UMA CONTINUIDADE IMPOSSÍVEL – SOBRE A DIGNITATIS HUMANAE

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Witor Lira

Prólogo

1 – O Blog da revista La Nef publicou em sua página de 5 de julho de 2014 um estudo do Padre Basile Valuet, OSB, intitulado “Os mal-entendidos de Ecône sobre a liberdade religiosa” (abreviado aqui como BV2). Este estudo é uma resposta ao artigo publicado na edição de março de 2014 do Courrier de Rome, intitulado:Dignitatis humanae é contrário à Tradição” (abreviado aqui como CDR).

2 – Não desconhecíamos a personalidade do Padre Basile, nem o respeitável alcance de sua obra. Queríamos apenas dizer o que pensamos do estudo publicado em julho de 2013 no Bulletin de Littérature ecclésiastique (abreviado como BV1) onde o padre Basile tenta responder às “objeções dos lefebvristas” [1] bem como aos “três argumentos principais daqueles que negam a compatibilidade da Dignitatis humanae com a Tradição” [2]. Esta resposta se apresenta como suficiente por si mesma, e por isso a tomamos como tal [3]. Por outro lado, admitimos sem dificuldade (e já sabíamos) que o padre Basile teve a oportunidade de examinar em seu tempo as objeções apresentadas pela Fraternidade São Pio X contra a liberdade religiosa (a Dubia tornada pública em 1987, assim como a resposta à resposta do CDF a estas mesmas), que foram retomadas e esclarecidas durante as últimas discussões doutrinárias de 2009-2011. Mas com isso, permanece o fato de que as três objeções às quais o padre Basile tenta responder no estudo de julho de 2013 “não correspondem de forma alguma àquelas que a Fraternidade São Pio X apresentou até agora à Santa Sé” [4]. É sempre possível estar enganado, mesmo de muita boa fé, e mesmo com a melhor informação; para dissipar o mal-entendido e deixar a luz passar, é preciso começar limpando o vidro, e dos dois lados. É com este espírito que empreendemos aqui uma nova reflexão, para esclarecer o debate levantado pelo Padre Basile. Para isso, voltaremos aos principais pontos da análise publicada no Blog de La Nef. Mas, primeiro, gostaríamos de chamar a atenção do leitor para o ponto preciso que representa o verdadeiro cerne da dificuldade.

1 – A raiz do problema

3 – Devemos ler o Concílio à luz da Tradição ou a Tradição à luz do Concílio? Essa é a questão. Esta é uma questão fundamental, porque é a do método a ser seguido. E esta é a questão que ainda permanece pendente, entre a Santa Sé e a Fraternidade São Pio X, desde a famosa Declaração de 21 de novembro de 1974 Aparece regularmente na ordem do dia, e é por falta de resposta suficiente que o acordo, tão esperado de ambas as partes, se revela impossível. Sem falar que, recusar-se a fazer a pergunta é já tê-la respondido, porque é postular que a única leitura possível é aquela dada pelo magistério atual.

4 – A verdade é que o magistério transmite e explica todas as verdades definitivamente reveladas por Deus: é o órgão da revelação pública, fechado com a morte do último dos apóstolos, e assim é em todos os tempos. Esta transmissão do depósito da fé confunde-se com a Tradição, entendida no sentido ativo do termo. Esta Tradição, porque transmite a Revelação, é ao mesmo tempo o magistério presente e o magistério passado, e nenhum dos dois pode se contradizer quando transmitem as mesmas verdades, entendidas no mesmo sentido. O magistério, sendo a transmissão da Revelação, é tal no passado como no presente: o fato de ser presente ou passado é acidental ao fato de transmitir a Revelação. Seja presente ou passado, o magistério é definido no seu ato como o ensino sempre autorizado da mesma Revelação.

5 – Se reduzirmos o magistério à sua expressão presente, tudo se passa como se este magistério fosse o órgão não só da Revelação, mas também da Tradição, ambas do passado. Nessa perspectiva, as verdades já propostas no passado são como tais o objeto do magistério, e é acidental que já tenham sido reveladas por Deus ou já propostas pelo magistério de ontem. O essencial é que essas verdades já foram objeto de uma proposição anterior, porque é desse ponto de vista preciso que elas são o objeto formal do magistério. Desta forma, somente o magistério presente é magistério, pois somente ele transmite o que já foi proposto. E se distingue da Tradição, pois esta é, por definição, uma proposição já realizada, uma fonte simples, passível de exame, e deve ser entendida apenas no sentido objetivo e não mais ativo do termo. Assim, este magistério presente reinterpreta a cada momento o magistério passado, porque este magistério passado como passado, confundido com a Tradição, é definido como objeto (e não mais ato) de transmissão, explicação e interpretação, com o mesmo título de Revelação.

6 – Essas duas visões são incompatíveis. A primeira corresponde à definição católica e tradicional do magistério, e aparece nas duas constituições Dei Filius e Pastor æternus do Concílio Vaticano I. A segunda corresponde a uma nova definição do magistério, de tendência modernista e evolutiva, e aparece no Discurso de 22 de dezembro de 2005 do Papa Bento XVISe adotarmos a segunda visão, a questão que levantamos não pode surgir. Pois é o magistério da hora presente que constitui o único critério à luz do qual é possível ler tanto o Concílio como a Tradição, o Concílio de fato fazendo parte da Tradição, pelo próprio fato de estar agora incluído na proposta de um magistério passado. E é por isso que a leitura de Bento XVI, com sua hermenêutica de uma ” renovação em continuidade», pelo próprio fato de pertencer ao passado, deve agora ser entendida à luz do magistério de Francisco. Por outro lado, surge a questão se adotamos a primeira visão, e ela começa a surgir a partir do momento em que se realiza o Concílio Vaticano II, porque um concílio que se coloca em contradição com os dados essenciais da Revelação, como o magistério impõe à nossa adesão, não poderia representar um critério autorizado de leitura. De fato, temos o direito de “afirmar por argumentos de crítica interna e crítica externa que o espírito que dominou no Concílio é o espírito do liberalismo e do modernismo” [5]. O dilema levantado, portanto, não consiste em opor o magistério ao magistério, o de ontem ao de hoje. Consiste em opor o Magistério, que é Tradição no sentido ativo do termo, e os ensinamentos do Concílio Vaticano II, que requerem esclarecimento, na medida em que parecem incompatíveis com os dados da Revelação suficientemente propostos pelo Magistério.

