henri Charlier. Houve um retorno à maneira pré-renascentista de ensino nos últimos cinqüenta anos, tal como nos livros escolares que usam o “método natural”, como por vezes é chamado. Longe de nós a utopia do “latim sem esforço”. Mas é preciso enfatizar o ensino em exercícios orais. Os alunos devem aprender a falar um pouco de latim. Para isso é necessário bons professores. A tarefa não é impossível. Se os alunos estudarem 15 minutos por dia conseguirão progredir. O professor fará perguntas simples, e os alunos devem responder em latim. Por exemplo, “—Quae est Maria? —Maria est Mater Dei. —Ubi est Roma? —Roma est in Italia,” etc. Idealmente isso deve começar na sétima ou oitava série, ou, melhor ainda, na quinta ou sexta. Pe. Berto acreditava que tais exercícios facilitariam muito a compreensão dos textos litúrgicos para os alunos. Depois de ter estudado o Missal, os alunos do último ano de Ensino Secundário poderiam traduzir alguns artigos da Summa, em ligação com seu curso de filosofia.
Fragmentação do currículo
De acordo com Descartes, o único conhecimento exato é a ciência — no sentido moderno da palavra, isto é, matemática e física. Segundo Santo Tomás, a filosofia é a mais exata de todas as ciências naturais. É o conhecimento das coisas por suas causas primeiras. A teologia é um conhecimento de ordem sobrenatural, a filosofia é o supremo conhecimento da ordem natural. Portanto pertence à filosofia pôr em ordem os outros ramos do currículo, isto é, ordená-los aos seus objetos próprios, garantindo que não ultrapassem suas fronteiras. Como dizia Aristóteles, a filosofia é “arquitetônica”. Uma mente que recebeu boa formação filosófica é uma mente “integrada” e não “fragmentada”. Para o estudante medieval, havia hierarquia e distinção entre os ramos do currículo, e não completa separação entre eles. Atualmente, estuda-se biologia separada da filosofia escolástica. O resultado é que se enxergará a vida por uma perspectiva mecanicista, a vida será reduzida a fatores físico-químicos, em vez de ser vista por uma perspectiva hilemorfista, ou seja, explicada a partir de um princípio de organização chamado forma substancial.
A importância da filosofia
Nosso objetivo é produzir mentes católicas. Para isso é imprescindível que os alunos sejam expostos aos princípios da filosofia tomista. Sugiro começar com uma aula simples de lógica na nona ou décima série do Ensino Secundário7, algumas vezes por semana. Nessa idade há uma tendência natural à argumentação. (É o que Dorothy Sayers, em seu famoso ensaio The Lost Tools of Learning, chama “pert stage”). É urgente que nossos alunos aprendam a definir claramente os termos a fim de formar frases precisas. Com freqüência os seus trabalhos são prejudicados pela imprecisão, falta de clareza e até confusão. Precisam também fazer as distinções corretas a fim de agrupar as idéias em categorias. Por fim, precisam construir raciocínios claros e notar falácias em argumentos. Eis as três maneiras de avançar no ensino: definitio, diviso, ratiocinium. No sistema de educação medieval considerava-se a lógica (também chamada de “dialética”) um pré-requisito para as outras matérias. Antes de se focar num ramo específico é preciso ter adquirido suficiente mestria em usar as “ferramentas” da gramática (linguagem), dialética e retórica (discurso).
A minha segunda sugestão é ter uma turma de psicologia na décima primeira ou décima segunda série do Ensino Secundário. Nossos rapazes se beneficiarão muito com um estudo profundo da alma humana. Deus é o autor da ordem natural. É importante conhecer as faculdades que Ele criou, para entender Seu propósito, bem como para utilizá-las de acordo com a vontade Dele. O Pecado Original feriu a ordem natural, mas não a destruiu. É por isso que nossos alunos precisam adquirir pelo menos alguma noção dos princípios básicos da psicologia tomista. Há muitas conseqüências importantes de ordem prática que podem ser deduzidas dos princípios apresentados por Santo Tomás na Summa. As irmãs dominicanas fazem isso de modo notável nas aulas para as meninas e nas conversas com os pais. Uma mente iluminada pela verdade é uma das melhores armas que podemos dar a nossos rapazes para que salvem suas almas. (É preciso também treinar sua vontade para a virtude, mas esse não é o tópico principal desta conferência). O conhecimento da alma humana, tal como projetada por Deus, muito nos ajuda a ver na lei moral não um código arbitrário imposto de fora, mas uma conseqüência da natureza das coisas. Nossos alunos aprendem a não separar a sua vida intelectual da sua vida moral. Quando estudarem uma tragédia grega, poderão aprender a paixão do desespero, por exemplo, a partir de um modo poético através da literatura, tendo-a já conhecido por um modo científico através da filosofia.
