OPUS SEM ALIADOS, ROMA, E O LEITE DERRAMADO

opus dei

Fonte: Infovaticana

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Já está claro dentro do Opus Dei. Tão claro, que o próprio prelado manda, a seus fiéis, cartas com mensagens cifradas: venha o que vier de Roma, seguirão fazendo o que lhes der gana. Traduzido à linguagem curial, soa piedoso: “Nada muda no espírito, nas normas de piedade e nos costumes de família”. Mas quem sabe ler entrelinhas entende a mensagem: aconteça o que acontecer no Vaticano, continuaremos sendo os mesmos. O que, no fundo, equivale a dizer que farão o que lhes der na telha.

A ironia é que tudo o que acontece agora – a iminente mutilação jurídica, a perda de poder interno, a indiferença de Roma – é o preço de décadas de docilidade, de prudência malcompreendida, de confundir fidelidade com submissão e fé com comodidade [nota do editor: e de achar que o Papa Francisco gostava de bajuladores]. O Opus Dei prestou, talvez sem saber, um serviço monumental ao progressismo eclesial: o de anestesiar boa parte dos católicos fiéis em uma obediência sem alma, em uma espiritualidade burguesa, em um cristianismo burocrático, perfeitamente domesticado.

Durante anos, enquanto a Igreja ardia, eles administravam sorrisos, retiros e direções espirituais como quem cuida de uma empresa. Jamais levantaram a voz contra a demolição litúrgica ou doutrinal – e quando o fizeram, foi com voz tão baixa que não se ouviu fora de seus próprios centros. Agora que chegou a sua hora, não há ninguém para defendê-los. Porque não construíram fidelidade, mas dependência; não formaram testemunhos, mas empregados.

Os esquecidos

Recordo o Bispo Livieres, o primeiro numerário [1] do Paraguai, com quem tive a sorte de trocar cartas antes de sua morte. Foi o primeiro mártir da crueldade de Bergoglio. Arrancaram-lhe a diocese, humilharam-no publicamente, expulsaram-no como a um criminoso. E o que fez o Opus Dei? Nada. Abandonaram-no como um cão sarnento. Nem uma palavra ou defesa. Mais ainda, fizeram um comunicado infame dizendo que “recebia formação do Opus Dei”, mas que não era “membro”. O homem que havia dado sua vida pela Obra morreu sozinho, traído pelos seus. Roma o crucificou, e a Obra baixou a cabeça.

O mesmo aconteceu com Vallejo Valda, encarcerado nos porões do Vaticano por ordens do mesmo pontífice que hoje canonizam nas redes. Quanto o detiveram, o Opus Dei correu para publicar um comunicado cópia-e-cola do comunicado de Livieres: “Não pertence à prelatura”. Nem um gesto de misericórdia, nem uma visita. Nada. Ratos fugindo do barco. Afinal, não se pode manchar a reputação da casa.

A missa que não foi

E o que dizer da liturgia. Sabido é que “são” Josémaria nunca celebrou a missa nova. Sua fidelidade ao rito de sempre foi absoluta, inclusive quando todos corriam a se adaptar ao espírito dos tempos [nota do editor: conste que não é essa a versão oficial da Obra]. Contudo, seus herdeiros fizeram o contrário: aceitaram sem pestanejar os abusos litúrgicos, os experimentos, os grupos emocionais de guitarras e globos. Permitiram que florescesse em seu seio projetos como Hakuna, onde se mete a mão na Eucaristia com pretexto juvenil, porque convinha deixar Francisco contente e ficar do lado “simpático” da Igreja.

De “não tirar a batina exceto em cada” passou-se à camisa polo clerical e ao ar de pastoral executiva. Da missa com genuflexório e silêncio, passou-se a Emaus. E agora se surpreendem que Roma os apunhale em seu momento de maior debilidade, depois da perda do Banco Popular. Mas era inevitável. Quando se renuncia a ser algo, deixa-se de existir.

A fatura da obediência

No fundo, isso não é um castigo, é um ajuste de contas. Roma não paga traidores, nem premia a tibieza. A Santa Sé aplica com eles a mesma lógica que aplicaram com tantos outros: silêncio, distância, formalismo e, por fim, esquecimento. O Opus Dei acreditou que sua “prudência” lhe daria imunidade. Mas, na Igreja de hoje, a prudência é suspeita e a ortodoxia, um estorvo. Receberam com a mesma moeda que ajudaram a cunhar.