7 – Desde o início de seu estudo, Padre Basile cita uma carta do Cardeal Seper dirigida ao Arcebispo Lefebvre :

“A afirmação deste direito à liberdade religiosa está em consonância com documentos pontifícios anteriores que, diante dos excessos do estatismo e do totalitarismo moderno, afirmaram os direitos da pessoa humana. Pela declaração conciliar, esse ponto de doutrina entra claramente no ensino do magistério e, embora não seja objeto de definição, exige docilidade e assentimento.”BV1, pág. 290.

Com esta citação, que assume o valor de um argumento de autoridade, Padre Basile já responde à questão fundamental, porque as observações do cardeal prefeito da CDF adotam implicitamente a nova definição do magistério. É claro que a partir de tal resposta, não poderemos mais concordar em nada. Portanto, seria inútil levar a discussão adiante. Com efeito, cabe ao padre Basile demonstrar, por meio da pesquisa teológica, como a Dignitatis humanae está em continuidade com a Tradição, sendo esta continuidade pressuposta de antemão, por causa da docilidade exigida pelos ensinamentos do Concílio Vaticano II, cujo valor magisterial não pode ser posto em dúvida. Ao passo que se trata de denunciar as graves insuficiências de um texto que, em suas linhas básicas, permanece incompatível com certos dados da Revelação e não poderia se beneficiar de nenhum valor magisterial.

8 – No entanto, gostaríamos de repetir, para benefício dos nossos leitores, os principais pontos da resposta que nos foi dada. E examinaremos seu alcance à luz da Tradição, bem compreendida.

2 – “O Magistério antes e depois da DH”

9- Colocamos este título entre aspas, porque a expressão usada pelo Padre Basile [6] traz consigo uma falsa problemática.

2.1 – Pio IX e Quanta cura

10 – Baseamo-nos na passagem da Quanta cura que condena o falso direito de não ser impedido, adotado por DH [7]. A proposição condenada é a seguinte:

“A melhor condição da sociedade é aquela em que não se reconhece no poder o ofício de reprimir por penas legais os violadores da religião católica, salvo quando a paz pública o exigir.”DS 1689.

O Padre Basile objeta-nos que “é um erro pensar que os violadores em questão são per se aqueles que não respeitam plenamente as leis de Deus e da Igreja, e em particular, todos os não católicos, todos aqueles que vivem em erro ou a propagá-lo” [8].

Uma vez que o exercício público de uma falsa religião não é, enquanto tal, uma violação física da religião católica, a afirmação do DH 2 (que cada homem tem o direito de não ser impedido por qualquer poder humano de exercer a sua religião, católica ou não, em público ou em privado, dentro dos justos limites) não cairia sob a condenação da Quanta cura. Esta objeção do padre Basile limita falsamente o alcance da condenação de Pio IX: com efeito, esta prevê, antes de tudo, uma violação que não é apenas física, mas moral, ou seja, como a religião católica sofre pelo simples fato das falsas religiões serem exercidas publicamente. A oração feita em uma mesquita ou sinagoga, o culto celebrado em um templo protestante ou em uma igreja ortodoxa, mesmo que ocorra sem causar qualquer perturbação física, sempre representam como tal uma violação moral da religião católica, bem como dano espiritual e escândalo para todos os cidadãos. Apesar do que o padre Basile nos objeta, a contradição entre Quanta cura e DH é imediata e manifesta: para Quanta cura, a norma é a repressão ao culto público de falsas religiões, ainda que limitado pelas exigências da ordem pública; para DH, a norma é a liberdade de culto público de falsas religiões, limitada pelas exigências da ordem pública. Isto porque, para Pio IX, o culto público de uma religião falsa é, como tal, um atentado à ordem pública objetiva justa, isto é, à paz pública, um atentado que permanece sempre de ordem moral, ainda que nem sempre seja de ordem física. De fato, é impossível praticar uma religião falsa sem prejudicar a paz pública, visto que a primeira condição da paz pública é o exercício pacífico da única religião verdadeira, não contestada pelo escândalo dos falsos cultos. Agora, mesmo que seja limitado pelas exigências puramente físicas da paz, por exemplo porque ninguém tem o direito de rezar em público se causar uma perturbação durante à noite, o direito à liberdade religiosa é ilimitado na esfera religiosa, uma vez que todos os seguidores de todas as religiões têm o direito de rezar em público se isso não causar uma perturbação noturna. Para superar a contradição que se opõe irremediavelmente entre Quanta cura e DH, seria preciso argumentar que o exercício público de uma falsa religião dentro da ordem social não pode violar moralmente a religião católica e, portanto, implicar que a ordem social temporal é autônoma da lei positiva divinamente revelada e que a paz pública pode subsistir apesar do indiferentismo religioso dos poderes públicos. Tal é o princípio da autonomia, enunciado pelo n.º 36 da Gaudium et spes, e reivindicado por Bento XVI como fundamento da liberdade religiosa [9]. Mas este falso princípio é condenado pelo Papa São Pio X: “Que seja necessário separar o Estado da Igreja é uma tese absolutamente falsa, um erro muito pernicioso” [10], uma vez que “a civilização não precisa mais ser inventada nem a nova cidade ser construída nas nuvens. Ela era, ela é; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de estabelecê-la e restaurá-la constantemente em seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renovados de uma utopia doentia, da revolta e da impiedade” [11].

2.2 – Leão XIII

11- Leão XIII diz: “O homem tem o direito no Estado de seguir, segundo a consciência de seu dever, a vontade de Deus, e cumprir seus preceitos sem que nada possa impedi-lo” [12]Ex conscientia: a tradução francesa pouco importa, desde que entendamos que a preposição latina seguida do ablativo designa aqui não a verdadeira causa do direito, mas sua condição simples. Pois a base desse direito permanece objetiva. O direito não é primordialmente o de preencher a condição. É, antes de tudo, o de cumprir a vontade divina e seu preceito, através dessa condição.

12 – DH 3 diz:

“É por meio de sua consciência que o homem percebe e reconhece as injunções da lei divina; é ela que ele deve seguir fielmente em todas as suas atividades, para chegar ao seu fim que é Deus. Ele não deve, portanto, ser forçado a agir contra sua consciência. Mas também não deve ser impedido de agir de acordo com sua consciência, especialmente em assuntos religiosos”.