Perda do senso de realidade
Resumidamente, podemos contrastar o idealismo de Descartes com o realismo de Santo Tomás deste modo: Segundo o filósofo francês, o que nossa mente obtém diretamente no ato de compreensão é a idéia de uma coisa. Em outras palavras, concebe-se a idéia como uma “pintura” da realidade. O Doutor Angélico, ao contrário, defendia que nosso intelecto obtém diretamente a própria coisa, realidade que existe fora da mente. É apenas reflexivamente que o intelecto pode conhecer suas idéias. Em outras palavras, a idéia é concebida como uma “janela” através da qual conhecemos a natureza das coisas. Ela não é o objeto direito do conhecimento, mas apenas um meio. Outro ponto para o qual se deve atentar é que Descartes pensava que nossas idéias eram “inatas”, isto é, preexistiam em nossa mente, ao passo que Santo Tomás, seguindo Aristóteles, acreditava que eram abstraídas dos dados sensíveis. Os cincos sentidos são a “ponte” entre nosso intelecto e a realidade.
Uma das conseqüências dos erros cartesianos no âmbito da educação é que a ciência moderna tende a fabricar noções subjetivas para reconstruir a realidade na mente, em vez de entender a natureza objetiva das coisas criadas por Deus. Muitos livros de física não ajudam o aluno a penetrar na natureza objetiva das coisas criadas por Deus, pois se preocupam apenas em ensinar noções algébricas para quantificar e medir os fenômenos. Isso conduz ao subjetivismo, pois a mente se restringe a lidar com conceitos sem alcançar a “quididade” íntima das coisas, (isto é, aquilo que responde a pergunta, quod quid est? “O que é esta coisa?”).
Outra tendência da educação moderna é que os professores não respeitam a ordem própria do conhecimento ( primeiro os dados sensíveis e depois as idéias inteligíveis). Em química dá-se aos estudantes a tabela periódica e se fala sobre elétrons e prótons antes de se ver o que é o cobre ou o zinco. Em biologia disseca-se uma planta e observam-se suas células no microscópio antes de se refletir sobre a natureza das plantas e seu lugar na ordem da Criação. Eis um belo poema de Joyce Kilmer que pode ser usado para fazer as crianças se sentarem diante de um grande carvalho e o contemplarem (“O conhecimento começa no espanto e termina na sabedoria”).
I think that I shall never see
A poem lovely as a tree.
A tree whose hungry mouth is pressed
Against the earth’s sweet flowing breast;
A tree that looks at God all day,
And lifts her leafy arms to pray;
A tree that may in summer wear
A nest of robins in her hair;
Upon whose bosom snow has rain.
Poems are made by fools like me,
But only God can make a tree.8
Há excelentes livros para integrar o estudo de ciência e literatura e deste modo despertar na criança amor e estima pela realidade. Para as classes primárias recomendo uma obra excelente de Anna McGovern9, em que ela distribui as matérias de acordo com as quatro estações.
Usando os cinco sentidos
O livro mencionado acima tem excelentes perguntas que o professor deve fazer aos alunos a fim de ajudá-los a observar as coisas ao seu redor. Por exemplo, deixemos nossos meninos capturarem um gafanhoto. Eles precisam observar a sua cor verde, ouvir o som que fazem quando atritam as pernas, sentir o seu cheiro, tocar sua pele seca, e até mesmo provar o seu gosto, se desejarem imitar a São João Batista no deserto. A partir desses dados sensíveis, poderão abstrair a essência da “gafanhoteza”. É vergonhoso ver muitos de nossos alunos incapazes de distinguir um carvalho de um cedro ou um bem-te-vi de um pica-pau branco. Eles precisam ter contato com o mundo natural que os rodeia. A Audubon Society possui excelentes manuais práticos sobre pássaros, pedras, cogumelos, répteis, insetos, árvores e flores. Nossos pupilos devem saber como os identificar e observar. Eles podem desenhá-los e fazer um relatório, utilizando o modo com o qual J. H Fabre escrevia sobre as aranhas. Eles também devem conhecer as constelações do céu (astronomia é uma das quatro artes liberais do quadrivium). Olhar as estrelas desperta em nós um senso de contemplação, o mesmo sentimento de admiração que deve ter penetrado a alma de Jó enquanto Deus lhe dizia: “Porventura poderás tu juntar as brilhantes estrelas Pléiades, ou impedir a revolução de Arturo? (38:31)” Acredito que grande parte do material estudado em nossas escolas não é relevante e devia ser reservado para o período de especialização na universidade. Temo que, assim como muita água transborda em copos pequenos, toda essa “ciência” vaza dos cérebros de nossos meninos e eles acabam retendo pouco. Outro benefício do estudo da natureza nas viagens de campo ou na exposição de espécies vivas em sala de aula (os garotos adoram trazer sapos e lagartixas aos seus professores) é que isso os motiva. Deste modo eles poderão se apaixonar por um tema, seja ele pássaros, insetos, etc, e logo buscarão estudá-lo por sua própria conta. Eis um dos objetivos da educação: estimular o desejo pelo conhecimento.
O mistério do universo
Uma das soluções para contra-atacar a influência cartesiana em nossas escolas, é estimular o senso do mistério. Descartes suprimiu o mistério das coisas, pois para ele o que conhecemos são nossas próprias “idéias claras”, que são límpidas e evidentes. Santo Tomás, ao contrário, sabia que nossa compreensão das coisas é limitada e portanto inclui certa obscuridade. O perigo de abarrotar a mente dos alunos com fatos sobre como as coisas funcionam é que freqüentemente surge a ilusão de que a ciência pode explicar tudo, tem todas as respostas. Isso não só é tolice, mas é também má ciência, pois os melhores cientistas sabem que não possuem todas as respostas. Por exemplo: Qual a natureza da luz? O que explica a migração dos pássaros? E quanto ao impressionante instinto dos insetos? Nunca poderemos compreendê-los, e assumir isto é parte da sabedoria, um dos objetivos da educação.
