Por Dardo Juán Calderón
Fonte: In Exspectatione – Tradução: Dominus Est
Parece ser Gabriel Tarde quem descobriu este assunto da Micropolítica, que trata de que, pelo fato de vivermos em sociedade, nós, os homens comuns – que não participamos da Alta Política ou Macropolítica – mesmo assim “fazemos política” desde as estruturas básicas da sociedade; e que essa atividade é muito mais influente na macropolítica do que se pensa levianamente.
Essa influência faz com que os manipuladores modernos da política, depois de seguir os sábios conselhos de Maquiavel, tenham dado grande importância à manipulação da “micropolítica”. Tarde discutiu com os outros gênios da sociologia que diziam que esses fenômenos básicos não são políticos, mas psicológicos, mas o fato é que ganhou Tarde; que mais vale tarde do que nunca, porque isso havia sido dito por Aristóteles, e foi a principal atividade política da Igreja católica – fazer famílias cristãs – por séculos. Mas a questão é que os sociólogos descobriram esse campo de estudo e escreveram enormes monsergas sobre o assunto, sendo um dos mais destacados e usados na atualidade a obra de Gilles Deleuze, bibliografia obrigatória há muitos anos na formação dos licenciados em Ciências Políticas.
O assunto da lei do aborto em nosso país torna atual uma reflexão sobre o tema; as estruturas básicas de uma sociedade parecem, em tais circunstâncias, influenciar os caminhos da Macropolítica, mas cabe discerni-lo à luz dessas considerações se influenciaram para cima ou se foram manipuladas por cima. Reflexão também necessária pelo fato de que as famílias católicas – e se ainda há algumas estruturas um pouco mais complexas que podem ser chamadas católicas – têm como única possibilidade de influenciar na alta política a ação, através de estruturas e condutas de base, já que o Estado laico não permite chegar a seus mais altos escalões professando uma religião. Pode chegar um católico em seu foro íntimo, mas não se pode exercer a função enquanto tal, pois deve reconhecer o caráter estritamente laico de sua função, a liberdade de cultos e outras lindezas que são incompatíveis com a condição de católico íntegro – mas compatíveis com a de católico modernista. E o pior é que a “função” se exerce desligada de toda representação real de interesses; como membro de uma burocracia cujo objetivo final se desconhece – se é que existe um (como veremos).
A grande pergunta dos católicos é o que podemos fazer a partir de nossas humildes posições para influenciar boamente nos destinos políticos de um estado moderno? Mas não é comum encontrar a pergunta a seguir: De que maneira a macropolítica nos manipula para que, acreditando que influenciamos, joguemos o jogo deles? Como carecemos de vocação iluminadora e como a primeira pergunta foi respondida a granel com as mais eufóricas besteiras, deixaremos o leitor responder a segunda.
Trataremos de resumir, fazendo a mais tendenciosa interpretação do ensinamento dos sociólogos especialistas (já que a objetividade é um luxo de hipócritas), o “como vê o inimigo” tais assuntos, já que, prevendo as resistências das boas gentes, fizeram reflexões sisudas para manipular as reações das células da base social. Aqui vai sua lição.
Vamos usar uma analogia geométrica da moderna sociologia que, mesmo sendo artificial e metafórica não deixa de trazer valiosos aportes para o entendimento do problema; sobretudo porque efetivamente se aplicam suas indicações desde os mais altos escalões, por meio de especialistas que estudaram com atenção essas doutrinas sociológicas.
Eles nos dizem que, na sociedade, encontram-se múltiplos “segmentos” (famílias, instituições, grupos etc.) e mesmo dentro desses grupos há segmentações internas (pais-filhos, chefes-subordinados etc.). Essas segmentações podem ser classificadas em três formas mais notáveis: binárias, circulares e lineares.