Contudo, há algo de poético nessa queda. Os que durante décadas ensinaram a obedecer sem pensar, a calar perante a injustiça, a “oferecer” a humilhação, recebem agora a sua justa lição. Foram obedientes até o fim. E, enfim, obedeceram até serem apagados.

O último ato

Ocariz escreve cartas suaves, cheias de citações de “são” Josemaria, com exortações à fidelidade, apelos ao amor. Mas soa como um general derrotado que ordena manter a formação de batalha, mesmo com o quartel ardendo em chamas. “Nada muda no espírito”, diz. E tem razão: o que muda é todo o restante.

Roma, implacável em seu paternalismo, irá deixa-los com suas recordações, suas devoções, seus modos, seus sorrisos, suas tertúlias e seus cafés com leite. Mas lhes tirará o que mais amavam: o poder. E quando isso ocorrer, ninguém chorará. Nem os progressistas, que nunca gostaram deles; nem os fiéis, que já não os reconhecem.

O Opus Dei, ao menos uma vez, terá de aprender – como tantos outros antes deles – que a neutralidade, em tempos de confusão, não é virtude: é covardia disfarçada de prudência.

A ilusão de Roma

Convém dizer com clareza: Roma tampouco deveria se enganar. Se, na Cúria, alguém imagina que desmantelar o Opus Dei vai resultar no botim dos seus bens, suas obras ou seus colégios, deveria ler as letras miúdas. O Opus Dei pode ter sido ingênuo no espiritual, mas não foi no jurídico. E os que buscaram tais coisas deveriam saber que o que se desmantela canonicamente não implica uma posse patrimonial. A prelatura não tem quase nada em seu nome: as obras, os colégios, os centros, as residências, tudo está no nome de associações civis, de fundações ou de pessoas privadas leais. Quando Roma chegar com a chave, descobrirá que não tem nem porta para abrir.

É a mesma lição que o Vaticano deveria ter aprendido com o Sodalício da Vida Cristã [2]. Lá, pensaram também que bastava uma intervenção para controlar seus recursos e sua estrutura, e deram de cara com um labirinto de pessoas jurídicas autônomas, impossíveis de centralizar. O mesmo ocorrerá aqui: o Opus Dei não é uma paróquia, mas uma rede de obras privadas sustentadas por leigos. Desmantelar a estrutura canônica não equivale a apropriar-se da realidade material. Podem suprimir a prelatura, mas não poderão encostar nas suas contas.

Os romanos caíram no conto do leite derramado, acreditando que uma vez liquidada a Obra, sobraria um botim de colégios, residências e propriedades dispostas a uma nova gestão “pastoral”. O que lhes espera, contudo, é uma decepção monumental: descobrirão que esse tesouro institucional é um mosaico de entidades privadas, cada uma com seu próprio governo e seus próprios advogados. No dia seguinte à reforma, Roma encontrará uma mansão vazia.

Por isso, se o Vaticano pensava cobrar em bens o que considera uma dívida de poder, verá que calculou mal. O Opus Dei pode ter perdido a autoridade, mas não a astúcia. E quando chegar a hora de executar o novo mapa canônico, Roma entenderá – como já entendeu com o Sodalício – que desmantelou uma estrutura, mas não recuperou nada. Nem poder, nem obediência, nem patrimônio. Somente o eco do que foi uma Obra viva, agora convertida em uma sombra jurídica.

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[1] Numerários são leigos que ficam solteiros, moram nas casas da Obra e revertem quase todo seu salário para o grupo. São tão membros que, dentro da Obra, tratam a entrada como numerário tal como um voto – até condenam ao inferno quem teve a “deslealdade com Deus” de sair da máfia, como se o voto de ir trabalhar numa multinacional fosse o mesmo voto de um irmão dominicano ou franciscano. O blog apoia que todos os numerários e supernumerários saiam do Opus (ou da ordem que sobrar) sem peso algum na consciência.

[2] Sociedade de leigos fundada no Peru, em 1971, e fechada pelo Papa Francisco em 2025.