A necessidade da Fé impõe-se absolutamente no fato de Deus nos chamar a um fim sobrenatural — viver com Ele no Céu.
Para dirigirmo-nos ao Céu, ou orientar nossos atos para a vida eterna, é preciso pelo menos conhecer, embora obscuramente, este fim e os meios sobrenaturais, que são os únicos capazes de nos fazer consegui-lo.
Na verdade, não se quer se não o que se conhece.
Ora, sem a fé na Revelação divina, não podemos conhecer o fim sobrenatural para o qual somos chamados. A Fé é pois absolutamente necessária para nos salvar. “Ide e pregai”, disse N. S. Jesus Cristo aos seus apóstolos — aquele que crer será salvo, aquele que não crer, será condenado.
Como poderíamos conhecer os mistérios da salvação, que são essencialmente sobrenaturais, sem a Fé na Revelação divina?
Nunca ensinaríamos demais esta doutrina fundamental, e para bem compreendê-la, é preciso considerar que há três ordens de conhecimento essencialmente distintas e subordinadas.
1. — Há primeiramente a ordem sensível, a dos corpos, das pedras, das plantas, dos animais, aquela onde se move o nosso corpo; conhecemos a realidade desta ordem pelos nossos sentidos.
Ela tem a sua beleza: a das cores, a dos sons, a da harmonia.
2. — Acima, há a ordem racional, a das verdades acessíveis à razão. A esta ordem pertence a distinção do bem e do mal moral, que o animal não saberá perceber. A esta ordem pertence ainda a nossa alma espiritual, com a qual podemos conhecer sem revelação, a espiritualidade, a liberdade, a imortalidade. A esta ordem pertencem as verdades naturais que a razão por suas próprias forças pode descobrir sobre Deus, Criador do Universo, Providência universal.
A visão do céu estrelado nos prova a existência de uma inteligência divina que legislou todas as coisas. É ali o ponto culminante da ordem da razão. Ela pode conhecer Deus pelo reflexo das suas perfeições nas criaturas; ela porém não pode conhecer a vida íntima de Deus; as criaturas são impotentes para no-la manifestar. Elas não têm com Deus senão uma semelhança muito imperfeita. Aquele que não conhecesse o Soberano Pontífice senão por ter visto seu palácio do Vaticano, seus empregados, por saber o lugar do seu nascimento, a data de sua elevação ao pontificado, este não conheceria a vida íntima do Soberano Pontífice.
Portanto, a razão abandonada a ela mesma não pode, apesar do progresso das ciências ou da filosofia, chegar a conhecer a vida íntima de Deus. Mesmo se este progresso continuasse por milhares de anos sem interrupção, ela não atingiria o segredo das profundidades de Deus, ao lado do qual os segredos do Oceano não são nada.
3. — Acima da ordem racional, há a ordem da verdade e da vida sobrenatural, absolutamente inacessível aos sentidos e à razão. Os segredos desta ordem, que são a profundidade mesma de Deus, sua vida íntima, nos foram revelados por N. S. J. C.
Dizemos todas as manhãs, no fim da missa, no Evangelho de S. João, “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus; n´Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens. Esta luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. Ninguém jamais viu Deus.
O Filho Unigênito do Eterno Pai no-lo manifestou. “Mas as trevas não o compreenderam”. Os homens cegos pelo erro ou pela paixão, não perceberam a luz sobrenatural que N.S. lhes trouxe, eles preferiram a luz da sua razão, como alguém que preferisse miçangas a um diamante.
Há realmente três ordens, a dos corpos, a dos espíritos e a da vida íntima de Deus e dos seus santos. Assim como há numa igreja o adro exterior, a nave e o Santo dos santos ou tabernáculo de Deus vivo.
Ninguém pode entrar no Santo dos Santos, no céu, se não receber a revelação divina. Ela é absolutamente necessária para se salvar. Por exceção, aquele que não recebeu o batismo pode salvar-se sem a Fé, com as primeiras verdades da revelação. As almas que nunca ouviram a pregação do Evangelho nas regiões mais afastadas da África ou Oceania podem, se não resistirem a voz da sua consciência e à graça interior, chegar de fidelidade em fidelidade, e de graça em graça, à Fé. Deus, do seu lado, fará o necessário para lhes revelar as verdades necessárias à salvação, ainda mesmo que Ele tenha de enviar um Anjo ou um Missionário, como mandou o Apóstolo S. Pedro ao Centurião “Cornélio”.