Nos segmentos binários eu me incluo em um grupo que se “opõe” a outro (não necessariamente oposição implica luta, mas sim um bando de pertencimento que se distingue e luta, faz acordo ou é regulado por outro), por exemplo, mulheres-varões, chefes-empregados, pais-filhos, crentes-ateus, modernistas-tradicionalistas, patrões-trabalhadores, classe média-classe baixa (ou classe alta com cada uma), e por exemplo no caso atual: abortistas-antiabortistas, e mil outras oposições binárias que ocorrem até mesmo dentro delas, pois por exemplo nem todos os antiabortistas – nem os abortistas – pertencem ao mesmo grupo.
De fato, há alguns que entendem a maldade das oposições binárias e, ao tomar essa postura, convertem-se em uma. Podemos aceitar que há binarismos naturais, outras criadas por interesses reais e outras provocadas pela publicidade com o único efeito de desordenar. Dentro das provocadas pelo poder estão todas aquelas que obedecem ao velho aforismo “divide para reinar”. É engraçado ver como da esquerda se atacam as oposições binárias naturais (as do sexo, ou a de pais-filhos, por exemplo) mas imediatamente se cai em oposições binárias artificiais como as de classes ou ideológicas.
Os segmentos circulares costumam ter maior coesão e ser de origem mais natural; são grupos que em conjunto buscam um fim comum que se integra na sociedade inteira, e dentro do qual se regulam os segmentos binários internos (função da mãe e do pai na família). A família seria a primeira, uma união de vizinhos, o município, a província, a região, as associações de trabalho (não o “sindicato”, que é binário contra a “patronal”) e muitas outras, até o círculo maior que é o Estado. Todos esses círculos não necessariamente são concêntricos; defendem seus próprios interesses e resguardam sua vida formando um conjunto que é o Estado. Funcionam como os círculos que várias gotas d’água produzem ao cair num lago, sendo o lago o Estado. Essa última imagem nos dá uma ideia de que eles se compenetram uns aos outros, que alguns são maiores e mais fortes e outros menos, que alguns diminuem e outros crescem. Os sábios da sociologia nos dizem que essa era a forma mais comum das sociedades primitivas: a segmentação circular não concêntrica. Que eram bastante independentes entre si, embora inter-relacionados e – agreguemos – foram a forma principal da sociedade católica medieval.
Esses segmentos produzem uma certa força de coesão no Estado, mas ao mesmo tempo uma força de independência que não deixa o Estado ser tão poderoso – ou seja, são forças de nucleação e ao mesmo tempo debilitantes para o poder central. No Estado moderno se forçam as energias desses segmentos circulares para fazê-los concêntricos e, assim, dirigir toda a energia para ele.
E, por último, os segmentos lineares. Instituições que são de linha reta do topo à base. Os mais clássicos ou antigos são a Igreja e o exército, podemos falar depois das carreiras de estudo e das lojas maçônicas. Mais modernas são as grandes empresas comerciais e o grande monstro linear que é a burocracia. Distingamos: exceto a Igreja, os demais respondem a interesses de cúpula, ou seja, drenam forças dos círculos para servir a um poder central, seja de modo bom para um bem comum, seja de modo mau para fins alheios ou inconfessos, mas sempre há tensão entre elas com os círculos, um cabo de guerra em que se entrega e se retém.
A Igreja tem uma característica especial – é concebida para alimentar a força desses segmentos circulares, ou seja, dá energia de “cima” para “baixo”, e não ao contrário como os outros, e muitas vezes converte-se em parte dessa tensão dos círculos com o estado central, tomando partido pelos primeiros.
Como podem ver, alguém pode participar ao mesmo tempo dos três tipos de segmentos e por conseguinte, os componentes de uma das segmentações trazem a ela mesma os interesses das outras, que costumam armar uma colisão de interesses enormes que montam o tecido ou emaranhado social – que o sociólogo trata de desemaranhar para saber o que ocorre numa sociedade concreta. Um homem é parte de uma família, de um município ou região, que são circulares, mas pode ao mesmo tempo participar de segmentações binárias que excedem esse grupo e trazem instabilidade às relações do círculo, e ao mesmo tempo pertencer a segmentações lineares que respondem a outros interesses e que trazem instabilidade aos dois primeiros, e os dois primeiros a esta.