Pio XI mostrou o ideal católico de educação, que é inspirar uma atitude de resignação para com uma realidade que não foi feita por nós:
Quando a criança atinge a idade da razão, ela deseja aprofundar suas investigações. Ela busca os “porquês” das coisas, à procura de conhecimento sólido. É preciso que ela também adquira um juízo prudente, sereno, equilibrado, que lhe tornará apta a estimar o verdadeiro valor das pessoas e das coisas, sem deixar-se levar por aparências falsas, paixões desordenadas, temperamentos turbulentos ou pela maré das opiniões (Pio XI, 1926).
Como estudar literatura
Hoje em dia é muito triste abrir um livro didático de literatura. Os livros modernos certamente fornecem ao estudante imensa quantidade de informações. Encontram-se informações sobre a vida dos autores, seu estilo de escrita, a história do período em que viveram, etc. Encontra-se uma grande variedade de excertos dos clássicos, a fim de que o aluno seja exposto a “um pouco de tudo.” Mas qual o resultado? O propósito da aula de literatura foi esquecido. Nossos alunos precisam estudar literatura a fim de apreciar a verdade, o bem e a beleza que expressa um poema, um drama ou um romance. Eles precisam, através dos recursos da imaginação, ter acesso às realidades profundas da natureza humana, representadas de maneira brilhante nas grandes obras literárias. O problema é que a antologia moderna, repleta de notas de rodapé, freqüentemente envolve os alunos em questões exteriores ao próprio texto, em vez de penetrar no seu âmago. Acredito que a melhor forma de estudar literatura é escolher cuidadosamente poucos livros para cada série, mas estudá-los em profundidade, com um bom professor. O professor precisa conhecer e amar os livros que estuda com seus alunos. É preciso que leia em voz alta para eles. Esta é a melhor forma de estimulá-los a se interessar pelos livros. Em seguida, os alunos devem lhe fazer perguntas e ele deve respondê-las. É o único modo de saber se estão absorvendo o conteúdo do livro. Bons livros não são apenas meios de cultivar a imaginação, mas nos ajudam também a dominar o idioma; em outras palavras, aprender a autoexpressão oral e escrita. Nossas escolas precisam definir os livros mais apropriados para cada série. Por exemplo, em minha opinião, as obras de Robert Louis Stevenson ou Mark Twain são excelentes para a sétima e oitava séries. Para a nona e décima séries os romances de Charles Dickens e Walter Scott parecem calhar bem. Na décima primeira e décima segunda séries pode-se ler Shakespeare e, é claro, Chesterton e Belloc, leitura obrigatória aos católicos. Há muitos livros excelentes que podem e devem ser estudados, como a Ilíada, a Odisséia, A Canção de Rolando, etc. Temos a sorte de ter nos Estados Unidos homens como o Dr. David Allan White e Peter Chojnowski, que são muito competentes em questões de literatura. Eles podem ajudar bastante nossos professores.
Compreensão equivocada da natureza da ciência
Para Descartes, a ciência é uma coleção quantitativa de idéias claras e simples que julgam a realidade. Para Santo Tomás, a ciência é uma compreensão qualitativa de princípios (hierarquizados sob a idéia do ser) que são julgados pela realidade. Não há tempo suficiente para tratar deste aspecto da revolução cartesiana, mas ela traz conseqüências ao campo da educação. É certo que a educação moderna está centrada na memorização de informações, com o intuito de que os alunos consigam passar nos testes. Ela não está centrada na formação do intelecto mediante a busca gradual pela verdade. Creio que essa seja uma das razões para a falta de motivação entre nossos alunos. Não os estamos envolvendo suficientemente no processo de sua própria educação. Eles estão muito passivos. O professor não está cumprindo com seu dever ao mostrar-lhes o “interior” da ciência que estão transmitindo, para que eles por sua vez se interessem em adentrar o portão. Há uma bela citação de Pio XII sobre isso:
Abri, expandi, iluminai e adornai progressivamente as mentes infantis e adolescentes que estão acordando para a vida. Guiai a juventude curiosa e ardente cuja ambição sagrada é descobrir a verdade e que está sedenta por investigar cada ramo do saber: porventura existirá tarefa mais nobre, mais vasta, e mais diversificada em sua admirável unidade do que esta? Na verdade, em todas as etapas e em todas as realizações do estudo só se busca uma coisa: encontrar e possuir uma luz ainda mais plena e pura a fim de amá-la, defendê-la e propaga lá; distribuí-la a todos, de acordo com seus dons individuais, e multiplicar e expandir os benefícios desta luz em todo lugar10.