Quantas vezes, missionários desgarrados, encontraram pobres selvagens que estavam morrendo e os esperavam antes de entregar suas almas a Deus.
Relata-se nos Anais das Missões, que um Missionário muito desejoso de ir para a China pediu por muito tempo aos seus superiores licença de partir para lá, e finalmente alcançou a permissão; apenas tinha chegado no território da Missão, encontrou uma velha mulher que o esperava para morrer. Ele a batizou, e logo depois ficou possuído de uma tal nostalgia, que pediu para voltar para a Europa e voltou.
Por aí pode-se ver que ele só foi à China para a salvação desta alma. Uma alma é mais do que um mundo. Fora a Providência divina que lá o enviara. Tal é a necessidade da fé.
Qual é a sua natureza íntima? Digamos antes o que ela não é, para destruir as falsas noções que dela tem o mundo, e veremos então melhor o que ela é.
A fé cristã não é um sentimento natural de confiança em Deus, como hoje muitas vezes o pretendem os protestantes liberais, que negam todo sobrenatural e que identificam de um modo sacrílego a fé divina a um vago sentimento religioso todo natural, que se encontra em todas as religiões.
Ainda mais porque a confiança refere-se à esperança e não diretamente à fé, é mesmo a esperança que é chamada confiança em Deus, quando ela descansa sobre a Fé nas promessas de Deus. A Fé não é também uma opinião que considera o catolicismo como a mais viva das religiões.
Esta opinião pode nascer facilmente da leitura da história; é uma opinião histórica e filosófica infinitamente inferior à Fé sobrenatural.
A Fé também não é uma certeza racional da verdade do catolicismo. Pode-se bem convencer-se racionalmente, pelo exame dos milagres que confirmam a pregação de Jesus e a vida da Igreja, que as verdades propostas pela Igreja foram reveladas por Deus, mas esta certeza racional que vem do exame dos milagres ou das profecias ainda não é a Fé. Não se penetra ainda na intimidade da palavra sobrenatural de Deus; não se concebe senão materialmente, pelos sinais sensíveis que a confirmam.
O Padre Lacordaire pôs admiravelmente este ponto em evidência na sua 17a. conferência em “Notre Dame”. Ele tinha experiência própria destas coisas, porque vira de perto várias conversões. Ele escreveu: “Certo sábio que estuda a doutrina católica, que não a repele, que quer crer mas não consegue, vê exteriormente a doutrina católica, admite os fatos, sente a sua força, concorda que existiu um homem chamado Jesus Cristo, que viveu e morreu duma maneira prodigiosa, se enternece com o sangue dos mártires, com a vida da Igreja, dirá quase: é verdade, e no entanto, nada conclui. Ele se sente sufocado pela verdade, como se fica num sonho onde se vê sem ver. Oprimido sobrenaturalmente por esta verdade que ele não pode sustentar naturalmente, um dia este sábio ajoelha-se, sente a miséria do homem, levanta a mão para o céu e diz: — “Do fundo de minha miséria, Ó Deus, eu clamo por vós”. — De repente alguma coisa se passa nele, uma escama cai dos seus olhos, efetua-se um mistério. Ei-lo mudado. É um homem doce e humilde de coração, pode morrer, conquistou a verdade.
Página admirável, na qual Lacordaire expõe o mais fielmente possível a doutrina de Santo Agostinho e Santo Tomás e excede nisto a muitos teólogos.
A fé é infinitamente superior a uma certeza racional, ela é uma luz sobrenatural interior que só Deus nos pode dar. Fides est donum Dei, diz São Paulo. E Nosso Senhor disse a São Pedro: “Tu és bem-aventurado, Simão, filho de João, pois nem a carne nem o sangue te revelaram isto, mas meu Pai que está nos Céus”.
O Padre Lacordaire diz ainda muito bem. “O que se passa em nós quando cremos é um fenômeno de luz íntima e sobrenatural. Eu não digo que as coisas exteriores (principalmente os milagres) não operem em nós como motivos racionais de credibilidade; mas a ação mesma desta certeza suprema, a que eu me refiro, nos afeta diretamente como um fenômeno luminoso”; eu digo mais, como um fenômeno transluminoso. Como se diz transatlântico, para designar as regiões situadas do outro lado dos mares Atlânticos.
Se fosse de outro modo, como quereriam que houvesse proporção entre nossa adesão (que seria natural), racional a um assunto que excede ou a natureza ou a razão? Ora, aí não há proporção entre nossa inteligência e o objeto que lhe é apresentado, e não poderá haver certeza.