Exemplo: posso pertencer a uma família, e também ao grupo dos abortistas ou antiabortistas e, além disso, ser um burocrata de linha ou um militar (hoje já não há diferença). É provável que os interesses familiares sejam grandes e me façam encher de parentes a linha burocrática que passa a servir a essa família; ou é provável que os interesses lineares me levem a brigar com a família. E ser abortista ou antiabortista pode produzir colisões familiares ou lineares. E assim existem milhões de entrecruzamentos e colisões como os átomos de uma matéria, mas que por fim compõem essa matéria com uma maior ou menor estabilidade, podendo chegar à desagregação, explosão ou implosão.
Acrescentemos que hoje esses segmentos binários e lineares (muito improvavelmente os circulares) excedem o próprio Estado. A feminista é internacional e recebe suas ordens de um escritório longínquo; mesma coisa para o socialista, também para o empregado da General Motors ou para um exército que trabalha para a ONU. E então o rascunho se faz quase impossível e enormemente complexo, pois pelo duplo ou triplo pertencimento, os circulares se veem afetados. A uma família de tal região ou município já não importa essa região ou município pelo ponto de vista de seu sustento se sua renda provém de uma linha internacional (suponhamos que seja empregado do Banco Mundial), mas lhe importa a região quanto a enfrentamentos binários, porque é antiabortista – por exemplo – assunto que o opõe com alguns de seus vizinhos; mas o Banco Mundial que lhe dá o sustento econômico promove políticas abortistas e se opõe a ele no segmento binário. E todas essas oposições de planos e segmentos são enfrentadas em si mesmo e levam as contradições dentro de cada segmento.
Foi Kafka que mostrou literariamente o emaranhado da burocracia moderna em que um escritório – um poder judiciário ou um banco – supostamente responde a uma linha hierárquica dura, mas quando alguém vive lá dentro vai descobrindo os quilômetros de intromissões dos outros segmentos, que o pervertem desde um ponto de vista, ou o humanizam desde outro. Porque nem o chefe toma suas decisões exclusivamente enquanto chefe de linha, já que pode acomodar seus filhos ou sobrinhos para fortalecer seu círculo, ou também tem opções binárias que incidem e nas quais um subordinado pode ser superior a ele. O chefe é superior em linha, mas inferior a um subalterno na Loja, na Opus, no partido político, no clube de golfe ou de rugby. E assim se formam mil entrecruzamentos.
Atualmente, tudo chega ao ponto que nos faz dizer: “ninguém sabe para quem trabalha”, coisa que na sociedade tradicional forjada nos segmentos circulares não concêntricos era muito mais fácil de saber, porque o interesses estava muito próximo ao homem. Parece que seria fácil, também, saber para quem se trabalha em uma sociedade altamente centralizada a partir de segmentos circulares concêntricos – como são o totalitarismo monárquico ou fascista – mas aqui os interesses estão muito longe do homem e a força dos segmentos lineares (exército, partido, burocracia, loja) é enorme sobre os circulares que tendem a ser atropelados, desvitalizados na entrega de todas as suas energias ao segmento linear. Corremos o risco de que, embora sabendo para quem trabalhamos – o Chefe, Monarca Absoluto, Guru ou Lider – não sabemos muito bem o que busca a cúpula que está ali longe, manejando interesses que não compreendemos e aos quais nos entregamos em uma confiança fanática.
Que maravilha era ser um grupo de famílias que viviam numa região com pouco contato com o resto! Os círculos das gotinhas d’água chocam-se entre si, mas se acomodam segundo suas energias naturais, e o mesmo dentro de cada família – mas quase não há interferências binárias e lineares, os opostos se complementam em harmonia. Os litígios são claros e simples. E essa paz social pode manter-se em conglomerados maiores, na medida que essas pequenas aldeias são respeitadas pelo poder central, normalmente com economias rurais e pequenas formações urbanas. Assim foi o feudalismo.
