Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, Tradução: Hélio Dias Viana – FratresInUnum.com:
“Muito antes que as Nações tivessem chegado a estabelecer uma lei internacional; muito antes que tivessem podido forjar o sonho – ainda não realizado – de uma força armada comum para proteção da sã liberdade humana, da independência dos povos e de uma pacífica equidade nas suas relações mútuas, a Ordem de São João já havia reunido em uma irmandade religiosa e sob a disciplina militar, homens de oito ‘línguas’ diferentes, votados à defesa dos valores espirituais, que constituem o apanágio comum da Cristandade: a fé, a justiça, a ordem social e a paz.”
Essas palavras, dirigidas em 8 de janeiro de 1940 pelo Papa Pio XII aos Cavaleiros da Soberana Ordem Militar de São João de Jerusalém, dita de Rodes e depois de Malta, resumem as características da mais antiga das Ordens de Cavalaria, o único Estado soberano cuja bandeira ondulou no campo das Cruzadas. Uma ordem cujo carisma tem sido sempre o da “Tuitio fidei et Obsequium pauperum” [Defesa da fé e serviço dos pobres]. É imaginável que um Papa queira destruir essa instituição, glória da Cristandade? Infelizmente, é precisamente esta a impressão que se tem dos últimos acontecimentos relativos à Ordem de Malta.
Correspondência Romana ofereceu uma primeira reconstrução dos fatos em 24 de dezembro de 2016. Edward Pentin aprofundou e enriqueceu o cenário com novos detalhes no National Catholic Register de 7 de janeiro de 2017. O quadro, em resumo, é o seguinte: em 6 de dezembro, o Grão-Mestre da Ordem de Malta, Fra Matthew Festing, na presença de duas testemunhas, uma das quais era o cardeal-patrono Raymond Leo Burke, pediu ao chanceler Albrecht Freiherr von Boeselager que renunciasse. Com efeito, tinha vindo à luz que o chanceler Boeselager, durante o período em que foi o Grande Hospitalário da Ordem, havia abusado de seu poder promovendo a distribuição de milhares de preservativos e contraceptivos, inclusive abortivos, em alguns países do Terceiro Mundo. Apesar da promessa de obediência que o liga ao Grão-Mestre, o Grão-Chanceler recusou-se a renunciar. Contra ele foi então iniciado um procedimento para suspendê-lo de todas as posições que ocupava.
Boeselager pediu ajuda à Secretaria de Estado do Vaticano, que nomeou uma comissão de inquérito para “recolher elementos susceptíveis de informar plena e rapidamente a Santa Sé” sobre o assunto. Em 23 de dezembro, o Grão-Mestre da Ordem definiu como “inaceitável” a decisão do Secretário de Estado, observando que a remoção de Boeselager é um “ato de administração interna do governo da Ordem Soberana de Malta e, em consequência, recai exclusivamente na sua competência”. Com uma declaração subsequente de 10 de janeiro, o Grande Magistério reiterou a sua intenção de não cooperar com a comissão de investigação do Vaticano, “também a fim de proteger sua esfera de soberania com relação a iniciativas que se apresentam objetivamente (e, portanto, além das intenções, que são juridicamente irrelevantes) como visando questionar ou pelo menos restringir dita esfera”.
A iniciativa do Vaticano parece ter sido uma enorme gafe. O sistema jurídico da Ordem de Malta é regulado pela Constituição de 1997. O artigo 3º da Constituição, parágrafo 1, afirma que “a Ordem é sujeito de direito internacional e exerce funções soberanas”. Estas são: o Poder Executivo, representado pelo Grão-Mestre, assistido pelo Conselho Soberano; o Poder Legislativo, representado pelo Capítulo Geral; o Poder Judiciário, representado pelos Tribunais Magisteriais. A Ordem de Malta emite passaportes diplomáticos e possui escritórios extraterritoriais em Roma, onde oficialmente recebe os representantes de mais de cem países com os quais mantém relações de igual para igual.
A Ordem tem relações privilegiadas com a Santa Sé, mas com plena autonomia. A Santa Sé nomeia um cardeal-patrono e a Ordem o seu embaixador, de acordo com as normas do Direito internacional. Como observa o Prof. Paolo Gambi, apesar de ser detentora da natureza religiosa própria às Ordens dependentes da autoridade eclesiástica, a Ordem tem uma posição muito peculiar, “gozando de uma autonomia quase única na cena eclesiástica e limitando o influxo dessa natureza aos membros que emitiram votos” (La soberana militar Ordem de Malta en el orden jurídico eclesial e internacional, Ius Canonicum, XLIV, n. 87 (2004), pp. 197-231). O artigo 4, parágrafo 6 da Constituição da Soberana Ordem de Malta é claro ao afirmar que “a natureza religiosa não exclui o exercício das prerrogativas soberanas relativas à Ordem enquanto sujeito de direito internacional reconhecido pelos Estados”.
A confirmação de tal status de direito internacional, inclusive em relação à Santa Sé, encontra-se no Anuário Pontifício, onde a Ordem é mencionada apenas uma vez, e não entre as Ordens religiosas, mas antes como uma das Embaixadas dos Estados acreditados junto à Santa Sé. A Constituição de 1997 também eliminou várias intervenções eclesiásticas previstas anteriormente, como a aprovação da Santa Sé para a validade da eleição do Grão-Mestre e o consentimento expresso dela para que a profissão solene de votos seja válida.