Aqui nós temos que penetrar dentro de uma ordem nova, o Infinito. — Acima da ordem sensível, da ordem racional, acima da ordem angélica. A fé é pois umacerteza sobrenatural, fruto duma graça, de um dom de Deus, duma iluminação e duma inspiração do Espírito Santo, como o diz o Concílio do Vaticano I, que reproduz exatamente a doutrina do II Concílio de Orange contra os semipelagianos.
É ao mesmo tempo uma certeza que pode ter um iletrado, isto é, uma certeza que não vem do raciocínio, nem da história, nem da literatura, nem da ciência; coisa admirável, é uma certeza que um pobre operário e uma criança podem ter maior e melhor que os sábios: “revelasti ea parvulis.” É uma certeza transluminosa, apesar da obscuridade dos mistérios que não parecem obscuros para nós senão porque luminosos demais em si mesmos, como o sol, cujo esplendor ofusca o morcego; é uma certeza que exclui a dúvida, toda dúvida deliberada.
Assim como uma intuição simpática põe num instante entre dois homens o que a lógica não conseguiria em muitos anos, às vezes, uma iluminação súbita esclarece o gênio.
Lacordaire diz ainda com muita razão, sobre esse assunto: “Um convertido vos dirá: eu li, raciocinei, quis, e não consegui; mas um dia, sem que eu possa dizer como, na esquisa de uma rua, ao pé da minha lareira, eu não sei, mas já não era mais o mesmo, eu tinha fé; depois li de novo, meditei, confirmei minha fé pela razão; mas o que se passou em mim no momento da convicção final é de uma natureza absolutamente diferente de tudo que havia precedido…”
Lembrai-vos dos dois discípulos que iam a Emaús. Poder-se-ia para ilustrar esta doutrina, citar o exemplo de Ernesto Psichari, neto de Renan. Ele tinha perdido a fé. Em Marrocos percebeu que os europeus, apesar da sua civilização, não tinham mais prestígio junto aos muçulmanos, porque não rezavam mais, porque não sabiam mais nada do Além. Os muçulmanos julgavam-se superiores a eles. Pouco a pouco no deserto, Psichari reconstitui seu Credo, não crendo ainda, mas pressentindo que ia receber a graça da fé.
É o caso ainda de Massis, que não tinha mais nenhuma objeção e, não obstante, só recebeu a graça da fé no momento do batismo de sua filha.
Assim como o Dr. Leseur, que tendo se casado com uma mulher muito cristã, converte-se um dia vendo-a rezar, e hoje é: Padre Leseur, dominicano.
Qual é o papel e a necessidade desta luz sobrenatural da fé?
Ela ainda não nos dá a evidência dos mistérios da salvação que permanecem obscuros. A fé é livre. É preciso querer crer, sob a graça, para crer efetivamente.
Ela confirma a credibilidade racional destes mistérios garantidos por tantos sinais.
Mas sobretudo esta luz eleva nossa inteligência para nos fazer aderir sobrenaturalmente e infalivelmente à palavra sobrenatural do Pai Celeste.
De maneira que se pode aderir formalmente a uma verdade sobrenatural, manifestada pela revelação sobrenatural de Deus, sem que nossa inteligência seja sobrenaturalizada, sobrenaturalmente esclarecida, proporcionada à verdade divina que ela deve admitir? Sem esta graça haveria uma desproporção sem medida.
Enquanto o demônio que perdeu a fé infusa não adere senão materialmente à palavra de Deus, por causa da evidência natural dos sinais milagrosos que a confirmam, o fiel, este, esclarecido pela luz infusa da fé, compreende formalmente e espiritualmente a palavra de Deus proposta pela Igreja, penetra-a, está disposto a saboreá-la.
Ele tem como que um senso musical que lhe permite apreciar a divina sinfonia da palavra de Deus, enquanto o demônio perdeu o senso superior desta harmonia divina. Como disse Mons. Gay, a luz da fé é “a coroação divina da nossa inteligência, um diadema de luz celeste, com que a mão terna de Deus circunda nossa fronte invisível, numa imensa extensão de nossas fronteiras espirituais… nossa proporção intelectual com a vida íntima de Deus.” “Ela é, acrescenta ele, como que um ouvido sobrenatural, e também um olho, ou melhor ainda, ela é a aurora da visão sobrenatural, enquanto que a razão não é a aurora da fé.”
