A “DUALIDADE” DE NEWMAN, OU OS COMEÇOS DO “REINO DIVIDIDO” – PARTE 1

John Henry Newman – Wikipédia, a enciclopédia livre

por Dardo Juan Calderón

A anedota desencadeadora

A figura de Newman coloca um urgente enigma: quem foi ele? desde o ponto de vista doutrinal e mesmo do pessoal. Defendido e atacado à esquerda e à direita, desde o modernismo que o tem por Pai do Concílio Vaticano II, e desde o tradicionalismo que, mesmo sem chegar à devoção, em sua maioria o considera “um deles”. E até mesmo desde (e perdoem-me se são suscetíveis) as organizações homossexuais que o consideram o santo patrono do clericato homossexual.

Sua obra e personalidade foram fonte das mais variadas e contraditórias interpretações, e todos pedem sua bênção sem que existam vozes críticas. Tudo em um século feroz, de combates armados, de perseguições e de muito mais combates intelectuais, de contrastes enormes, no qual esse homem havia declarado sua motivação por um encontro do religioso com o moderno e sem negar o Syllabus. Por acaso o conseguiu? Terá dado ele a chave da síntese? Era essa chave a Pessoa e sua Consciência?

Uma primeira observação pode ser feita ao perguntarmos: por que todos o querem em seu bando? Por que é uma “figura”?; e uma segunda é se um desses bandos o falsifica para puxar a brasa para sua sardinha, para ter essa “figura” estelar e mundial em seu lado. Quem, afinal, não lhe foi fiel?

Tentemos responder algo do que foi perguntado começando na pergunta: “por que ele é uma figura tão importante?” Farei aqui um pequeno esboço de intenção intuitiva e concluirei ao final, mas que parte do fato de que ele mesmo reconhecia que não era um teólogo, mas um literato; e, não obstante, é sobre o primeiro ponto que acabou obtendo importância.

Acontecia naquele tempo  – segunda metade do século XIX até o começo do XX  – um assunto dos mais curiosos, que deve se ponderar com inteligência: a política era moderna, completamente revolucionária e furiosamente anticatólica. Mas os grandes pensadores, os literatos e os ensaistas eram modernos-antimodernos. Como isso se deu? A forma de ser moderno e de pensar o moderno era “uma crítica ao moderno”, era um “sofrer” o próprio século, um “dégoût” por uma época que deveria ser superada, indo adiante pela esquerda e voltando atrás pela direita; ou, ao menos, que merecia uma “reação” contrária. Pensemos nos primeiros: Chateaubriand, De Maistre, De Bonald  – quiçá antes Lacordaire  – Nietzsche, Balzac, Burke, depois Baudelaire, Proust, Barbey, Renán, Bloy, Péguy, e em muitos outros que seria demorado nomear, mas que são toda a produção de valor daqueles anos. Os grandes modernos vituperadores do moderno. Contrarrevolucionários por asco à revolução lacaia. Sustentadores de uma aristocracia da Inteligência. Contrários às Luzes (o Farol Obscuro de Baudelaire). Pessimistas resignados à decadência, mas crentes que a punição do século pressupunha uma regeneração necessária. Crentes do pecado original contra a gosma rousseauniana. Buscadores do sublime. Elegantes cultivadores do “estilo” e apaixonados pela língua.

Uma das reações desses pensadores era a fuga do político, um afastamento dessa ação concreta que estava ocupada por uma ralé plebeia – rebaixada e imunda – que, dos três gritos da revolução, havia levantado a bandeira apenas da IGUALDADE; esse rancor invejoso que impede toda liberdade e toda fraternidade.

O campo de ação desses pensadores era a literatura (depois deles, não se produziu nesse campo quase nada que fosse digno de chamar-se como tal): acostumaram o público a ler literatura e a buscar nela toda a cultura, todo o saber, inclusive a reflexão filosófica e teológica, deixando para sempre as grandes obras de trabalho e estudo.

Como dissemos, ser moderno era ser antimoderno, pois ser simplesmente moderno era ser um burguês avaro e imbecil ou um hipócrita da mais baixa política. Podiam ser monárquicos ou republicanos, mas sempre havia neles um sentido de aristocracia que lhes impedia dividir a mesa com os imundos homens de seu tempo (hoje todos comendo na mesma panela). Ser apenas moderno era uma enfermidade do espírito, era a total ausência de espírito (isso durou até a aparição dos fascismos, aos quais os contrarrevolucionários deveriam arregaçar as mangas e comprometer-se). Depois da derrota do eixo, os literatos decidem ser modernos-modernos, simplesmente; dizem que com Milán Kundera se inaugura essa tomada de consciência (ele pretende seguir aquilo que Rimbaud o havia proposto, mas como uma sátira! e ele o levou a sério) na qual os literatos entram na latrina até os ombros, tornam-se pornógrafos e vendem para a burguesia bocados de vômitos verdes eximindo-os das culpas; lugar e negócio que ocuparão uma esquerda chorona e as ONGs filantrópicas gerenciadas por profissionais da consciência pública. Mas voltemos.