Qualidade em vez de quantidade
Essas palavras do Papa nos colocam no caminho certo para uma reforma do nosso sistema educacional: estudar uma quantidade menor de matérias a fim de melhor conhecê-las. Simplificar o currículo para se prover mais tempo à formação do intelecto. Nossos alunos demonstram que adquiriram certa cultura, tendo gravado alguns conceitos e idéias — freqüentemente confusas e vagas —, mas não aprenderam a pensar. É um problema sério. Não queremos que nossos estudantes tenham um conhecimento superficial, mas que possuam mentes católicas que tenham assimilado a tradição cultural que se lhes transmitiu. Muitas vezes, porém, temos a impressão de que a sabedoria que os professores estão tentando passar a essas mentes não lhes é transmitida. Os estudantes não demonstram o interesse necessário e as boas sementes da filosofia, literatura e história não produzem frutos. É grande a quantidade de alunos que se forma em nossas escolas e que não desenvolve caráter, convicções, amor à verdade. Eles parecem não amar o conhecimento. Aqui, novamente, Pio XII nos adverte contra os perigos do cartesianismo na educação:
A fim de estudar com seriedade, guardai-vos contra a crença de que o elemento fundamental que deve construir o edifício da cultura é a quantidade de conhecimento adquirido. Não há necessidade de saber coisas demais, mas tão-somente de saber o que é necessário e conveniente, compreendê-lo corretamente e estudá-lo por inteiro e de modo profundo. É pois necessário que se evite empreender esforço quase sobre-humano ao buscar afoitamente tudo o que o ensino apresenta como precioso e tenta empurrar ao estudante. Em especial quando se fala de métodos de aprendizado que são meramente ajuda à memória. Esses métodos estão muito longe do estudo sério e enriquecedor, de uma formação verdadeiramente profunda, e por sua causa algumas escolas correm o risco de se envolver num drama que entristece os pais e irrita os alunos11.
Integração de matérias diferentes
O Pe. Calmel escreveu que uma escola católica não consiste numa classe de doutrina cristã, acrescida de uma aula de literatura, seguida por uma de matemática, coroada com uma de história, além de um pouco de educação física, sendo tudo intercalado com línguas e ciências. A escola católica não pode compartimentar as matérias, mas precisa apresentar de forma coesa a verdade imutável, que deve ser a nutrição constante dos professores, e que eles devem comunicar aos alunos com entusiasmo sereno, através das diversas disciplinas cujas diferentes exigências são, no entanto, respeitadas12.
Nossos alunos precisam adquirir uma visão coerente da verdade. Repetimos uma vez mais: a fim de lutar contra a “desagregação” do Renascimento é crucial apresentar a verdade católica como um todo (integer). Nossos alunos precisam enxergar as conexões inteligíveis entre as matérias ensinadas no currículo das escolas. Lembro-me de um projeto de ciência em Kansas no qual os estudantes deviam fazer um relatório sobre insetos. Eles precisavam observá-los, descrevê-los, desenhá-los, etc, integrando desse modo várias disciplinas. Em seus livros, J. H. Fabre com freqüência faz conexões entre biologia e história, ou biologia e geografia. Há um livro muito interessante chamado Archimedes and the Door of Science (Arquimedes e a porta para ciência), de Jeanne Bendick. É uma tentativa bem sucedida de integrar ciência e história. Os princípios matemáticos e físicos descobertos por Arquimedes são combinados com características do mundo grego em que viveu. O livro dá vida à mecânica e à hidroestática, em vez de reduzi-las a teorias abstratas. Leva-se o aluno a experimentar a excitação que Arquimedes deve ter sentido ao descobrir essas verdades. Há muitos livros úteis do mesmo tipo nos catálogos de homescholing (sobre Thomas Edison, etc.)
O Papa Pio XII advogava um desenvolvimento harmonioso do intelecto mediante a integração sintética de todos os ramos do currículo:
Aqueles que conhecem os problemas das escolas sabem que não há nada mais prejudicial que uma massa de idéias acumulada de forma confusa e desordenada, idéias que não se encontram nem se integram, mas, ao contrário, que muitas vezes se chocam e se anulam. É muito comum haver um divórcio entre o ensino de questões científicas e a educação plena do intelecto 13.
Aprender um trabalho manual
Outra sugestão é que os meninos realizem atividades práticas em que tenham contato com as coisas, e onde adquiram uma habilidade manual. Talvez pareça estranho, mas essa experiência é muito benéfica ao desenvolvimento da mente. Alguns rapazes aprenderam o conceito de alavanca utilizando um forcado. É preciso que nossos alunos aprendam um trabalho manual: olaria, trabalho em couro, jardinagem, agricultura, marcenaria, etc. Pode ser um lazer feito em casa. Se não é possível fazê-lo em casa, que seja na escola. Henri Charlier enfatiza sua importância:
A prática do verdadeiro trabalho manual conduz a uma admirável formação da inteligência, não apenas em razão do lado prático, mas também da meditação sobre as formas da natureza e o espírito das coisas 14.
Que qualidade fascinante possui o artesanato antigo! Havia uma “lógica” na operação dos ofícios, e os antigos a haviam dominado. Creio ser possível introduzir esse mesmo espírito na educação oferecida em nossas escolas.