Mas a Grande Urbe – fruto da força de segmentos lineares e binários que empurraram esses círculos – armou a grande confusão (efeito do capitalismo). A política católica sempre soube que a paz social se baseia em manter esses núcleos independentes, suavemente subordinados por impostos não excessivos, levas militares muito pequenas e quase nenhuma burocracia central – conta-nos Alberto Falcionelli que em pleno século XIX a Rússia tinha esse tipo de aldeias, onde os únicos representantes da burocracia central eram o padre (a Ortodoxia é de obediência nacional) e o carteiro. (Quase sempre ambos bêbados. Conta-se que uma vila se queixou que seu padre era bêbado e ele, em sua defesa, disse: “o carteiro também é, mas o importante é que as cartas cheguem”. Queria dizer, muito sagazmente, que a graça também chegava apesar de sua embriaguez.)
Cabe fazer dois esclarecimentos.
A força linear da Igreja Católica – que já dissemos ter sentido inverso às outras, de cima para baixo – evitava meticulosamente as interferências de segmentos circulares, binários ou lineares alheios em seu interior. Seus homens não podem ter famílias, nem municípios, nem regiões, nem nada que se introduza em seus interesses de forma colateral, muito menos do Estado central, mesmo quando sua energia é para reforçar todos esses círculos e inclusive o Estado Central. E do mesmo modo evitava ter interferências binárias (heresias são seus nomes). A decadência da Igreja no período renascentista foi produto dessas intromissões circulares dos interesses das grandes famílias (agora verdadeiras empresas político-econômicas), depois com os estados fortes o problema era com as intromissões lineares externas ou alheias (partidos) e na atualidade a intromissão é binária ao deixar em paz, com liberdade, as mais opostas opiniões ou heresias (conceito que deixa de ser negativo; as opiniões contrárias são positivas).
O exército das civilizações antigas era bem parecido com uma igreja (os espartanos não tinham família – não digo por causa de sua pederastia, mas todo militar sabe como é complexo ter família com esse ofício) e mais tarde o caso dos Templários e Hospitalários na Idade Média; mas o comum naquela época era um exército que se juntava a partir dos círculos (famílias e regiões) e para casos concretos em que os círculos aportavam seus homens segundo seus interesses concretos (tinham de ser convencidos) e depois voltavam para casa. A tropa estável era muito pequena, normalmente uma guarda ao redor do Rei.
Os exércitos modernos profissionalizados, formados por homens de interesses cruzados entre binários e circulares (famílias, regiões, partidos, lojas) transformam-se num emaranhado como o que descrevemos anteriormente. Embora, em princípio, respondam ao Estado Central, muitíssimas vezes explodem em disputas binárias (bandos) e seus componentes têm filiação com outros lineares (partidos, lojas) que podem até estar fora do Estado, e embora se justifiquem pela defesa comum dos círculos, muitas vezes – como se passa em toda força linear centralizada – são atropelados. Levemos em conta que a função de “homem linear” – qualquer que seja – reduz a aptidão para a solidez familiar. A linha atropela o círculo, tira do homem o melhor de suas energias.
Na sociedade tradicional, o que dava unidade ao todo de círculos não concêntricos? O que lhes ligava, ou “religava”? É justamente o que diz a palavra: uma “religião” comum. E não havia nas sociedades tradicionais, portanto, maior delito político do que atentar contra essa religião, pois era o nexo social que impregnava, por igual, cada círculo não concêntrico e o fazia funcionar em prol do todo. Houve reis que atacaram as heresias com muito mais energia do que a Igreja, grande quantidade de Concílios foram convocados pelo poder político perante a aparição de conflitos binários dentro da Igreja. Todo aporte que saia dos círculos, sejam impostos ou soldados, eram dados com um sentido impregnado de religiosidade – as guerras deviam ser justas ou justificadas com sentido religioso – como também os litígios entre círculos eram solucionados com base nesse critério, e normalmente pelos homens da Igreja. O Rei era, essencialmente, o defensor da Única e Verdadeira Religião, nisso residia e com isso justificava seu poder. Caso contrário, tudo desmontava.