“Fides est sperandaraum substantia rerum argumentum non apparentium” (Heb 11) “A fé é a substância das coisas que devemos esperar, a certeza daquelas que não vemos”.
Os bens futuros estão na nossa fé, como a árvore está na semente, a flor na pivide, esperando o desabrochar.
A luz da fé não somente sobrenaturaliza nossa inteligência, mas lhe dá uma certeza infalível dos mistérios da salvação. Esta certeza que descansa sob a primeira verdade reveladora, sob a autoridade de Deus, Criador da graça, é superior à dos sentidos, à da razão. Estamos mais certos do valor infinito de uma Missa do que da existência da terra sobre a qual nós andamos, ou da impossibilidade do círculo quadrado. É por esta certeza, toda divina, que os mártires morreram. Mais vale perder a vida do que a fé.
Por que então, apesar desta luz sobrenatural, os mistérios da salvação permanecem obscuros?
É porque nós não os vemos imediatamente neles mesmos, mas somente na palavra divina que no-los revela. E não os podemos ver diretamente, porque são luminosos demais para nossos olhos. Por causa de seu demasiado esplendor nos parecem obscuros, como o sol deve parecer obscuro ao pássaro da noite, que não pode suportar seu brilho.
Esta virtude da fé está tão profundamente impregnada na alma, que só o pecado da infidelidade pode fazer perdê-la. Pode-se perder a Caridade e a graça santificante, sem perder a fé; ela fica no pecador como a raiz da árvore que foi cortada e quer nascer de novo. Por isso é que é tão grave o pecado contra a fé, que rejeita a autoridade infalível de Deus. Mais vale perder a vista que perder a fé, melhor ainda, mais vale perder a razão ou a vida, que perder a fé.
Se é esta a necessidade e a natureza da fé, como viver no espírito de fé?
Para viver humanamente e não como um animal, é preciso viver à luz da razão, e não somente à luz dos sentidos: para viver cristãmente e não como um pagão, é preciso viver à luz da fé e não somente à luz da razão. São Paulo na Epistola aos Hebreus, cita os mais heróicos exemplos de espírito de fé. (11, 8 ss). “É pela fé que Abraão, por ordem de Deus, deixa seu país, parte sem saber para onde ia, para os países desconhecidos, que ele devia receber como herança. É pela fé que o mesmo Abraão prontificou-se a imolar seu filho único, Isaac, apesar de Deus lhe ter dito: ‘É de Isaac que terás tua posteridade.’ Ele prontificou-se no entanto a imolá-lo por ordem do Altíssimo, pensando que nada é impossível a Deus, mesmo ressuscitar os mortos. Foi pela fé que Moisés deixou o Egito, sem temer a fúria do rei, e ficou inabalável como se tivesse visto o Invisível. Foi pela fé que os Israelitas atravessaram o mar Vermelho que engoliu os egípcios. Foi pela fé que os profetas venceram os reis, efetuaram a justiça, obtiveram o efeito das promessas, fecharam a goela dos leões. Foi pela fé que outros sofreram os ultrajes e os chicotes, as prisões e as correntes, foram lapidados, esfolados e morreram pelo fio da espada. Eles partiram errantes, pelas montanhas, na indigência, na aflição e angústia, aqueles dos quais o mundo não era digno. “Todos, diz São Paulo (5, 14), morreram na fé, não tendo ainda recebido o bem prometido, não tendo ainda visto o Cristo, mas eles contemplavam-no e saudavam-no de longe, confessando que eles eram estrangeiros e viajantes sobre a terra; pois homens que falam assim, mostram bem que procuram uma Pátria.
Eis os exemplos que nos deram aqueles que vieram antes de Jesus Cristo. Que faremos nós, que viemos depois de Jesus Cristo, beneficiados pela sua luz e pela sua graça para viajar para o céu sob a conduta de sua Igreja?
Para viver no espírito da fé, é preciso sempre considerar à luz da fé: Deus, nós mesmos, o próximo e os acontecimentos.
1. — Deus. Haverá necessidade de dizer que é preciso considerar Deus à luz da fé? Infelizmente é, e é muito necessário. Não consideramos muitas vezes Deus através dos nossos preconceitos, à luz de nossos sentimentos muito humanos, mesmo de nossas pequeninas paixões, contrariamente ao testemunho que Ele dá de si mesmo na Sagrada Escritura? Não nos acontece pensar, em nossa presunção, duma maneira mais ou menos consciente, que a Misericórdia de Deus é para nós, e a Justiça para os outros? E ao contrário, em certos momentos de desânimo, não nos acontece duvidar do Amor de Deus por nós, de sua misericórdia sem limite?