A música e a receptividade da mente
Todos os grandes educadores insistem num passo menos acelerado nos estudos, a fim de dar tempo para que a verdade se estabeleça e crie raízes na mente. A música desempenha papel importante para tornar a alma passiva, receptiva ao estudo. Um estudante que aprende a apreciar a boa música está também refinando sua imaginação e tornando-a instrumento afinado para o seu intelecto. É preciso que nossos alunos apreciem os grandes compositores clássicos. Eles deveriam também conhecer o repertório de músicas folclóricas (não somente americanas, mas escocesas, irlandesas, etc). E, é claro, devem cantar o gregoriano. O ideal é que cada um saiba tocar um instrumento musical, mesmo que seja gaita ou flauta doce. Porém isso nem sempre é possível. No mínimo, nossos alunos devem ser expostos à boa música. Em algumas escolas, há aulas de apreciação musical, em outras se escuta música durante as refeições. Gostaria de citar Marcel de Corte, o grande filósofo tomista, sobre a importância da música na educação do seu filho Leon:
Ao longo dos meses em que o menino começa a se tornar homem, Leon foi arrebatado pela música: uma melodia recorria insistentemente em sua mente. Talentoso pianista, ele conseguiu superar a paralisia de sua mão através da repetição de exercícios. Seu irmão mais velho apresentou-lhe Bach. Ele agora aventura-se no mar sonoro à procura de sua alma. Tal como na arte romântica, a música é para ele o caminho que conduz à vida interior, e que, ao mesmo tempo, dá-lhe a chave para a vida exterior. Sozinho, sem nunca termos tratado do tema com ele, nosso filho redescobriu a noção da alma cristã da Idade Média, tal como formada pela Grécia e pelo Evangelho: o microcosmo e o macrocosmo harmonizam-se, e o universo da alma une-se ao universo inteiro. O conhecimento de si mesmo e o conhecimento do Deus que sustenta a totalidade do real na existência, encontram-se. Conhecer-se é conhecer a Deus, é entender que só se existe por Deus; e é saber o lugar que se ocupa no universo, até o ponto onde o mundo material inferior e o mundo espiritual superior encontram-se (o homem)15.
O que a FSSPX pode fazer
Para concluir, darei cinco sugestões práticas que podem ajudar a Fraternidade a cumprir sua missão educativa. Obviamente, o ideal seria ter um instituto de religiosos professores como é o das dominicanas. Mas ainda não é a vontade de Deus, portanto precisamos bem utilizar os meios de que dispomos.
Há muitas idéias que poderiam ser implementadas, tais como: competições intelectuais entre nossas escolas (temos competições de futebol e basquete, por que não uma competição de debates sobre história, filosofia, ou outras matérias?); atividades suplementares em que professores e alunos participem a fim de criar laços, por exemplo: trilhas, canoagem, acampamentos, etc; formação de confraternidades que fomentem a piedade (semelhante às Crianças de Maria para as meninas).
Entreguemos nossas escolas ao Imaculado Coração de Maria, que Ela nos ajude a torná-las mais católicas, para glória a Deus e salvação das almas.
Os momentos mais marcantes da nossa viagem de junho para Winona, à parte as ordenações, foram as reuniões noturnas ao redor das fogueiras no acampamento. As famílias se reuniram para cantar e tocar canções. Os jovens gostam das antigas baladas, que se tornaram clássicos, pois perduraram por gerações, tendo incorporado sentimentos pátrios, familiares e religiosos. Estas canções são parte de nossa cultura: músicas irlandesas e escocesas, cantos da Guerra Civil, canções caipiras, etc. Um dos livros musicais utilizados nos saraus traz o seguinte prefácio:
“’Só o amante canta’. Quão profundas são estas palavras de Santo Agostinho! Porque a canção é o casamento entre a poesia e a música e, como em qualquer casamento, tem por motivo o amor. Quer se cante a Deus, ao amado, ou até à pátria, canta-se por amor. O canto às vezes manifesta alegria, às vezes tristeza, mas sempre é uma manifestação de amor. Quem canta vai além do comum, pois deseja expressar algo que não se poderia expressar de outro modo. Assim como o pintor não só desenha alguma coisa, mas a pinta, o cantor não só diz algo, mas o canta.”
“Só o amante canta. Eis a razão por que o canto é tão natural para o católico. A vida católica é uma vida de amor, porque é uma vida de sacrifício. Daí todas as culturas da Europa Católica possuírem (além do sublime canto litúrgico) sua própria música folclórica, com belas canções e danças. Hoje, porém, não mais se canta. À medida que a cultura se torna cada vez menos católica, a verdade descamba e, juntamente com ela, a excelência, a beleza e, é claro, a caridade. Quando o homem se esquece de Deus, só lembra-se de si mesmo. Um homem egoísta não sabe amar, portanto, não é capaz de cantar.”
Henri Charlier foi um dos pensadores católicos proeminentes do século XX. Seus escritos sobre educação assemelham-se muito aos de John Senior. Ambos empenharam-se na restauração da cultura católica. A educação, de fato, foi um dos campos mais prejudicados neste século. Charlier diz o seguinte: “Existem dois tesouros para a educação infantil: as canções folclóricas e o canto gregoriano. Estas duas fontes representam os princípios básicos da tradição musical da humanidade”.
”O canto gregoriano é, sob certos aspectos, uma introdução mais fácil à música, porque nele as notas não têm a mesma proporção. Além do mais, ele nos introduz ao canto dos salmos do Ofício Divino e a uma cultura profunda, acessível a qualquer um através do missal e do breviário. O canto gregoriano, portanto, é o elo natural entre a música e aquilo que um homem fará de mais importante em sua vida”.