Padre Basile comenta: “Se é evidente que só se pode ter o direito afirmativo de fazer a verdadeira vontade de Deus (e não aquilo que a consciência errônea entende ser), a questão é, no entanto, o que acontece quando o homem abusa deste direito afirmativo seguindo uma consciência errônea: será que ele mantém o uso deste direito, de modo que um direito negativo o protege? Leão XIII não responde a esta pergunta, e será preciso um século de reflexão por parte de teólogos e juristas católicos, bem como do magistério, para se chegar a uma resposta magisterial completa. Entretanto, para descobrir, foi necessário referir-se à filosofia geral tradicional do direito no meio católico. [Esta filosofia tradicional […] ensina-nos que o abuso de um direito não retira necessariamente a sua utilização. A Igreja terá, portanto, de especificar quando um abuso deste direito à verdadeira liberdade de consciência reconhecido por Leão XIII não é apenas moral, mas também jurídico, e pode – de fato deve – ser reprimido, e quando este abuso moral não é jurídico e não pode, portanto, ser reprimido. Isto é o que fará DH no número 7, § 3 “. Sem dúvida, é verdade que “o abuso de um direito não tira o seu uso”. Mas aqui uma distinção deve ser feita. O objeto do direito permanece em vigor, mesmo que alguns o abusem: por exemplo, o direito permanece a salvo, para todo homem honesto, da liberdade física de seus movimentos, mesmo que ladrões e criminosos abusem dele. Por outro lado, o sujeito que abusa de seu direito o corrompe e o destrói pelo próprio fato, e pode ser privado dele, mesmo na medida em que abusa dele. É assim que ladrões e criminosos merecem ser presos. Desse modo, quem age contrariamente à vontade de Deus, mesmo seguindo uma consciência errônea, abusa do direito que tem de agir sem coerção, no foro público externo. Consequentemente, ele merece ser privado desse direito e, portanto, impedido de agir contra a vontade de Deus, mesmo que para ele, como para todos os outros homens, permaneça o uso do direito de agir sem coerção no foro público externo, a fim de seguir a vontade de Deus.

Acrescentemos que, do ponto de vista do objeto, só pode haver o direito de agir de acordo com a vontade de Deus ou não ser obrigado a agir contra a própria consciência. Mas não há direito de agir de acordo com a própria consciência, como tal, certa ou errada. Quanto a dizer que seguir uma consciência errônea é um abuso do “direito de seguir a própria consciência”, talvez seja o que o Vaticano II afirma. Mas não é isso que Leão XIII afirma. E isso fica por demonstrar, com base no que ensina o magistério. Em todo caso, não se pode confiar no que diz Leão XIII para justificar o que diz o Vaticano II. DH não pode, portanto, encontrar base nem em Libertas nem em Immortale Dei .

2.3 – Pio XI

13- É inútil voltar em detalhe à passagem da Encíclica Mit brennender Sorge de Pio XI, onde o Padre Basile acredita ter descoberto a justificação para os ensinamentos de DH. Toda a análise que ele faz desse texto é radicalmente distorcida, porque Pio XI fala muito precisamente não do sujeito, mas do objeto do direito, que só pode, portanto, ser o direito de exercer a única religião verdadeira. dos católicos. Por conseguinte, Pio XI quer dizer que, em matéria religiosa, o único direito de expressão possível, de acordo com a lei natural, é o privilégio exclusivo da verdadeira religião e, portanto (se se quiser passar do objeto para o sujeito da lei) somente dos católicos. Mais exatamente, se se trata do direito de todos os homens e de todos os crentes, pode-se dizer, de fato, que todo homem tem o direito natural de praticar a religião, mas com a condição de que se entenda por isso a religião católica, que é a única verdadeira. Em última análise, isso equivale a dizer que todo homem tem apenas o direito de ser católico. O Papa diz:

“Não acredita em Deus aquele que se contenta em usar a palavra Deus em seus discursos, mas somente aquele que une a esta palavra sagrada o verdadeiro e digno conceito da Divindade”.

Agora, somente aqueles que professam a fé católica cumprem essa condição. Portanto, o padre Basile não pode confiar nesta passagem para justificar a liberdade religiosa de DH.

2.4 – Pio XII

14 – Padre Basile [14] contesta a explicação que demos sobre a passagem da Alocução Ci riesce de 6 de dezembro de 1953. Pio XII realmente diz ali que “em certas circunstâncias não há direito de proibir o mal e o erro”. E o contexto parece indicar que essa afirmação deve dizer respeito apenas a indivíduos como tal, não às autoridades públicas. Além disso, ainda que a afirmação de Pio XII também se refira a este último, trata-se, no máximo, de um dever de tolerância, e um dever que, longe de ser universal e necessário, só se impõe em determinadas circunstâncias. Por exemplo, era dever do rei da França no final do século XVI tolerar a prática do calvinismo em seu reino, pois não o fazer apenas agravaria uma guerra civil já desastrosa. Mas isso não implicava qualquer direito à imunidade de coerção por parte dos protestantes. É por isso que, mesmo admitindo que, falando a juristas e, portanto, a representantes do poder civil, Pio XII vislumbre o dever das autoridades, e não apenas dos particulares, não podemos deduzir de suas observações um argumento a favor da liberdade religiosa. O sofisma do padre Basile consiste em passar indevidamente do dever (circunstancial e relativo) de tolerar ao direito (universal e absoluto, limitado apenas por acidente) à imunidade. Sem dúvida é verdade que todo dever corresponde a um direito, mas a correspondência aqui prevista pelo defensor de DH não é justa. Se as autoridades públicas têm, em certas circunstâncias, o dever de tolerar os seguidores de falsas religiões, não se segue que estes sejam titulares de um direito natural que estaria na base do dever de tolerar. Pois a tolerância sempre se explica, como tal, em razão de um mal maior a ser evitado. É para evitar esse mal maior (a guerra civil) que a autoridade se abstém de reprimir, temporariamente, um mal menor (o exercício público do culto protestante). Esse mal, embora menor, continua sendo um mal e, longe de fundar qualquer direito à tolerância, normalmente merece repressão. O que funda o direito à tolerância só pode ser bom, e é justamente o bem de um terceiro, que seria comprometido, por acaso, pela repressão. Este comprometimento da propriedade de um terceiro representa em certos casos um mal pior do que o mal que normalmente exigiria repressão. Assim, uma esposa digna e inocente tem o dever de tolerar o marido que a trai ou que a bate; mas esse dever não pode ser explicado de forma alguma porque seu marido teria direito à imunidade, o direito natural de não ser impedido de enganar ou bater em sua esposa. Isso se deve ao bem maior da unidade familiar, que se comprometida traria graves consequências para os filhos. A separação dos cônjuges representa neste caso um mal pior, porque se opõe ao bem maior da educação, a que os filhos têm direito. É este direito dos filhos que está na base do dever que obriga a esposa a tolerar o marido indigno

