TEM A IGREJA UM DIREITO PÚBLICO?

Resultado de imagem para marcel lefebvreA Igreja sem o Estado é uma alma sem o corpo. O Estado sem a Igreja é um corpo sem alma”. Leão XIII – “Libertas”

Qual é a situação da Igreja em relação à sociedade civil? A resposta é objeto de uma ciência eclesiástica especial: O Direito Público da Igreja. Pode-se consultar os excelentes tratados a este respeito, do Cardeal Ottaviani e de Sílvio Romani, como também as fontes apresentadas por Lo Grasso (ver bibliografia).

Quero mostrar-lhes quanto o liberalismo se opõe ao direito público da Igreja, como o aniquila, e por conseguinte como é contrário à fé, sobre a qual se apóia integralmente o direito público da Igreja.

Os Princípios do Direito Público da Igreja

Os princípios do direito público da Igreja são na realidade verdades de fé ou que se deduzem da fé. São os seguintes:

– Independência da Igreja: A Igreja que tem por finalidade a salvação sobrenatural das almas, é uma sociedade perfeita, dotada por seu divino fundador de todos os meios para subsistir por si mesma de maneira estável e independente. O “Syllabus” condena a proposição contráriaseguinte:

“A Igreja não é uma sociedade verdadeira e perfeita, completamente livre, nem goza de seus direitos próprios e constantes a ela conferidos por seu divino fundador, mas cabe  à autoridade civil determinar quais são os direitos da Igreja e o limite dentro dos quais pode exercer estes direitos” (prop. 19, Dz nº1719).

Esta é a escravidão à qual os liberais querem reduzir a Igreja em relação ao Estado! O “Syllabus” também condena radicalmente as espoliações às quais a Igreja é submetida em seus bens e em seus direitos, periodicamente, pelo poder civil. A Igreja nunca aceitará o “princípio de direito comum”, nunca admitirá ser reduzida ao  simples direito comum de todas as associações legais na sociedade civil, que devem receber do Estado sua aprovação e seus limites. Como conseqüência a Igreja tem o direito de adquirir, possuir e administrar livre e independentemente do poder civil os bens temporais necessários à sua missão. (código de direito canônico de 1917, cânon 1495): igrejas, seminários, bispados, mosteiros, benefícios (can. 1409-1410), e ser isenta de todos os impostos civis. Tem direito de possuir suas escolas e hospitais independentemente de qualquer intromissão do Estado. A Igreja tem seus próprios tribunais eclesiásticos para julgar os assuntos concernentes às pessoas dos clérigos e aos bens da Igreja (can. 1552), independentemente, em si, dos tribunais civis (privilégio do foro). Os clérigos também são isentos do serviço militar (privilégio da isenção-can.121).

Resumindo, a Igreja reivindica a soberania e a independência em razão de sua missão: “A mim me foi dado todo poder no céu e na terra, ide pois ensinai todas as nações” (Mt 28, 19).

– Distinção entre Igreja e Estado: O Estado que tem por finalidade direta o bem comum temporal é também uma sociedade perfeita, independente da Igreja e soberano em seus domínios. Esta independência é o que Pio XII chama de laicidade sã e legítima do Estado99, que nada tem a ver com o laicismo, erro já condenado. Cuidado então para não passar de um conceito para o outro! Leão XIII expressa bem a diferença entre as duas sociedades:

“Deus dividiu o governo de toda sociedade humana entre dois poderes: o eclesiástico e o civil; o primeiro, que cuida das coisas divinas e o outro que cuida das humanas. Cada qual na sua esfera é soberano, cada um tem seus limites perfeitamente determinados e traçados conforme a sua natureza e seu fim determinado. Há assim como que uma esfera de atuação onde cada um exerce sua ação ‘jure’ próprio” 100.