“A música folclórica, por sua vez, mantém o homem numa tradição humana, familiar e nacional. É a base e o fundamento do canto gregoriano.”
Como exemplo do que se perdeu e precisa ser restaurado, permitam-me citar A história de uma família, a biografia do Sr. e da Sra. Martin, os pais de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ao descrever o Sr. Martin, que foi beatificado pela Igreja, o autor, Pe. Piat, diz:
“Gostava de recitar boa poesia (…) transmitiu a Maria e Teresa grande talento para a imitação. Ele sabia imitar entonações e palavras do dialeto auvernês, cantos de pássaros, tambores e toques de clarim de modo tão preciso, com um ritmo e uma expressividade tão grandes, que se tinha a impressão de estar ouvindo os sons genuínos. Acima de tudo, nutria um verdadeiro culto pelas antigas canções folclóricas e conhecia um vasto repertório delas.”
A mais pura forma de beleza
Todos necessitam de música, não importa a idade. Mas essa necessidade aparece com mais veemência na juventude. As crianças talvez não gostem de uma caminhada longa e cansativa, mas irão correr e dançar o dia inteiro sem reclamar. Em verdade, a dança deve-se unir à música, e não separar-se dela. Em nossas paróquias, como a de St. Marys ou Post Falls, as crianças aprendem as tradicionais danças folclóricas (irlandesas, mexicanas, polonesas, etc.).
Eis um conselho sobre a importância de fazer da boa música parte da vida doméstica para as crianças. Retirei-o dos escritos de Myrtle Douglas Keener, renomado educador:
“A educação moderna conduz a criança para longe das coisas ideais e destrói o desejo natural pela beleza. Eliminar a beleza da educação é destruir sua própria alma. Devemos permitir que nossas crianças entrem na vida adulta sem consideração para com a beleza, tendo perdido a verdadeira inclinação para alcançar o que há de mais profundo na natureza?”
“O canto põe a criança em contato com a forma mais pura de beleza e satisfaz seu anseio natural por melodia e ritmo. Mas, a fim de preservar esse anseio, os pais devem começar o trabalho em casa e não adiar o ensino desse importantíssimo elemento à educação infantil para a escola e para uma idade em que tais desejos inatos se enfraquecem ou se perdem.”
“Como se deve conduzir este entusiasmante trabalho com nossas crianças? O primeiro passo é cantar-lhes belas canções.”
A rainha Isabela de Castela aplicou tais princípios na educação de seus filhos. Eis uma passagem da sua biografia escrita por William Thomas Walsh:
“Gostava de ter cavaleiros que fossem bons músicos. Garcilaso de la Veja, cavaleiro que matou o gigante Yarfe ante os muros de Granada e que depois foi enviado como embaixador a Roma, era excelente harpista. Francisco Penalosa, outro espanhol, foi um dos músicos mais brilhantes do coro papal em que Palestrina, meio século depois, estabeleceria as fundações da música moderna. Isabel quase não viajava sem músicos ao seu redor. Em sua capela havia mais de quarenta cantores treinados, além de organistas e tocadores de clavecino, alaúde, viola bastarda, flauta e outros instrumentos. Ela levava os músicos para o acampamento quando ia guerrear.”
Certa vez se disse: “Tenho pena dos americanos, pois não têm luz, não têm música em suas vidas.” Cabe a nós restaurar a tradição dos cantos folclóricos! Pode-se começar como melodias simples no estilo Mother Goose (Mamãe Gansa) e terminar em canções mais elaboradas. Eis o conselho dado aos pais por Maria Von Trapp:
“Logo que nascer o bebê, a mãe deve cantar para ele. Existem inúmeras canções de ninar, cantigas infantis e pequenas orações que podem ser encontradas em livros musicais. Os pais ficarão impressionados com a rapidez com que os pequenos irão cantarolar uma melodia. Isso conduzirá naturalmente a canto em partes, com a mãe cantando a segunda parte e o pai, a terceira. Cantar é algo natural. Se se pudesse apenas curar aquela horrível fobia com que tanto nos deparamos: ’não posso cantar, não tenho piano em casa!’”.
O mais belo instrumento
“O mais belo instrumento é a voz humana, que Deus deu a todos.”
“Tenho anos de experiência aqui nos Estados Unidos e sei como todos se divertem ao cantar em ‘camadas’. Eis um bom método para consegui-lo: começa-se cantando a melodia em uníssono. Quando todos souberem a melodia suficientemente bem para cantá-la sozinhos, divide-se o canto em duas partes; e mais a frente, em três ou quatro. Logo veremos as pessoas cantarem essas diferentes ‘camadas’ em qualquer lugar em que estejam reunidas, quer estejam sentadas numa mesma sala ou então limpando um jardim. Cantar em ‘camadas’ é a maneira mais natural e fácil de educar o ouvido para cantar individualmente.”