O absolutismo quer tornar concêntricos os círculos e devemos entender que nasce por um duplo erro. Sem dúvida pela apetência de concentração de poder por um lado, mas muito mais por efeito do enfraquecimento dos círculos mais altos da sociedade – a aristocracia – que foram vencidos e debilitados por segmentos binários internos e lineares alheios ou supraestatais (lojas, ideologias, interesses econômicos supraestatais etc.) que desarmaram o tecido que servia de ligação entre o círculo superior e os menores. Rei e povo ficaram, por fim, ameaçados em suas estruturas por esses segmentos intermediários (a História de Rusia de Falcionelli demonstra-o com grande domínio) com o problema conseguinte que se produz nesse matrimônio – rei-povo – pela distância entre interesses, pela comunicação débil e pela incompreensão de necessidades entre ambos.
Os fascismos seriam um reestabelecimento dos segmentos circulares, mas concêntricos; a anulação dos binários e o reforço dos lineares. Todos confluem para um interesse central que corre pelo eixo comum que é um segmento linear muito poderoso: o “partido (ou, em outros casos, o exército); segmento linear que dá energia de baixo para cima, debilitando irremediavelmente os círculos e criando, queiram ou não, uma sensação “democrática”. Certamente reduz ao mínimo as oposições binárias, o que é bom, mas – como no caso do absolutismo – ao ficar sem círculos intermediários a distância com os círculos básicos lhe levam a tratar com eles como “massa”. O absolutismo e os fascismos, queiram ou não, massificam ao não contar com os círculos intermediários. Nos fascismos, são trocados pela força linear da burocracia partidária.
O Estado atual no mundo globalizado é assunto muito mais complexo, porque é um estado que poderíamos considerar como o maior círculo, mas não é um círculo parado e sim dinâmico. Gira e se move como um tornado, diminui e cresce segundo os avatares das forças internacionais lineares e das oposições binárias mundiais, que marcam seu ritmo. Seu pior inimigo são os segmentos circulares menores que se ancoram e fixam-se – em famílias, regiões, etc. – e também os lineares duros: Igreja, fascismos (todos esses têm repugnância pelas interferências externas ao Estado). Seus inimigos tendem a se tornar rígidos e, portanto, são um obstáculo à dinâmica; impedem a força do tornado que choca contra eles e com o choque perdem força – portanto, sua tarefa é provocar segmentos binários e lineares que os arrasem e façam com que flutuem dentro do tornado. Não são esses segmentos lineares como um eixo fixo, duro e austero dos círculos concêntricos fascistas, mas como cordas que boiam dentro do turbilhão nos quais se agarram os cidadãos para buscar a “tranquilidade” do vórtice. Sem dúvidas, o que torna todos dinâmicos é a existência permanente de segmentos binários em luta permanente dentro dos demais (crise de autoridade entre pai e mãe na família, não somente por efeito ideológico, mas por razões de sustento econômico ao conseguir a mulher poder em seus rendimentos, luta de sexos, geracionais, de partidos…).
Os circulares rígidos já quase desaparecem, todos os componentes entram nos combates binários e nas subidas e descidas dos lineares, seja do trabalho, dos partidos políticos ou linhas ideológicas, que quando estão dentro do turbilhão são derrubados e de vez em quando são cuspidos para a terra baldia. As famílias, municípios e regiões explodem internamente em conflitos binários (pais-filhos, abortistas-antiabortistas, feminismo-machismo, classes sociais, partidos políticos, luta de gêneros, raças que até mesmo podem ser inventadas como o indigenismo) – seus membros que notam a instabilidade e debilidade desses grupos, para salvá-los (a natureza tem sua força) vão se agarrando a essas cordas de resgate que são os segmentos lineares móveis (partidos, lojas, burocracia, organizações cristãs, católicas etc).
Os círculos intermediários, como o município ou a região, perderam todo significado circular, pois a burocracia municipal ou regional é um trampolim (um pedaço da corda) para subir para a burocracia estadual e, dela, para a nacional. Já não existem homens que são de sua região para sempre, como eram um Duque ou um Marquês e até pouco tempo atrás certos líderes regionais como intendentes e governadores que serviam a um círculo sem querer sair dele.