15 – O padre Basile escreve, porém, que se a autoridade sempre teve o direito de reprimir o erro, “estaríamos fazendo uma injustiça com os que erram, impedindo-os de praticar seu erro. É por isso que esse seguidor do erro, nessas circunstâncias, estaria coberto por um direito, assim como os pais infiéis que educam seus filhos no erro religioso” [15]. Como acabamos de demostrar, se há uma injustiça, só pode ser aquela sofrida por terceiros, neste caso outros cidadãos, cuja paz seria impedida se o poder público se comprometesse a reprimir o erro, à custa de uma guerra civil. Mas não haveria injustiça em relação a quem erra, porque este não tem direito à não repressão. De maneira semelhante, se a Igreja não impede os pais infiéis de exercer sua autoridade sobre seus filhos e, portanto, renuncia a exigir que estes sejam batizados, não é porque esses pais teriam o direito natural de não serem impedidos de educar seus filhos na infidelidade, mas é por causa do direito natural que os filhos têm de receber de seus pais todos os bens da natureza, como os da graça. Como Caetano explica [16], ainda que seja verdade que os bens da natureza, recebidos pela educação paterna que os fornece, não sejam um bem superior aos bens da graça, também permanece que a ordem da graça deve ser cumprida sem violar a ordem da natureza. É por isso que a Igreja tolera pais infiéis, como infiéis, no interesse de seus filhos, na medida em que a salvaguarda desse interesse exige o respeito à ordem natural. A falácia do padre Basile – e de todos os defensores do DH – consiste em passar do dever de tolerar ao direito à imunidade, como se o primeiro pressupusesse necessariamente o segundo.

2.5 – João Paulo II e Bento XVI

16 – Mostramos que o magistério pós-conciliar de João Paulo II e Bento XVI “reivindica a liberdade religiosa como um direito positivo de expressão, isto é, como o direito de exercer por si mesmo a religião tida como verdadeira e não apenas o direito à liberdade de coerção pelos poderes civis” [17]. Padre Basile se contenta em negar a realidade deste fato. Segundo ele, nos textos que citamos, João Paulo II nunca fala do “direito”, mas apenas da “liberdade” de fazer ou agir. No entanto, isso é simplesmente falso. O texto que citamos diz literalmente: ” Em 1 de Setembro de 1980, dirigindo-me aos Chefes de Estado signatários da Acta Final de Helsinki, fiz questão de salientar – entre outras coisas – que a verdadeira liberdade religiosa exige que os direitos que resultam da dimensão social e pública da profissão de fé e da pertença a uma comunidade religiosa organizada sejam também garantidos. […]Do mesmo modo, aqueles que aderem às várias religiões devem – individualmente e em comunidade – expressar as suas convicções e organizar o culto e qualquer outra atividade particular, respeitando ao mesmo tempo os direitos dos outros que não pertencem a essa religião ou que professam um credo”[18]. O padre Basile também afirma que o texto de Bento XVI citado por nós [19] fala não do “direito”, mas da “liberdade” de agir. Novamente, isso está simplesmente errado. O padre Basile evita dar toda a citação que fizemos e se contenta em produzir uma passagem que possa corroborar suas declarações. Mas basta ler todo o texto que citamos para ver sem dificuldade que Bento XVI fala explicitamente de um direito e de um direito positivo: “Todos devem poder exercer livremente o direito de professar e manifestar individual ou coletivamente a sua religião ou fé, tanto em público como em privado, no ensino e na prática, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Ela não deve encontrar obstáculos se desejar, eventualmente, aderir a outra religião ou não professar nenhuma. […] Os regulamentos internacionais reconhecem assim que os direitos de natureza religiosa têm o mesmo status que o direito à vida e à liberdade pessoal, porque pertencem ao núcleo essencial dos direitos humanos, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana nunca pode negar” [20]. Portanto, podemos apenas convidar o Padre Basile a reler com atenção estas citações.

3 – O objeto do direito à liberdade religiosa

17 – Para justificar sua posição, o padre Basile menciona as considerações de Dom Baucher, no Dicionário de Teologia Católica: “Ao decretar essa tolerância, supõe-se que o legislador não queira criar em benefício dos dissidentes o direito ou a faculdade moral de exercer seu culto, mas apenas o direito de não ser perturbado no exercício desse culto. Sem nunca ter o direito de agir mal, pode-se ter o direito de não ser impedido de agir mal, se uma lei justa proibir esse impedimento por motivos suficientes”[21]. Esta reflexão é sem dúvida interessante, mas é mal interpretada pelo Padre Basile. Dom Baucher não postula em princípio nenhum direito natural que não possa ser impedido, mas apenas vislumbra um direito civil, que seria consequência de uma lei promulgada com vistas ao bem comum e que levasse em conta o direito de outrem à paz social. Antes desta lei ser promulgada, os dissidentes não tinham direitos, nem naturais nem civis; após a promulgação da lei da tolerância, pode-se falar (com todas as precauções exigidas pela analogia) em “direito civil”, na medida em que esta lei exige ser respeitada, na medida em que concede a imunidade. A lei é, pois, formalmente, aqui como sempre, a do legislador, cujas medidas exigem a sua aplicação;