Nós consideramos às vezes a infinita perfeição de Deus do miserável ponto de vista de nosso egoísmo, de nosso amor-próprio, de nossas suscetibilidades ressentidas, em vez de considerá-la no ponto de vista de nossa salvação e do bem geral da Igreja. No ponto de vista da fé, Deus aparece, não através de nosso egoísmo, mas através da vida e da morte de Jesus, através dos mistérios da Igreja, da Eucaristia e da Comunhão dos Santos.
Oh, como o olhar dos santos era puro! E como desde este mundo entreviam Deus pelos olhos da fé!
Santa Catarina de Sena, em seu admirável “Diálogo”, nos fala destes olhos da fé e das necessidades da mortificação interior da vontade própria e do julgamento próprio. Somente esta mortificação pode purificar nosso olhar e fazer cair esta venda de nosso orgulho, este terrível “velamen”, este véu do qual nos fala São Paulo, que impede ver as coisas divinas, ou deixa ver apenas as sombras e as dificuldades.
Consideremos Deus à luz da fé e também a humanidade toda santa de nosso doce Salvador Jesus Cristo, seu Coração Sagrado, sempre aberto para nós; a Virgem Maria, a Igreja, corpo místico de Jesus Cristo. Consideremos do ponto de vista da fé os Sacramentos, nossa comunhão quotidiana, a absolvição de cada semana, nosso ofício, nossa leitura espiritual, a Sagrada Escritura, palavra de Deus. Como tudo isto é prodigiosamente grande à luz da fé! E como tudo isto empalidece à luz de nossos preconceitos e da rotina. Sob esta luz apagada, as coisas mais sublimes tornam-se banais, a Santa Comunhão não é senão uma cerimônia.
2. — Devemos nos ver, a nós mesmos, à luz da fé.
Se não nos virmos senão à luz natural, só vemos em nós as nossas qualidades naturais e nos exaltamos; vemos também às vezes os nossos defeitos e desanimamos.
Freqüentemente esquecemos de ver à luz da fé os tesouros sobrenaturais que o Senhor depositou em nós, e os obstáculos que os impedem de frutificar.
O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é a graça recebida no Batismo e restituída na absolvição; não é a graça a vida divina, germe da glória? O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é o fruto das comunhões quotidianas. O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é a Santíssima Trindade que habita em nós. O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é a vocação que nos alcançará, se não resistirmos a ela, todos os socorros necessários, para chegar à perfeição e finalmente ao céu.
Os obstáculos são falta de espírito sobrenatural, de espírito de fé, a leviandade que nos faz falar e agir como pagãos, que nos tira o recolhimento pelo qual se reconhece um discípulo de Jesus Cristo. Os obstáculos são ainda o desejo de ser a cabeça, quando talvez devemos nos contentar de ser a mão.
3. — Consideramos bastante o próximo à luz da fé?
Muitas vezes vivemos à luz natural da razão deformada pelos nossos preconceitos, nossas paixões, nosso orgulho, nosso ciúme, e desde então aprovamos no próximo aquilo que humanamente, naturalmente nos agrada. Aquilo que é conforme aos nossos gostos naturais, aos nossos caprichos, aquilo que nos é útil, aquilo que nos faz valer, aquilo que ele nos deve. Condenamos nele aquilo que nos incomoda, muitas vezes o que o torna superior a nós, aquilo que nele nos faz sombra. Quantos julgamentos temerários, julgamentos duros, impiedosos provém do nosso olhar obscurecido pelo amor próprio e pelo orgulho. Quantas maledicências e calúnias mais ou menos conscientes.
Se nós soubéssemos ver o próximo à luz da Fé, com o olhar espiritual muito puro, então veríamos em nossos superiores, os representantes de N. S. e nós lhe obedeceríamos sem os criticar, ao pé da letra e de todo coração, como a Nosso Senhor Ele mesmo.
Nas pessoas, que naturalmente não nos são simpáticas, nós veríamos antes de tudo, as almas resgatadas por Nosso Senhor, que fazem parte do seu corpo místico e que talvez estejam mais perto do que nós do seu Coração Sagrado.