– União entre a Igreja e o Estado: mas diversidade não significa separação! Como os dois poderes se ignorariam uma vez que governam os mesmos súditos e freqüentemente legislam sobre a mesma matéria: casamento, família, escola, etc.? Seria inconcebível que se opusessem, quando ao contrário a unanimidade de ação é requerida para o bem dos homens.

“O conflito neste caso seria absurdo, diz Leão XIII, e repugnaria abertamente a infinita sabedoria dos conselhos divinos: é assim necessário que haja um meio, um processo  que  faça  desaparecer  as  causas  das  contestações  e  lutas, eestabeleça um acordo na prática. Não é sem razão que este acordo tem sido comparado com a união que existe entre a alma e o corpo, que é de grande vantagem para os dois, sendo  a separação particularmente funesta ao corpo, pois o priva da vida”101.

– Jurisdição indireta da Igreja sobre o temporal: Quer dizer que nas questões mistas a Igreja, tendo em conta a supremacia do seu fim, terá primazia: “Assim tudo o que na vida humana há de sagrado a um título qualquer, tudo o que toca a salvação das almas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação a seu fim, tudo isso é da autoridade da Igreja”102. Com outras palavras, o regime de união e de harmonia entre a Igreja e o Estado, supõe uma ordem, uma hierarquia: ou seja, uma jurisdição indireta da Igreja sobre o temporal, um direito indireto de intervenção da Igreja nas coisas temporais que normalmente dependem do Estado. A Igreja intervém “ratione peccati”, em razão do pecado e por causa da salvação das almas, para usar uma expressão do Papa Bonifácio VIII (Dz. Nº468, nota).

– Subordinação indireta: Reciprocamente o temporal está indiretamente subordinado ao espiritual: tal é o quinto princípio, princípio de fé ou ao menos de certeza teológica, que fundamenta o direito público da Igreja. O homem está realmente destinado à beatitude eterna, e os bens da vida presente, os bens temporais, existem para  o  ajudar a  atingir este  fim:  mesmo  se  eles  não são proporcionais a este fim, eles ao menos são indiretamente  ordenados. Mesmo o bem comum temporal que é o fim do Estado, está ordenado a facilitar aos cidadãos o acesso à bem-aventurança celeste. Do contrário ele seria somente um bem aparente e ilusório.

– Função ministerial do Estado em relação à Igreja: “A sociedade civil, favorecendo a prosperidade pública, deve prover o bem dos cidadãos não pondo nenhum obstáculo, e também assegurar todas as facilidades possíveis à procura e aquisição do bem supremo e imutável que aspiram”103. “A função do rei (nós diríamos, do Estado) diz São Tomás, é procurar o bom caminho para a multidão, segundo o que lhes é necessário para obter a beatitude celeste; ou seja, que deve prescrever (em seu domínio temporal) o que a ela conduz, e na medida do possível, proibir o contrário”104.

Como consequência, em relação à Igreja, o Estado tem uma função ministerial, um papel de servidor: o Estado, ao mesmo tempo em  que procura seu fim próprio, deve ajudar positivamente apesar de indiretamente, a Igreja a alcançar seu fim, ou seja, a salvar as almas!

Esta doutrina constante da Igreja através de séculos, merece ser chamada de “doctrina cathólica”, e é necessária toda a má fé dos liberais para relegá-la ao “obscurantismo de uma época passada”.

Segundo eles, ela valia para as “monarquias sacras” da Idade Média, mas  já  não  vale  para  os  “Estados  democráticos  constitucionais” modernos105. Na verdade isso é uma insensatez pois nossa doutrina, deduzida da revelação e dos princípios da ordem natural, é tão imutável e intemporal como a natureza do bem comum e a divina constituição da Igreja.

Para apoiar sua tese funesta sobre a separação da Igreja e do Estado, os liberais de ontem e de hoje citam satisfeitos esta frase de Nosso Senhor: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt XXII, 21); simplesmente deixam de dizer o que César deve a Deus!

– Realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo: o último princípio que resume de uma forma soberana o direito público da Igreja é uma verdade de fé: Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, deve reinar sobre as sociedades do mesmo modo que sobre os indivíduos; a redenção das almas prolonga-se necessariamente na submissão dos Estados e de suas leis ao jugo suave e leve da lei de Cristo.

Como diz Leão XIII, o Estado não somente deve “fazer respeitar as santas e invioláveis leis da religião, cujos deveres unem o homem a Deus”106; além disso a legislação civil deve estar apoiada pela lei de Deus (decálogo) e pela lei evangélica, para ser em seu domínio, que é a ordem temporal, um instrumento da obra da redenção operada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Nisto consiste essencialmente a realização do Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Leiam a magnífica encíclica de Pio XI “Quas Primas”, de 11 de novembro de 1925, sobre a realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela expõe esta doutrina com uma limpidez e vigor admiráveis. Lembro-me ainda, quando jovens seminaristas em Roma, recebemos este ensinamento pontifício; com que alegria e entusiasmo a comentaram nossos professores! Releiam este trecho que refuta definitivamente o laicismo do Estado:

“A celebração desta festa, que se repetirá todos os anos, será  também uma advertência para as nações que o dever de venerar publicamente a Cristo e prestar-lhe obediência, refere-se não só aos cidadãos como também aos magistrados e governantes; Os chefes da sociedade civil, por sua vez, se lembrarão do juízo final quando Cristo acusará os que o expulsaram da vida pública assim como os que o terão simplesmente ignorado e desprezado, e vingará severamente tantas injúrias recebidas; pois sua dignidade real exige que toda a sociedade se ajuste aos mandamentos e aos princípios cristãos, tanto ao estabelecer as leis como ao administrar a justiça, e finalmente na formação da alma da juventude na sã doutrina e na santidade dos costumes”107.

Desde então a Igreja em sua liturgia canta e proclama o reino de Jesus Cristo sobre as leis civis. Que bela proclamação dogmática, apesar de não ser ainda “ex cathedra”!

Foi necessária toda a raiva dos inimigos de Jesus Cristo para chegar a arrancar-lhe sua coroa, quando aplicando o Concílio Vaticano II, os inovadores deformaram ou suprimiram estas três estrofes do hino das primeiras Vésperas da festa de Cristo Rei:

“Scelesta turba clamitat Regnare Christum nolumus, Te nos ovantes omnium Regem Supremum dicimus. (estrofe 2)

Te nationum praesides Honoré tollant publico Colant magistri, judices Leges et artes exprimant. (estrofe 6)

Submissa regum fulgeant Tibi dicata insígnia, Mitique sceptro patriam Domosque subde civium.” (estrofe 7)

“A turba ímpia grita:

Não queremos que Cristo Reine Nós com júbilo te proclamamos De todos supremo Rei.

Que te honrem publicamente Os chefes das nações

E que mestres e juízes Nas leis e artes te exprimam.

Que brilhem a Ti dedicadas Dos reis armas conquistadas Teu doce cetro submete

A pátria e todos os lares.”

 

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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99 Proposição 19, DZ 1719.

100 Alocução aos habitantes de Marches, 23 de março de 1985, PIN. 1284.

101 Encíclica “Immortale Dei”, PIN. 136, Cf. Dz. Nº 1866.

102 Encíclica “Libertas”, PIN. 200. Já Yves de Chartres escrevia ao rei Roberto o Piedoso: “Tanto vale o corpo que não está dirigido pela alma como vale o poder temporal se não está orientado pela disciplina eclesiástica”.

103 Encíclica “Immortale Dei”, PIN. 131.

104 “De Regimine Principum”, L-I cap. XV.

105 Cf. J. Courtney Murray, “Vers une intelligence du developpement de la  doctrinedel’Eglisesurlalibertéreligieuse”,pág.128(cf.bibliorafia).

106 “Immortale Dei”, PIN. 131.

107 PIN. 569.