A competência da Santa Sé sobre a vida religiosa dos Cavaleiros diz respeito apenas àqueles pertencentes à primeira classe, os Cavaleiros de Justiça, que emitem, de forma solene, os três votos monásticos. Os membros da segunda classe, os Cavaleiros na Obediência, cuja promessa nada tem a ver com o voto de obediência dos Cavaleiros de Justiça, estão subordinados apenas aos seus superiores na Ordem. O ex-Grão-Chanceler Albrecht von Boeselager, casado e pai de cinco filhos, é um leigo que pertence à segunda classe, não dependendo de nenhum modo da Santa Sé. Além disso, os Cavaleiros de Justiça, que devem ser considerados “religiosos para todos os efeitos” (artigo 9 parágrafo 1 da, Constituição), não têm vida em comum e representam um unicum na vida da Igreja. Fra Ludovico Chigi Albani della Rovere (1866-1951), Príncipe e Grão-Mestre da Ordem de 1931 a 1951, após a morte de sua esposa (1898) pronunciou os votos religiosos como Cavaleiro da Justiça, mas continuou a viver no Palazzo Chigi [atual sé do Grande Magisteriado da Ordem], que até 1916 era propriedade de sua família, levando uma vida de grande senhor, como competia à sua condição.
Naturalmente, a Igreja tem sobre a Ordem de Malta os mesmos direitos que tem em relação a cada Estado, quando estão em jogo questões que afetam diretamente a fé e a moral. O Papa, de fato, tem o direito e o dever de intervir em toda questão social e política relacionada com a consecução do fim supremo do homem, que é a vida eterna. Se, por exemplo, um Estado legitima as uniões sexuais contra a natureza, o Papa tem o dever de intervir, denunciando a grave violação da Lei divina e natural. E se a Ordem de Malta estiver promovendo a contracepção e o aborto, o Papa tem o dever de fazer ouvir sua voz. Hoje, pelo contrário, a Igreja se abstém de pronunciar-se sobre problemas morais que Lhe são próprios [a distribuição de preservativos], e intervém em questões políticas e administrativas que fogem de sua alçada [a suspensão do ex-Grão-Chanceler].
Christopher Lamb cita no Tablet de 5 de Janeiro uma carta enviada em 21 de dezembro a Fra Matthew Festing pelo Secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, na qual se nota que o Papa Francisco deseja que a remoção de von Boeselager não ocorra. “Como já expressei em minha carta anterior, de 12 de dezembro de 2016: sobre o uso e a difusão de métodos e meios contrários à lei moral, Sua Santidade pediu um diálogo sobre o modo pelo qual podemos enfrentar e resolver eventuais problemas. Mas ele jamais disse para exonerar ninguém!”.
Portanto, com relação àqueles que violam a lei divina e natural, o caminho é o do diálogo e da mão estendida. Para quem, pelo contrário, defende a fé e a moral católica, está pronta a vara do comissariado político e da comissão de inquérito.
O grupo de cavaleiros que faz coro com Albrecht von Boeselager representa a corrente secularista, que gostaria de transformar a Ordem de Malta numa ONG humanitária, enquanto a atual equipe dirigente representa a fidelidade às raízes religiosas da Ordem. Mas esse é, aliás, o seu grande pecado, ao qual se soma outro. Ao longo de nove séculos de história, a Soberana Ordem Militar de Malta nunca perdeu sua fisionomia aristocrática, cavalheiresca e soberana. Esta fisionomia representa a antítese do miserabilismo e do igualitarismo professados por aqueles que hoje governam a Igreja. O resultado é que se denuncia o clericalismo, mas se o aplica, de fato, com desastrosas consequências. A truculenta intervenção da Secretaria de Estado em nome do Papa Francisco está, de fato, causando caos e divisões dentro da Ordem.
A Soberana Ordem Militar de Malta superou todas as vicissitudes ao longo de sua história. Durante dois séculos na Palestina, dois séculos em Rodes e dois séculos e meio em Malta, muitas vezes sua missão pareceu caducar. Mas a instituição sempre se reergueu, mesmo quando se alastrou pela Europa o turbilhão da Revolução Francesa e de Napoleão. Deve-se esperar que o Grão-Mestre Fra Matthew Festing e o Conselho Soberano que o assiste saibam resistir com firmeza às fortes pressões que estão recebendo nestes dias.
Ninguém teria podido duvidar do amor ao Papado do Grão-Mestre Ludovico Chigi Albani, que na sua qualidade de Marechal da Santa Igreja Romana participou de três eleições pontifícias. No entanto, ele se opôs tenazmente a qualquer tentativa eclesiástica de ingerência na vida da Ordem. A Santa Sé devia reconhecer a natureza soberana da Ordem de Malta, “sem a interferência de outras autoridades seculares ou religiosas”, como recordou Bento XVI ao receber os cavaleiros, por ocasião do nono centenário da bula pontifícia Pie postulatio voluntatis de 15 de fevereiro de 1113, que reconheceu a Ordem e outorgou-lhe seus privilégios. Com este ato solene, disse o Papa Bento XVI, “Pascoal II colocava a recém-nascida ‘fraternidade hospitalar’ de Jerusalém, em homenagem a São João Batista, sob a tutela da Igreja, e a tornava soberana”.