Cabe perguntar-se o que dá coesão a esse redemoinho instável. Como todo turbilhão se mantém por um jogo de pressões externas e internas, quando alguma delas se impõe ele desaparece e fica quieto, mas começa a ruidosa queda de todos os que estão flutuando dentro dele por virtude do jogo de forças, e o não querer cair é a grande força de coesão.
Sejamos mais claros: o poder mundial exerce pressões que influenciam uma nação; essa nação se agita com uma força interna para sustentar-se em seu ser e aqui começa o giro por efeito do jogo de pressões. Quando as pressões internas se impõem, a nação desaparece; ou às vezes a força interna que faz pressão centrífuga, ao desaparecer a pressão externa, explode. Este último é o caso da Venezuela, ou dos países do Oriente Médio, onde a pressão dos mercados mundiais sobre seu petróleo funda sua economia – e sua conformação social e política que se arma sobre dinheiro externo – e toda sua atividade se concentra nesse produto de comercialização externa; se o mercado se retira, explode, pois não tem estrutura interna para se sustentar (não há mercado interno e, o que é pior, não há razões de amizade política. China?) Os melhores cidadãos preferem ser conquistados pelas forças externas e os piores transbordam na autodestruição.
Aí, compreendemos que os governantes modernos manejam um tornado que passa por todo o território, que tem enormes pressões externas que colidem com pressões internas, que se alimentam de fragmentações binárias como as forças elétricas positivas e negativas produzidas pela fricção, com raios e trovões internos; que assolam as construções fixas que quando são débeis são arrasadas (já viram as casas de madeira desintegrando-se num tornado?) e que perdem força quando se chocam contra construções sólidas. Então, as construções sólidas devem ser debilitadas com oposições internas – fragmentações binárias – e sustentar todo esse equilíbrio instável (sabemos que toda ordem política é um equilíbrio instável, mas esses são uma onda destrutiva).
A obsessão das cidades antigas era a religião, forças que emanam de “acima” e nutrem as estruturas básicas e tornam sólido o Estado – embora não poderoso. No medievo, essa fonte de energia provinha não do Estado (como na antiguidade) que era mais um dos círculos, mas sim da Igreja, que ao estar acima dos Estados vigiava a existência independente, mas harmônica, de todos os círculos, cuidando que não se produza essa absorção de energia.
No absolutismo e nos fascismos, não é a Igreja mas o Estado o que dá “significação” a todos os pontos em seus interesses e objetivos, suplantando, subjugando ou fazendo desaparecer a Igreja e debilitando os círculos, criando um eixo de absorção e poder linear burocrático, convertendo os “povos” em massas obedientes. Até aqui todos se enojam das fragmentações binárias (e harmonizam as que são naturais).
O Estado atual se explica por uma tensão de forças externas e internas (globalização) que o torna dinâmico, que tende à destruição dos segmentos circulares fixos e dos lineares fixos – todos serão considerados retrógrados ou fascistas e totalitários, sendo impregnados e infiltrados por oposições binárias multiplicadas, injetadas pela publicidade, pelas ideologias e pelas lojas.
A partir da família e de cada organização menor, os municípios e regiões, serão submetidos a um jogo de oposições e constante reorganização em formas novas, com novas oposições internas (abundam-se os exemplos, mas a própria luta democrática é isso). Os segmentos lineares serão fortes, mas plásticos e dinâmicos, agora compostos não por partidários fanáticos, mas por gente que busca a salvação dos círculos e grudam nas cordas – mas que, ao andar um pouco, já não reconhecem seu círculo que mudou por efeito de oposições binárias (sua família mudou, seu município mudou, sua região mudou); resta-lhe apenas agarrar-se para manter-se flutuando. A “significação” desse Estado não é mais uma religião nem levantar objetivos de nação (quaisquer que sejam: raça, civilização, economia….) é a “democracia”, ou seja, uma forma de permanente segmentação binária. Já não é a Igreja que, linearmente, derrama para baixo, nem o estado totalitário que absorve para cima, mas a própria base massificada que foge de sua própria realidade destrutiva para cima, buscando entrar no vórtice de quietude do tornado – no qual às vezes se encontra uma corda, mas sendo expulso em alguns vai-e-vem da corda quando toca o exterior do tornado e fiuuuu!… cai-se em terreno baldio.