18 – Padre Basile volta então à questão dos pais infiéis. “Os papas do século 19″, diz ele [22], “apesar de recusarem a liberdade do erro ou do mal objetivo, ou seja, um direito afirmativo ao erro, conheciam e professavam, por outro lado, um direito dos pais infiéis de não serem impedidos de educar seus filhos de acordo com suas convicções religiosas, por mais falsas que fossem, um direito de propriedade, mesmo para aqueles que abusam desse direito, um direito mesmo para pecadores – como todos os homens são – de não serem mortos (desde que sejam inocentes de crime), etc. Portanto, embora negassem a liberdade como um direito afirmativo de fazer o errado, eles nem sempre a negavam como um direito negativo, protegendo até mesmo uma ação errada”. Aqui, novamente, o padre Basile não entende o verdadeiro alcance dos ensinamentos de São Tomás, retomados pelos papas Pio IX e Leão XIII. Santo Tomás nem por um momento prevê um direito dos pais à liberdade de educação, inclusive em matéria religiosa. Ele considera que, como tal, os filhos dependem por natureza (ou em virtude da lei natural) da razão de seus pais. Se há um direito, é, portanto, o direito dos filhos de receber da razão dos pais todos os dons da natureza e da graça. E isso deve ser entendido, sendo todas as outras coisas iguais, ou seja, supondo que os pais cumpram seu dever de acordo com a integridade do plano divino. É aqui que a observação de Caetano é esclarecedora: ” Há dois pontos de vista no caso de pais não cristãos: por um lado, eles têm para eles a lei natural, que lhes confia o cuidado dos seus filhos, e por outro lado, acrescentam-lhe a sua infidelidade, que os leva a educar estas crianças numa religião falsa. O segundo ponto de vista é o de um mal: a este respeito, estes pais pecam mortalmente e para isso merecem ser privados não só dos seus filhos, mas das suas próprias vidas, e seria correto fazê-los desaparecer “. Os pais, portanto, não têm direito negativo à imunidade. “No entanto, o primeiro ponto de vista é o de um direito natural. É por isso que Deus, quando estabelece a ordem sobrenatural, para aperfeiçoar a ordem natural, não quer que o direito natural seja violado, embora aqueles que abusam desse direito mereçam ser privados dele.” [23] Os filhos conservam todo o direito de receber de seus pais o que Deus os quer conceder por meio deles, os bens da natureza e os da graça. Mesmo que os pais contradigam esse direito ao se oporem aos bens da graça, seus filhos ainda mantêm o direito de receber deles os bens da natureza. Com efeito, ainda que seja verdade que esses bens da ordem natural não representam um bem superior em relação aos da ordem sobrenatural, resta o fato de que estão necessariamente ligados a eles, como o perfectível é para a perfeição, mesmo livre. A má maneira com que os pais cumprem o seu dever é, portanto, tolerada, a fim de salvaguardar o direito que seus filhos possuem de receber deles tanto a natureza como a graça. Mas em tudo isso não encontramos vestígios, nem em São Tomás, nem em Caetano,

19 – Padre Basile [24] então nos repreende por “acreditar que a proclamação de um direito negativo (direito de não ser impedido de agir) implica a proclamação de um direito afirmativo (direito de agir)”, ao passo que, segundo ele, “é apenas a recíproca que é verdadeira”. Ele também nos censura por ignorar “as leis da contraposição lógica, e por acreditar que “a condenação de um direito afirmativo implica a de um direito negativo”. Não escrevemos nada disso, e basta reler nossa declaração, da qual o padre Basile, aliás, dá a citação em nota, para perceber isso. Escrevemos: “É muito difícil separar o direito à liberdade religiosa como o Vaticano II o concebe e o direito à difusão do erro, pois o primeiro inevitavelmente suscita e contém o último” [25]. Colocamo-nos ao nível dos fatos, como indica um pouco mais adiante outra passagem do nosso estudo, que o Padre Basile omite citar: “O direito negativo de não ser impedido corresponde de fato ao direito positivo de divulgar o erro. Sobre este ponto, a melhor explicação da lei enunciada pelo Concílio encontra-se no magistério posterior. Porque reivindica a liberdade religiosa como um direito positivo de expressão, isto é, como o direito de exercer por si mesmo a religião que se considera verdadeira e não apenas o direito à ausência de qualquer coação por parte dos poderes civis” [26]. Portanto, não dizemos primeiro, como para afirmar uma regra de contraposição lógica e uma verdade absolutamente universal, que “todo direito negativo implica um direito afirmativo”, para depois aplicar essa lei ao caso específico do Vaticano II. Contentamo-nos em observar o que está acontecendo precisamente no caso único e singular deste XXI Concílio ecumênico. Se fosse necessário recordar um princípio universal, seria antes aquele segundo o qual, e segundo o que ensina a sã teologia católica, que todo ato moralmente mau incorre no que São Tomás chama de “reatus poenae”, isto é, a obrigação moral de sofrer uma pena, e que, consequentemente, nenhum ato moralmente mau pode ser objeto de um direito, nem positivo, a ser exercido, nem mesmo negativo, para não ser impedido de ser exercido. O único “direito” que tal ato merece é ser impedido ou punido. E esse “direito”, ou, mais exatamente, esse “reatus poeneae” é metafisicamente incompatível com o direito à imunidade, pois é o oposto absoluto. Por outro lado, embora não se possa dizer que cada ato moralmente bom é objeto de um direito, deve reconhecer-se que o objeto de um direito (seja ele negativo ou positivo) é sempre um ato moralmente bom. Se, portanto, se reivindica um direito negativo de não ser impedido de agir, o ato em questão é implicitamente definido como um ato moralmente bom. E se é uma tal acão, nada impede que ela seja também objeto de um direito positivo, um direito de agir e não apenas de ser impedida de agir. E estes são os fatos que provam que assim é, no caso específico da liberdade religiosa: pela própria admissão de João Paulo II e Bento XVI, é objeto de um direito não só negativo, mas também positivo, e este implica que o exercício público de uma religião falsa é um ato moralmente bom. O sofisma do padre Basile consiste, portanto, em raciocinar como se um ato moralmente mau (como é a profissão pública de uma religião falsa) pudesse ser objeto de um direito, desde que esse direito fosse sempre apenas negativo e nunca positivo. Pedimos-lhe, então, que nos explique como um ato moralmente mau poderia ser objeto de um direito e, mais ainda, de um direito natural, ainda que fosse apenas negativo. E se ele reconhece, com a sã teologia católica, que nenhum ato moralmente mau pode ser objeto de um direito, o que ele deduz disso em nome das regras de contraposição lógica?