Nosso olhar sobrenatural atravessaria este envelope opaco de carne e de sangue que nos impede de ver as almas, e faz com que muitas vezes vivamos longos anos ao lado de belas almas sem perceber.
É necessário merecer ver as almas, o que nos permitirá de lhes dizer verdades salutares e de ouvi-las da parte delas.
Não é por acaso que duas almas se encontram. Assim como as pessoas que naturalmente nos agradam, se nós as víssemos bem à luz da Fé, descobriríamos nelas qualidades e virtudes sobrenaturais que elevariam muito nossa afeição e a purificariam. Veríamos nelas também, com benevolência, os obstáculos ao reino perfeito de Nosso Senhor, e nós poderíamos, com a verdade caridade, dar-lhes um conselho amigo, aplicar o que Santo Agostinho diz em sua regra sobre as delicadezas da correção fraternal, que deve proceder do amor de Deus e o fazer crescer na alma de nosso próximo.
4. — São os acontecimentos que precisaríamos ver à luz da Fé, para viver verdadeiramente no espírito da Fé. Os acontecimentos felizes, para que eles não nos exaltem e os acontecimentos infelizes, para que eles não nos desanimem.
Digamos que tudo, mandado ou permitido por Deus, e que tudo, mesmo o mal, deve finalmente, queira ou não queira, concorrer para sua glória.
Em todo acontecimento podemos encontrar um aspecto sensível, acessível aos sentidos, um aspecto racional, acessível à razão, à história profana; são as leis naturais que governam os fatos — depois há um aspecto sobrenatural, acessível à Fé. E o lado pelo qual este acontecimento concorre à Glória de Deus é o dos eleitos.
Vede, à luz da Fé, a expulsão dos religiosos e das religiosas, ou das atrocidades cometidas ultimamente pelos Comunistas na Espanha.
Existe nestes acontecimentos qualquer coisas que escapa à razão, mesmo à perspicácia maligna dos perseguidores. Os sentidos vêm nesses acontecimentos um manancial de dores, a razão, uma obra iníqua. Em face da Fé, existe neles muito mais. Existe aí um castigo para muitos. Existe aí uma provação para todos, provação que não nos deve lançar no abatimento, mas que é a condição dum bem superior.
A Igreja é perseguida. Nosso Senhor está ao seu lado; Ele parece dormir como dormia na barca durante a tempestade no Lago de Genesareth; mas uma só palavra foi suficiente para apaziguar os ventos e as vagas.
Se vemos este acontecimento à Luz da Fé, não ficaremos muito surpreendidos. Nosso Senhor o anunciou no seu Evangelho. Não ficaremos irritados nem desanimados. Rezaremos pelos perseguidores, pelos perseguidores os mais aguerridos, e pensaremos que nossa vida religiosa deve ser mais fervorosa que no passado. Vede as guerras à luz da Fé, as divisões dum país, as rivalidades mesmo entre os católicos. Vede todos esses acontecimentos à luz da Fé, os acontecimentos felizes não nos exaltarão, os infelizes não nos abaterão.
Mesmo as injúrias, depois do primeiro sobressalto da natureza, nos parecerão como permitidas por Deus para o progresso de nossa alma, como quando Davi foi insultado por Semei.
Nossa Mãe do céu viveu plenamente do espírito de Fé, sobretudo aos pés da Cruz. Quando Jesus parecia definitivamente vencido, ela não cessou de crer que Ele era o Filho de Deus vivo e que dentro de três dias ressuscitaria como Ele havia predito.
Para entrar na profundidade ou nas atitudes de Deus, é preciso que a Fé se torne penetrante e saborosa; é preciso que, esclarecida pelo dom da inteligência e da sabedoria, ela se torne contemplativa. Para isto, é preciso saber sacrificar certas exigências injustificáveis da razão raciocinadora; é preciso lembrar-se que acima da evidência racional, existe o mundo infinitamente superior dos mistérios sobrenaturais. Da mesma maneira, diz Santo Tomás, é preciso que o sol se esconda para que se vejam as estrelas e as profundidades insondáveis do firmamento, aquele que não quer ver senão à luz da razão e não se deixa conduzir mais alto, pela luz da Fé, assemelha-se àquele que não quis contemplar o esplendor do céu estrelado porque não o podia ver à luz do sol. Se, ao contrário, o sol desaparecesse, é um número imenso de estrelas, outros sóis, que nos aparecem na beleza da noite: é o símbolo esplêndido das verdades da Fé e de sua harmonia na obscuridade, superior à noite do espírito.