Não há nesse turbilhão nem um acima, nem abaixo – está o turbilhão: acima não há nada, somente a força do turbilhão que te leva para cima, onde termina o movimento, e te derruba no precipício. E abaixo, tudo está se destruindo. A vida é a vida interna do tornado, com seu vórtice de semi-quietude dinâmica, e seus exteriores de violenta expulsão. Busca-se ficar no carrossel que se enlouqueceu, buscando aproximar-se do centro, e busca-se sustentação, porque tudo o que está abaixo será expelido para as margens e aquilo que está acima será expelido por um desperdício de forças.
A essência de todo esse movimento é a alimentação de conflitos binários, dentro das famílias, dentro de toda ordem política (maior ou menor) pela luta partidária; dentro da economia (dólar-peso, competição comercial, interna e internacional, ou seja: mercado livre) e assim em todas as coisas. Quando se diz que tudo deve ser mais “democrático”, diz-se: em tudo deve chegar uma oposição binária e ela deve se multiplicar em novas oposições a cada triunfo de uma das partes. (Os sábios sabem que os triunfos de qualquer uma das oposições “cristalizam”, e deve-se voltar a rompê-los, não importa se são abortistas ou antiabortistas – devem permanecer dinâmicos).
O ingresso no turbilhão pode ser justificado por várias causas, mas vamos ao princípio: há famílias católicas que querem entrar no tornado por boas razões: salvar o círculo que veem em perigo por efeito das oposições binárias. Mas há um paradoxo: no tornado se entra de mãos dadas em uma das pontas binárias em que necessariamente se deve envolver. E há algumas que parecem boas e até muito boas: ao sistema não importa a “significação interna” da oposição binária – dizem-no expressamente: pode ser a “restauração da monarquia católica” ou a consagração da zoofilia, o que importa é que agite os círculos em uma dinâmica interna: nisso consiste a frase de nosso presidente [nota do Editor: o liberal Maurício Macri] ao finalizar uma luta binária de que “ganhou a democracia”.
O que interessa é que todos entrem nas brigas binárias fabricadas ex professo para manter a dinâmica do tornado e impedir a formação de círculos basais fixos ou moleculares. E isso ocorre, em grande parte, porque para a vitória de uma oposição ela necessita de números de importância massiva e, para conseguir tal número, devo realizar “coalizões” com outros grupos com que coincido em um dos lados da divisão binária, mas não em outros pontos menores e mais urgentes (embora maiores em termos significantes), e essas coalizões necessariamente me dessignificam, diluem-me, distorcem-me, e com isso não sou temível como ponto fixo, estável e altamente “significado”. Puf! estou em seu jogo. (Alguns devem se lembrar de uma carta do nunca mal ponderado Caponnetto dirigida a certos cavalheiros que o associavam numa oposição binária induzida, na qual solicitava não ser incluído – mesmo que sem defeito nos seus textos – o que parecia uma briga desnecessária. Era porque não queria ser dessignificado.)
Vamos a uma das últimas figuras desta sociologia. O vetor de fuga. Nem todos suportamos esse estado de coisas, e mais gente do que se pensa se converte em vetores de fuga dessa loucura escapando do tornado. E a maioria foge por outra loucura. É parte da dinâmica. Uns se tornam hippies, outros se drogam, outros se tornam Testemunhas de Jeová, fogem para o campo, tornam-se promíscuos profissionais, delinquentes antissistema, sabotadores, cínicos, ladrões, profetas do apocalipse e até cultores de alguma religião tradicional. Tampouco importa, os vetores de fuga são parte do conjunto. Parte da dinâmica, porque seus caminhos são de nômades tratando de evitar o golpe do furacão e são, no fim, parte do movimento.