20 – Tratando do exercício e abuso do direito [27], Padre Basile lembra que o direito natural ensinado por DH é o de não ser impedido de difundir a religião que se acredita verdadeira na consciência. O nosso autor especifica nesta ocasião que o homem titular deste direito pode sem dúvida ter uma consciência errônea, mas, acrescenta, se alguém não for impedido de espalhar o erro ou fazer o mal, haverá apenas um abuso do direito à liberdade religiosa. E, para manter o que ensina o DH 2, § 2º, esse abuso do direito não levaria à perda do uso do direito. Mas isso não é brincar com as palavras e criar confusão? Porque, enfim, ainda que o homem seja o sujeito autorizado a exercer um direito, um direito só pode relacionar-se como seu objeto com o verdadeiro e o bom, e não com o que a consciência apresenta como tal. Se é verdade que ninguém pode agir contra sua consciência, há apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para que essa ação seja boa e, portanto, seja objeto de um direito [28 ]. A consciência também deve regular-se de acordo com a lei divina, natural e positiva. Dizer que ninguém pode agir contrariamente à sua consciência não implica que todos tenham o direito de não serem impedidos de agir de acordo com sua consciência, porque se isso for errado, a ação é errada e não pode estar sujeita a nenhum direito. Quando a consciência errônea não é impedida de professar publicamente sua falsa religião, essa situação não equivale ao abuso, mas à corrupção ou destruição da lei. Com efeito, só a religião verdadeira pode ser objeto de uma lei, enquanto uma religião falsa, mesmo considerada verdadeira por uma consciência errônea (ainda que invencível em seu erro), pode no máximo ser objeto de uma tolerância, mas nunca de um direito propriamente dito.

21 – O padre Basile escreve ainda que “se o direito à liberdade religiosa protege quem pratica o erro, ao implicar que o seguidor do erro mantém o direito à imunidade, isso é acidental à definição desse direito” [29]. Na boa lógica, uma consequência é acidental a um princípio quando não procede dele, mas surge como que de fora, isto é, por outra razão. Por exemplo, como tal, o direito dos pais de educar seus filhos não implica o ensino de uma religião falsa, pois isso surge por outro motivo, não porque os pais sejam os pais, mas porque, em tal caso particular, tais pais tornam-se infiéis. Em contraste, a liberdade religiosa, como ensina o Vaticano II, é definida como o direito de não ser impedido de praticar não apenas a verdadeira religião, mas qualquer religião que a consciência considere verdadeira; por esta mesma definição, se o seguidor do erro mantém o direito à imunidade, esta é de fato uma consequência não acidental, mas essencial para o princípio da liberdade religiosa, tal como ensinado pela DH.

22 – O padre Basile chega finalmente à objeção que gostaria de fazer ao nosso estudo [30]. Segundo ele, seria errado “pensar que DH em princípio concede liberdade ao erro. De fato, a DH não reivindica especificamente direitos para não-católicos como tal. DH nunca fala especificamente de religiões não católicas, e não reivindica diretamente nem para elas nem para seus seguidores como tal qualquer direito, nem mesmo um direito negativo. […] De fato, DH concede liberdade como uma questão de princípio aos seres humanos; então, que essas pessoas pratiquem e espalhem o erro, é acidental: é um abuso do direito à liberdade. Este abuso, extrínseco à religião enquanto tal e à lei definida por DH, é protegido pela lei, não é per se, mas por acidente”. Vamos repetir aqui novamente que a pessoa humana é apenas o sujeito, não o objeto da lei. Se imaginarmos que evitamos dizer que DH concede liberdade ao erro, sob o pretexto de que o direito à liberdade é concedido apenas às pessoas, cometemos um eufemismo. Em todo caso, sim: quem mais, senão a pessoa humana, poderia ser sujeito de um direito? Mas não é o sujeito de um direito que o define em sua natureza, dando-lhe sua espécie. é o objeto dele. No entanto, DH reivindica o direito de não ser impedido de exercer publicamente a religião que a consciência considera verdadeira: este é o objeto deste direito, e é, portanto, o exercício público de qualquer religião, verdadeira ou falsa, desde que seja tida como verdadeira pela pessoa que a professa. DH, portanto, concede liberdade, é claro, às pessoas, bem como ao sujeito da lei; mas DH também e sobretudo concede a mesma liberdade tanto à verdade quanto ao erro, bem como ao objeto da lei. Portanto, se as pessoas, sujeitos de direito, praticam e difundem o erro, isso é essencial ao direito, pois este é o seu objeto. E a lei protege essa disseminação do erro não por acidente, mas por si mesma. Todos os desenvolvimentos do Padre Basile não mudarão nada.

4 – O fundamento do direito à liberdade religiosa

23 – Padre Basile nos repreende novamente aqui [31] por ignoramos o adágio de que o abuso não tira o uso do direito. Mas isso pressupõe que existe de fato um direito real. É claro que o objeto de um direito (por exemplo, o exercício da verdadeira religião) sempre permanece, mesmo que os sujeitos desse direito o usem mal (por exemplo, maus sacerdotes, que praticam a simonia). Mas o exercício público de uma religião falsa não pode ser objeto de direito, mesmo que aqueles que exercem essa religião falsa a considerem verdadeira por causa de uma consciência errônea. O padre Basile também nos objeta que quando um homem perde sua dignidade moral, ele abusa de seu direito, mas não o perde por isso. Dizemos de nossa parte que a dignidade da pessoa humana é uma dignidade ontológica, que se diz no plano do ser e que, portanto, é anterior a qualquer ação. Não pode, portanto, fundar um direito à imunidade que só pode surgir após a ação. O que funda um dever e um direito de praticar uma boa ação é a natureza humana, pois ela se toma concretamente na dependência de seu fim, este último de ordem sobrenatural.

