DO AMOR ÀS PRÓPRIAS OPINIÕES E O DESPREZO PELA SÃ DOUTRINA

Resultado de imagem para Santo Hilário de PoitiersNão há qualquer dúvida de que toda palavra humana está sempre exposta à contradição, porque, quando há diferentes movimentos das vontades, são também diferentes os modos de pensar das mentes. Quando se luta com paixão contra os juízos dos adversários, se contradizem as afirmações a que nos opomos. Embora cada palavra conforme a verdade seja perfeita, no entanto, se cada um prefere algo diferente, a palavra verdadeira se expõe à réplica dos contraditores, porque o erro de uma vontade insensata ou perversa se afirma contra a verdade que não entende ou não quer aceitar. O desejo de contradizer persiste, inabalável, e não tem medida a obstinação em contradizer.

A vontade não se submete à razão, e o interesse não se põe a serviço da verdadeira doutrina. Procuramos razões para provar o que desejamos com empenho e adaptamos a doutrina aos nossos desejos. Então será mais de nome do que de realidade, a doutrina que imaginamos, e já não será mantida a norma da verdade, mas a do que agrada, isto é, a que a vontade usará para defender o que quer, e não a que estimulará a vontade pelo conhecimento da verdade racional. Desses vícios das vontades caprichosas, surgem as objeções das tendências contrárias e, entre a afirmação do verdadeiro e a defesa do que agrada, trava-se uma luta pertinaz, visto que a verdade se mantém e a vontade caprichosa se defende. Aliás, se a vontade não precedesse a razão, mas, mediante a compreensão da verdade, fosse movida a querer o verdadeiro, nunca a doutrina originada na vontade seria desejada. Todo desejo de doutrina seria movido pela razão, e a palavra verdadeira não encontraria oposição. Ninguém defenderia como verdadeiro o que deseja, mas sim começaria a querer o que é verdadeiro.

O Apóstolo não ignorava a existência destas vontades viciadas e, entre muitos preceitos para o anúncio da fé e a pregação da Palavra, escreveu a Timóteo: Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas (2Tm 4,3-4). Quando, levados pelo desejo da impiedade, não puderem suportar a sã doutrina, então reunirão os mestres que desejam, isto é, os que acumulam argumentos doutrinários adaptados a seus desejos. Não quererão ser ensinados, mas congregarão doutores para dizer-lhes o que querem, a fim de que o próprio acúmulo de pesquisadores e de mestres escolhidos e reunidos por eles satisfaça sua ânsia. Esta tão grande loucura da estulta irreligiosidade ignora qual é o espírito que os leva a não suportar a sã doutrina e desejar a corrompida.

Aprenda, pois, do mesmo Apóstolo, escrevendo a Timóteo: O Espírito diz expressamente que nos últimos tempos alguns renegarão a fé, dando atenção a espíritos sedutores e a doutrinas demoníacas por causa da hipocrisia dos mentirosos(1Tm 4,1-2). Que proveito se encontra na doutrina procurada mais pelo que seduz do que pelo que ensina? Que devoção pela doutrina verdadeira significa não desejar o que se deve ensinar e criar uma doutrina adaptada aos nossos desejos? Estas coisas atraem os espíritos sedutores e confirma as mentiras de uma religião simulada. A hipocrisia mentirosa acompanha o abandono da fé, e continua a haver piedade nas palavras, mas não na consciência. Tornam ímpia esta mesma piedade aparente por meio de palavras mentirosas e corrompem, com falsas doutrinas, a santidade da fé, visto que se trata de uma doutrina elaborada segundo seus desejos, e não de uma doutrina de acordo com a fé evangélica. Incitados pelo prurido de ouvir e pelo impaciente deleite de escutar a nova pregação conforme seus desejos, afastados inteiramente da escuta da verdade, prendem-se totalmente às fábulas e procuram dar uma aparência de verdade ao que dizem, porque não podem ouvir nem dizer o que é verdadeiro.

Chegamos a este dificílimo tempo a que se refere a profecia apostólica. Procuram-se agora mais os mestres do que é criado, do que os que pregam a Deus. Os homens se preocupam mais com desejos humanos do que com o ensinamento da fé verdadeira. O prurido de ouvir levou-os a escutar o que desejam ouvir, de tal modo que, para os doutores reunidos agora, só vale a pregação que afasta o Deus Unigênito do poder e da verdadeira natureza de Deus Pai, o que, para nossa fé, significa que é um Deus de outro gênero ou que não é Deus. Com uma confissão mortífera e ímpia, em ambos os casos declaram que há dois deuses que têm uma divindade diferente ou negam que seja Deus Aquele que possui uma natureza que vem de Deus pela natividade[1]. Para os ouvidos alheios à verdade e voltados para fábulas, isto é muito agradável, visto que não suportam ouvir a sã doutrina e expulsam-na, como aos seus pregadores.

Embora muitos reúnam mestres segundo os seus desejos e rejeitem a sã doutrina, a verdade da pregação não estará exilada dos santos. Exilados, falamos pelos livros, e a palavra de Deus, que não pode ser ligada, livremente se difunde, advertindo ser este o tempo da profecia apostólica. Pois quando o anúncio da verdade é recebido com impaciência, e são numerosos os mestres que ensinam de acordo com os desejos humanos, já não se duvida terem chegado aqueles tempos. E a verdade está no exílio, juntamente com os pregadores da fé incorrupta. Não nos lamentamos por causa destes tempos, ao contrário, nos alegramos, porque a iniqüidade se mostrará neste tempo de nosso exílio, afastando os que pregam a sã doutrina e procurando para si numerosos mestres, segundo seus desejos. Em nosso exílio estamos alegres e exultamos no Senhor, porque se realiza em nós, em plenitude, a profecia apostólica.

Santo Hilário de Poitiers – Tratado sobre a Santíssima Trindade – escrito entre aos anos de 356-360.

[1] Referência ao arianismo.