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Todo o dito é texto da escola na qual se formaram grande parte dos homens que governam. Sem dúvidas Durán Barba [nota do editor: estrategista de marketing de Marcelo Macri], que cursou a Universidade de Cuyo, discípulo do prof. Dussel, estudou-os e os maneja. E ri em seu escritório por ter feito embarcar muitos católicos em sua última briguinha de oposição binária, ri-se de tê-los forçado a coalizões impensadas, ri por tê-los dessignificado, ridicularizados por não poder recorrer a seus fundamentos que romperiam as coalizões, a uma colocação de máscaras; e tudo por uma batalha que se reiniciará imediatamente sem melhorias para ninguém. Mas, como bem diz o “maldito” nomeado acima, em seguida a esse fim de binariedade massificada alguns podem entrar no tornado. Aos últimos que conheci que subiram com algo parecido, não tardaram minutos em ser cuspidos à terra baldia, com barulho para o chão.
Não sei o leitor, mas estou inclinado a crer que nos enganaram.
No pessoal, resta uma única Micropolítica, aguentar de pé os choques. Sem cumplicidades nem cálculos. Evitando com energia singular a intromissão de oposições binárias falsas em nosso entorno, harmonizando as naturais, evitando meticulosamente toda dessignificação advinda de alianças estratégicas para resultados fictícios. Também devemos evitar essa idiota binariedade “Francisco/anti-Francisco”, que não passa de uma anedota que será cuspida pela ponta do tornado.
Uma última percepção pessoal que contradiz aos meus mais queridos amigos no fígado: nessa batalha binária do aborto-antiaborto não há vitória alguma. Nenhuma. Mesmo o pálido retrocesso do bando dos orcs, produto de uma tática de resquícios de forças circulares regionais subconscientes (os senadores votaram para manter-se dentro de uma difusa força moral regional, que querem superar prontamente), implica um grande avanço na estratégia geral de demolição. O catolicismo se viu completamente dessignificado em sua doutrina e fez alianças que farão perder o pouco que há. Os católicos que entraram e que acreditaram sair vitoriosos, saíram menos católicos. As famílias menos famílias. As regiões menos concentradas em si mesmas.
Desde agora, a batalha implicou uma realimentação da dinâmica binária da democracia, e a falsa vitória encorajará maiores deformações. Uma das mais notáveis deformações é que a batalha foi protagonizada fundamentalmente por mulheres, com a degradação que se presume da autoridade paterna que jamais ousou expressar que o “dono” desse ventre era ele. Os “bons homens” não deixam de ser uns tontos.
E mais uma. O Catolicismo como força social, cultural e civilizadora não existe agora, suas últimas expressões estão mais do que cheias de uma desintegração doutrinal, mental e psicológica fatal. Não passam de reações viscerais histéricas. As mais extremas das expressões católicas contra o tema do aborto foram reduzidas à defesa de um planejamento familiar natural (de raiz conciliar) contra o uso da camisinha, aceitando por fim um covarde e burguês “planejamento” ao qual se rendeu Paulo VI na Humanae Vitae, e que não passa de uma grande camisinha mental.
O desafio do momento é seguir sendo católicos no mais incrível momento de indefesa e solidão da história. Ser sólidos e firmes no meio do maior furacão que já se viu. Sem se assustar e sem se entristecer, claro, mas especialmente sem se tornar uns tontos, porque o ataque principal é um ataque à inteligência. A única Pátria que permanece é o ventre de nossas boas mulheres católicas e o heroísmo é marchar, em pé, até as montanhas, sem voltar os olhos para Sodoma.
Todo o sucedido causa-me pressentimento de que foi para mal (oxalá me equivoque), lamento dizê-lo para a gente boa aturdida, desconectada de seus “círculos” naturais, massificadas e trabalhadas pela emotividade visceral numa posição binária artificial. Tenho mais temores com a falsa vitória do que com a consabida derrota. A democracia, como os apostadores, aceitou perder uma mão para vos engrandecer, e deixar-vos prontos para a derrota final.
Sou, sem dúvidas, um estraga-festas, mas não se preocupem, não sou ninguém e não busco seguidores. Neste erro tremendo em que nós vivemos, qualquer erro se suporta.