24 – O padre Basile volta então ao argumento o qual acredita poder deduzir do comentário de Caetano sobre a passagem citada de São Tomás (sobre o batismo de filhos nascidos de pais infiéis). Referimo-nos aqui ao que dissemos acima, em nosso n° 18. Acrescentemos simplesmente que nem São Tomás nem Caetano dão qualquer argumento a favor do direito à imunidade. Eles apenas explicam que seria contrário à lei natural administrar o batismo a crianças contra a vontade de seus pais. Há aqui a aplicação particular de um princípio geral, segundo o qual ninguém pode ser forçado pela violência a abraçar a verdadeira religião: a criança sendo como tal ordenada a Deus por intermédio da própria razão de seus pais, violentando-os equivale a fazer violência contra eles. Mas não se segue de forma alguma (e nem São Tomás nem Caetano querem dizer) que os pais teriam o direito de não serem impedidos de inculcar uma religião falsa em seus filhos. E se a Igreja não os impede de fazê-lo, ela se contenta em tolerar o que continua sendo um mal, mas um mal menor em relação ao mal pior que seria representado pelo desrespeito da lei natural. Este direito natural exige que passemos por intermédio dos pais para dispensar aos filhos os bens da natureza e da graça. Mas isso é tudo: se os pais têm um direito natural a esse papel de intermediários e, portanto, não devem ser impedidos de desempenhá-lo, esse papel só faz sentido para fornecer às crianças os únicos bens que Deus providenciou para eles da natureza e da graça. Sobre este assunto, a seguinte observação de São Tomás é esclarecedora: “Prover aos filhos dos infiéis os sacramentos da salvação pertence a seus pais. Existe, portanto, um perigo para ele se, ao retirar os seus filhinhos dos sacramentos, o resultado for um prejuízo para a sua salvação” [32]. Isso prova que os pais não têm o direito (nem positivo nem negativo) de dar aos filhos o que seria contrário aos bens da graça.

5 – A finalidade do direito à liberdade religiosa

25 – Pe. Basile nos censura [33] por acreditarmos que “o objetivo principal da liberdade religiosa segundo DH seria agir segundo a própria consciência, não sendo importante a questão do erro”. Segundo ele, o verdadeiro significado da DH seria que o objetivo principal da liberdade religiosa é “colocar o homem nas melhores condições para cumprir sua obrigação (individual e coletiva) de seguir sua consciência e aderir à única verdadeira Igreja”, a finalidade do direito de que fala DH é aderir à verdade fazendo-o segundo a própria consciência. Apenas releia-nos [34]  para perceber que, longe de ter dito isso, procuramos dar uma explicação mais exata possível do pensamento de DH. E mostramos assim que isso é contraditório: como poderia o homem cumprir seus deveres para com Deus e aderir à única verdadeira Igreja em uma sociedade onde reina o indiferentismo religioso e onde todas as religiões, verdadeiras ou falsas, gozam de imunidade? Se o homem tem o dever de aderir à verdadeira religião, esse dever só pode ser cumprido em conformidade com a natureza social do homem, que deriva precisamente de sua natureza razoável e livre. DH afirma que o homem pode aderir à verdade de acordo com o que sua natureza razoável e livre exige, mas contrariamente ao que exige sua natureza social. E de fato, de acordo com a natureza social do homem, a aplicação oficial do direito à imunidade levou ao pluralismo religioso, que é a forma universal do indiferentismo social hoje em dia, e leva cada vez mais ao indiferentismo dos indivíduos.

6 – Os limites do direito à liberdade religiosa

26 – Pe. Basile objeta-nos que as famosas “normas morais objetivas”, de que fala DH e que deveriam limitar o direito à liberdade religiosa, “podem ser tão sobrenaturais quanto naturais” [35]. Já seria preocupante, para dizer o mínimo, que um texto conciliar permanecesse deliberadamente vago desta forma, sobre uma questão de tamanha importância. Mas, deixando este ponto de lado, contentamo-nos em colocar ao nosso opositor a questão à qual, pelo menos até agora, os representantes nomeados da Santa Sé nunca deram uma resposta convincente: como podemos conceber uma ordem moral sobrenatural em que aos homens seria dado o direito, por uma questão de princípio, de não serem impedidos de professar publicamente a religião que consideram verdadeira, seja ela na realidade verdadeira ou falsa? As falsas religiões são contrárias ao primeiro mandamento de Deus; também são contrários aos mandamentos de Cristo, que prescreveu o batismo em nome das três Pessoas da Santíssima Trindade, que insiste em acreditar em tudo o que seus apóstolos e seus sucessores ensinarão até o fim dos séculos, na dependência de seu único vigário, o bispo de Roma, e que impõe, sob pena de condenação eterna, a adesão à única Igreja Católica Romana. Como poderia haver uma ordem moral objetiva, sem levar em conta esse direito divinamente revelado e, portanto, sem impedir a profissão pública das falsas religiões que se opõem a ela? Uma das duas coisas: ou a DH reconhece o direito à imunidade para os seguidores de todas as religiões e então os limites de que fala não são os da ordem moral objetiva (que só pode ser sobrenatural); ou esses limites são de fato os dessa ordem moral sobrenatural e então DH só pode reconhecer o direito à imunidade para os membros da Igreja Católica. Basta reler cuidadosamente o texto de Dignitatis humanae para compreender em que sentido esta alternativa deve ser resolvida. Não, os limites de que DH 7 fala não podem ser os da verdadeira ordem moral sobrenatural. DH 2 obriga-nos a dizer que são os de uma ordem pseudo-naturalista. A menos que digamos que o DH é um texto intrinsecamente contraditório; mas então, isto já nos dá razões suficientes para não o aceitarmos.

7 – Nossas conclusões

27 – Mantemos aqui, com mais razão, o que escrevemos no último número de março do Courrier de Rome: “Dignitatis humanae é contrária à Tradição”. Que o padre Basile ainda não tenha percebido isso não é motivo suficiente para negá-lo: magis amica veritas. Os raros textos do magistério anterior ao Vaticano II que se gostaria de alegar a favor da liberdade religiosa, se bem compreendidos, absolutamente não fornecem o argumento esperado e vão mesmo na direção oposta a esta nova doutrina. A quanta cura representa inclusive o contraditório da Dignitatis humanae.

28 – Quanto às explicações do Pe. Basile, permanecem fúteis, principalmente por três razões.

29 – Em primeiro lugar, não distinguem entre o sujeito e o objeto da lei. Dizer que é a pessoa humana e não o erro que goza do direito à imunidade não é uma resposta, pois isso equivale a dizer que é o sujeito do direito que goza do direito, não o objeto da lei. Com efeito, a questão colocada, e a qual esta distinção não responde, diz respeito precisamente ao objeto da lei. O direito à imunidade, concedido por DH a todo homem, tem por objeto o exercício público de qualquer religião, verdadeira ou falsa, desde que o homem a julgue (com ou sem razão) verdadeira. Este direito negativo, portanto, tem por objeto simplesmente a religião verdadeira e as religiões falsas: é um direito negativo tanto ao erro quanto à verdade.