Para concluir este artigo, trago uma citação do Pe. Schmidberger, da época em que foi Superior Geral da FSSPX:
“Neste país [Estados Unidos], é muito importante que não tenhamos apenas o ensino técnico e o de ciências naturais, mas que tenhamos especialmente empenho musical, uma atmosfera musical. Além do estudo de línguas e história, a música é muito importante para a formação das almas cristãs. É parte da vida interior – num nível natural, sim, mas um passo que nos aproxima de Deus e que, portanto, contribui para a formação de verdadeiras personalidades cristãs.”
“Estejam certos de que a música é um passo importante para o renascimento da América, da América Católica. Em todo lugar em que vive a fé, encontram-se as artes: pintura, teatro, música, literatura, desenho. As artes são importantes para nossa vida espiritual – são sinais dela – e quanto mais intensa é a nossa fé, mais florescem as artes.”
“Que nossas famílias e escolas sejam lares em que reina a boa música, em que as crianças sejam encorajadas a cantar belas canções, em que a cultura cristã não seja esquecida, mas transmitida!”
Termino com as inspiradoras palavras do livro musical usado no seminário:
“Que nós, peregrinos neste vale de lágrimas, encontremo-nos sempre a seguir as palavras de São Paulo, ‘cantando e celebrando de todo o coração os louvores do Senhor’ (Ef 5, 19), até que todos nós entremos na eterna canção de louvor, na Festa de Núpcias do reino celeste.”
]]>A necessidade de nosso tempo é formar homens de caráter que se tornem autênticos líderes espirituais de suas famílias. Infelizmente, o liberalismo infectou tanto as nossas mentes, que mesmo entre católicos tradicionais homens verdadeiros se tornaram raros. Nosso propósito neste artigo é fornecer alguns conselhos úteis sobre um dos mais sérios problemas do mundo moderno ― a ausência de pais verdadeiros ― recorrendo à robusta doutrina de Santo Tomás de Aquino contida na Summa Theologica. Ao apresentar a substância dos princípios luminosos do Doutor Angélico em linguagem simples, esperamos que todos possam tirar proveito de sua sabedoria.
É no estudo de Santo Tomás sobre a virtude da fortaleza, freqüentemente identificada com a coragem, que encontraremos muitos dos elementos de que precisamos. Em latim, uma das palavras possíveis para fortaleza é “virtus” (que também significa virtude). A raiz dessa palavra é “vir”, que significa “homem”. Vê-se assim que a masculinidade está associada à coragem. Para que tenhamos verdadeiros pais, precisamos de verdadeiros homens; e verdadeiros homens são homens fortes. Mas o que é exatamente a força? Santo Tomás explica que a fortaleza é uma virtude moral relacionada com o perigo. O homem encontra muitos males ameaçadores durante sua existência e tem de encará-los de maneira razoável controlando seu medo; é a coragem que permite que o homem lide com essas dificuldades e obstáculos. Há dois atos que fluem dessa virtude: o ataque e a defesa. Por isso, a fortaleza será divida em magnanimidade, que pode ser traduzida como “grandeza de alma” (magna anima), e perseverança. A magnanimidade é o que faz com que alarguemos o nosso coração e empreendamos uma grande obra com confiança. A perseverança permite que permaneçamos firmes e resistamos ao mal por um longo tempo, resistindo à tentação de desistir.
O problema é que o pecado original danificou severamente nossa natureza humana, levando a certa perda de nossa antiga inclinação para o bem. Uma das desordens introduzidas pelo pecado original é a ferida da fraqueza, que debilita a fortaleza. Desde a queda de Adão, não é fácil ter coragem; tendemos a cair em pecados que se opõem à fortaleza. Por exemplo, o pecado da pusilanimidade (ou pequenez de alma) leva-nos a subestimar nosso próprio poder e, conseqüentemente, à paralisia. Vemos um exemplo claro dessa disposição desafortunada na história do Evangelho sobre o servo que enterrou no chão o talento de seu senhor por medo da severidade de seu mestre, em vez de se munir de esperança e fazer o talento frutificar. Ele tinha os dons necessários para realizar a tarefa, mas por desânimo não teve coragem de agir, pensando que o encargo estava além de sua capacidade.
O padre Humbert Clerissac, grande dominicano, disse que um dos traços da mente liberal é que “ela não tem confiança suficiente na verdade”. Se queremos ser mais precisos em nossa análise, podemos dizer que o homem moderno pensa que a verdade pertence apenas ao reino da teoria, e que não é aplicável na prática. O cardeal Louis Billot observou bem que, já que estamos lidando com verdades morais, isto é, princípios que, por sua própria natureza, também são normas de ação, é absurdo restringi-las na vida concreta. Infelizmente, um dos aspectos da vida moderna é a recusa de acreditar na eficácia prática de nossos princípios católicos. Dizemos defendê-los, mas agimos contrariamente a eles. Esse divórcio entre doutrina e vida é, tristemente, muito comum hoje em dia.