30- Em segundo lugar, o ditado segundo o qual “o abuso do direito não tira o uso do direito” é usado pelo Padre Basile à custa de uma petição de princípio. Porque para poder aplicar este ditado no caso da liberdade religiosa, seria necessário começar por provar que o abuso em questão é mesmo o de um direito. No entanto, o oposto é verdadeiro. Sem dúvida, sim, não é qualquer pecado que basta para fazer perder, por exemplo, o uso do direito à vida [36]. São apenas os pecados diretamente opostos à vida que causam a perda desse direito. Mas o fato é que o direito à vida está devidamente estabelecido como tal. Por outro lado, a imunidade em matéria de profissão religiosa, tal como definida por DH, não pode ser definida como um direito. Pois precisamente o exercício de uma religião falsa não constitui o exercício abusivo de um direito, mas um pecado diretamente oposto à religião, e a própria negação do direito, que só pode ter por objeto o exercício da religião verdadeira.

31 – Finalmente, em terceiro lugar e mais profundamente, as explicações do Pe. Basile pressupõem que o objeto da lei não é o que é verdadeiro e bom, mas o que a consciência apresenta como verdadeiro e bom. Esse pressuposto subjetivista e relativista corresponde a uma posição filosófica. Nem o magistério da Igreja nem a santa teologia o admitiram, pelo menos até o Vaticano II. Ainda na Encíclica Pacem in terris, João XXIII fala precisamente (é o que podemos ler no texto original latino) de um direito humano de exercer a “religião” e não a “sua religião”. Diz-se de fato: “In hominis juribus hoc quoque numerandum est ut et Deum ad rectam conscientiae suae normam venerari possit, et religionem privatim publiceque profiti”. Na nota 26 de seu estudo de julho de 2013 [37], o padre Basile corrige este texto e fala do direito de professar “sua religião”, enquanto o papa fala exatamente do direito de professar “a religião”, e isso de acordo com o que representa “a justa regra de consciência”, ou seja, a regra de uma consciência não errônea. A correção defeituosa introduzida pelo padre Basile é sintomática dessa distorção da mente, que leva a considerar as coisas de um ponto de vista acima de tudo subjetivo.

32 – Essa distorção da mente é característica do pensamento moderno. Deveríamos nos surpreender ao vê-la tão abundante na Igreja hoje, mesmo entre as melhores mentes, já que a intenção do último concílio ecumênico era justamente expressar a fé da Igreja segundo os modos de pesquisa e formulação literária de pensamento moderno [38], e redefinir a relação da fé da Igreja com certos elementos essenciais deste pensamento [39]?

Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas de rodapé

  1. BV1, P.289. 
  2. BV1, pág. 299. 
  3. Nas 3.000 páginas da tese publicada em 1995 (1ª edição) e 1998 (2ª edição), onde o Padre Basile tenta apresentar o direito à liberdade religiosa como desenvolvimento doutrinal homogêneo da Tradição da Igreja, podemos nos referir ao estudo do nosso colega Pe. Guy Castelain, “Um romance sobre a liberdade religiosa” in Fideliter n° 133 de janeiro-fevereiro de 2000, p. 5-11. 
  4. CDR, § 8.
  5. Arcebispo Lefebvre, acuso o Concílio , 1976, p. 9 
  6. BV2, I). 
  7. CDR, § 11.
  8. BV2, I), A), b). 
  9. Bento XVI, “Discurso à União dos Juristas Católicos Italianos em 9 de dezembro de 2006”, DC n° 2375, p. 214-215. 
  10. São Pio X, Vehementer nos de 11 de fevereiro de 1906 em Atos de São Pio X , La Bonne Presse, t. II, pág. 127. 
  11. São Pio X, Nosso encargo apostólico de 25 de agosto de 1910 nos Pontifícios Ensinamentos de Solesmes, A paz interior das nações, nº 430. 
  12. Leão XIII, Encíclica Libertas de 20 de junho de 1888 nos Ensinamentos Pontifícios de Solesmes, A paz interior das nações, nº 215. 
  13. BV2, I), B). 
  14. BV2, I), D). 
  15. BV2, ibid . 
  16. CDR, § 24. 
  17. CDR, § 12-15. 
  18. CDR, § 11: João Paulo II, “Mensagem de 8 de dezembro de 1987 para o Dia Mundial da Paz de 1988”, DC 1953, p. 2-4. 
  19. Pe. Basile faz uma referência imprecisa ao nosso estudo: citamos Bento XVI no § 14, e não como ele afirma no § 15. 
  20. Bento XVI, “Mensagem de 8 de dezembro de 2010 para o Dia Mundial da Paz 2011”, DC n° 2459, p. 4-5. 
  21. BV2, II), A), 1), 1), 4°), citando Dom Joseph Baucher (1866-1929), “Liberté” em DTC, t. IX (1926), col. 701. 
  22. BV2, II), A), 1), 1), 5°). 
  23. Caetano, Commentary on the Summa Theologica of Saint Thomas, 2a2ae pars, questão 10, artigo 12, n° VI, citado no CDR, § 24. 
  24. BV2, II), A), 1), 2). 
  25. CDR, § 10. 
  26. CDR, § 12. 
  27. BV2, II), B), 1), 1). 
  28. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologica , 1a2ae, questão 19, artigos 5 e 6, bem como o número de dezembro de 2013 do Courrier de Rome. 
  29. BV2, ibid . 
  30. BV2, II), B), 1), 2). 
  31. BV2, III), A). 
  32. Summa Theologica , 2a2ae, questão 10, artigo 12, ad 5. 
  33. BV2, IV), A). 
  34. CDR, § 4-6 e 20-22. 
  35. BV2, V), B). 
  36. BV2, 6ª conclusão. 
  37. BV1, pág. 294. 
  38. João XXIII em DC No. 1387, col. 1382-1383 e DC nº 1391, col. 101. 
  39. Bento XVI, em DC n° 2350, col. 59-63.