Tomemos um exemplo. Um pai sabe que seu filho adolescente escuta música que é nociva a seu desenvolvimento espiritual e moral. A consciência do pai lhe diz que ele tem o dever de monitorar o entretenimento de seu filho e remover dali o que não agrada a Deus, mas mesmo assim esse pai tem medo de colocar seus princípios em prática. Esse comportamento é típico da pusilanimidade. Em vez de confiar na força de suas convicções e tomar uma decisão condizente com elas, por mais desconfortáveis que os resultados lhe possam parecer, o pai se vê paralisado pelo medo. Ele dirá a si mesmo que não é possível ou desejável controlar os hábitos musicais de seu filho e tentará se convencer de que o ideal católico não pode ser vivido. Esse homem preferirá manter sua (falsa) paz de espírito, fazendo-se “amigo” de seu filho sem perturbar o status quo, a cumprir seu dever de pai que exige que cuide da alma de seu filho. Um pai mais forte teria rezado a Deus pedindo coragem para tomar os passos necessários para afastar seu filho daquela música perversa e de outras influências prejudiciais. Em vez de se preocupar com o que seu filho haveria de pensar se ele banisse certos tipos de entretenimento do ambiente familiar, esse pai confiaria no poder da verdade e na força de sua própria autoridade. Sabemos que isso não é fácil, mas a vida é uma batalha, e não podemos fugir de suas dificuldades. Isso é parte do que significa ser um verdadeiro pai.
Infelizmente, a autoridade é uma das noções mais atacadas pelo liberalismo moderno, porque o liberalismo consiste numa falsa noção de liberdade, que exclui a autoridade. O liberalismo é contrário a um ponto sobre o qual Santo Tomás insiste: a hierarquia presente na criação de Deus. Há ordem em todo lugar, entre anjos, homens, animais, plantas e minerais. Na família, o pai tem uma autoridade dada por Deus, da qual não pode abdicar sem introduzir desordem no lar. A virtude da fortaleza (coragem) lhe dá a força para cumprir sua missão em casa, enquanto a magnanimidade lhe dá a confiança em sua própria autoridade. Naturalmente, o pai sempre terá de lidar com a tentação da covardia. O vulnus infirmitatis ainda está lá, e a ideologia do liberalismo o pressiona a evitar o conflito com seus filhos. Mas o pai verdadeiro será fiel a suas convicções: ele não esconderá a verdade consigo sob o pretexto de se dar bem com os outros, incluindo sua esposa e filhos, mas terá a coragem de iluminar com a verdade as almas que lhe cercam, começando com as de sua própria família.
Hoje em dia, vemos freqüentemente que o pai católico moderno carece da coragem heróica necessária para resistir ao longo cerco dos inimigos da família. Seus filhos estão sujeitos a todo tipo de influências malignas e tornam-se cada vez mais difíceis de disciplinar. O mundo moderno gasta bilhões de dólares em propaganda para tornar seus filhos gananciosos, sensuais e orgulhosos. A desproporção de forças é tremenda: de um lado, Satanás e seus poderosos sequazes desejando avidamente nossa danação eterna e tendo à sua disposição recursos imensos; de outro, um pobre homem católico, ferido e enfraquecido. Como poderá esse pai evitar o desencorajamento? Tendo em mente que não está sozinho nessa luta! Jesus está lá, nosso Rei vitorioso, que nos diz: “Tenham confiança, eu venci o mundo.” Mas pode-se ver que o pai sem fortaleza estará pronto para se acomodar, porque simplesmente está cansado da luta, que já se estende faz tempo. Esse pai correrá o risco de se tornar vítima de outra característica da mentalidade liberal, a saber, o auto-engano. Ele que em outras circunstâncias seria um bom pai católico, será tentado a se render a uma paz ilusória; poderá até tentar iludir a si mesmo acreditando que essa acomodação com o mundo é algo razoável e agradável a Deus. Sob o véu do auto-engano, o enfraquecido pai católico verá a tolerância liberal ao erro e ao pecado como uma virtude atraente. Por isso o grande teólogo francês, Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, disse que o liberalismo é o que há de pior; porque é a corrupção do que há de melhor: a caridade para com os outros. Tal tolerância não é uma autêntica virtude cristã; é uma repugnante paródia da verdadeira caridade, que envolve permanecer firme na verdade e corrigir o erro onde quer que possa aparecer. Para o pai católico, isso começa em casa e se expande por todos os aspectos de sua vida cotidiana.
Para encerrar este artigo, gostaria de citar o belo poema de G. K. Chesterton, The Ballad of the White Horse (A Balada do Cavalo Branco). O Rei Alfred vem lutando pelos dinamarqueses há muito tempo. Nossa Senhora aparece para o rei, que lhe pergunta se a guerra finalmente chegaria a um fim. É assim que nossa Mãe Santíssima lhe responde:
(Texto Original) I tell you naught for your comfort, Yea, naught for your desire, Save that the sky grows darker yet And the sea rises higher. Night shall be thrice night over you, And heaven an iron cope. Do you have joy without a cause, Yea, faith without a hope? |
(Tradução Literal) Nada que digo é para teu conforto, Sim, nada para teu desejo, Salvo que o céu fica ainda mais escuro E o mar ainda mais alto. A noite será três vezes noite sobre ti, E o céu uma abóbada de ferro. Tens alegria sem uma causa, Sim, fé sem uma esperança? |
Alfred não perdeu a coragem. O Rei continuou reunindo homens cristãos:
While a man remains, great war remains, Now is a war of men. |
Enquanto um homem restar, grande guerra restará, Agora é uma guerra de homens. |
Fonte: Angelus Press / Tradução: Fabiano Rollim para PERMANÊNCIA
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