Newman era um moderno antimoderno e era um excelente literato, era um espírito aristocrático de profusa cultura e, a seu modo, era um dândi. Em suma, era um desses heróis do seu tempo. Sua crítica era –  sendo protestante e depois católico – contra a enorme superficialidade do religioso entre a freguesia burguesa – mesmo os melhores – que era a mesma queixa que outros levantavam no político, no cultural e até mesmo no existencial. Atitude que, longe de tirar-lhes plateia, a aumentava, porque o burguês sempre foi um grande consumidor de insultos e reproches; sempre lhe agradou que falem mal de sua superficialidade, de seu conformismo, de sua comodidade, de seu derrotismo, de sua intemperança, de sua luxúria e de sua avareza. Entre seus costumes consumistas, sempre gostou de pagar uma “consciência” externa, que pudesse ser apagada com um interruptor ao voltar a sua vida diária. Isso foi feito pela direita, naqueles tempos, com bons autores, e depois pela esquerda, com baladistas murmuradores; mas sempre enxugou suas lágrimas, deu algum dinheiro à revolução e à contrarrevolução e voltou aos seus travesseiros, às suas oficinas, às suas contas e ao leito de sua esposa demi-mondaine; a tratar seus negócios com esses políticos plebeus de astúcias alugadas, pois, no fim das contas, todos precisavam de seu dinheiro. Em especial os curas que lhes prodigavam cultíssimos sermões cheios de críticas contra seus modos de vida; pela direita primeiro, pela esquerda depois, até que esses curas entenderam Kundera, deixaram de pregar e saltaram à piscina orgiástica da burguesia, tornando-se canalhas.

O burguês necessita, para desfrutar de seus bens, de uma cota de remordimentos; é a pátina que dá realce à boa vida, como o limo que avelhenta e ao mesmo tempo decora uma casa de construção recente (somente os jacobinos carecem de tal necessidade). Consumiam até a Bloy, que lhes cuspia na cara desde a miséria de “uma mulher pobre”.

Bem. Newman estava na moda no mundo burguês – no mais burguês dos mundos – e seus encantadores sermões aportavam o necessário autoflagelamento de uma classe que cultivava a nostalgia culta nos fins de semana e o consumiam com fruição. Coisa que não ocorria com os antipáticos integristas, ao estilo de um Monsenhor Delassus; a inteligência real estava fechada no Vaticano e no Magistério e era pura e dura. Guardando a distância e os tempos – para que se entenda – há burgueses que leram Castellani, mas nenhum a Meinvielle. Ah! a literatura! Ninguém quer um diagnóstico frio, mas um sermão emotivo que o deixe na fronteira da mudança de vida por alguns minutos, que lhe faça sentir redimível para o céu ou para o amanhã revolucionário, e muito culpado e orgulhoso de ter a carteira cheia. O frio diagnóstico do teólogo que não doura a pílula, nem perde tempo em correções inúteis, não vende. Esse te faz saber que serás o mesmo saco de estrume no domingo, como foi de segunda a sábado.

Perante todos esses senhores, estava ocorrendo um fato histórico enorme, não digo como a vinda de Cristo, mas como a cristianização do mundo: e era a “descristianização do mundo”. E isso somente desassossegava a uns poucos padres, que se conseguiam inquietar o burguês com o assunto de que não se podia servir a Deus e ao dinheiro, este corria “até seu diretor espiritual, que aprazivelmente lhe responde, com base em infinitos casuístas, que tal conselho está dirigido somente aos perfeitos e que, consequentemente, não deve perturbar a paz dos proprietários” (Bernanos). De algum modo, Newman veio a ser, para várias gerações, esse bom diretor espiritual, como veremos.

Ainda melhor: estava na capital da burguesia mais culta e rica da Europa (dotada de uma pilhagem cultural e uma pirataria de bons modos) e desde seus escritórios da Scotland Yard se comandava o ataque maçom mais encarniçado da história contra o catolicismo, ao ponto que se cria definitivamente derrotado. Na França, os franco-maçons no poder condenavam às ordens monásticas e as expulsavam do país. Os Gambetta – “o clericalismo é o inimigo!” – os Waldeck Rousseau e depois os Viviani – “o catolicismo é o inimigo!” simplesmente – declaravam abertamente que era a batalha final contra o catolicismo e a Igreja.

O político liberal William Gladstone publicou, em outubro de 1874, um comentário no diário Contemporary Review no qual acusava os católicos ingleses de não serem bons cidadãos britânicos, ao preferirem obedecer ao Papa antes que a Coroa britânica, e, portanto, eram suspeitos de trair seu país. O assunto não era uma mera opinião de jornal, era o início de um golpe fatal. O católico Duque de Norfolk solicitou a John H. Newman, que ainda não tinha sido nomeado cardeal, que intervisse no debate. Newman respondeu com uma carta que o tornou famoso e no qual encontramos a frase que fez correr rios de tinta “No caso de me ver obrigado a brindar após o jantar – coisa muito improvável – brindarei ‘pelo Papa! com muito gosto’, mas primeiro ‘pela Consciência!’, depois ‘pelo Papa!’”(1)

Gladstone havia topado com um homem de pequena envergadura, mas uma das mais brilhantes penas de seu tempo: John H. Newman, que com esse brinde pela consciência antes que pelo Papa, deixou encantados os católicos ingleses com a evasiva; os católicos que, a partir de agora, poderiam ter dois Senhores. Também acalmou suas consciências, pois a frase – se bem entendida – era reversível; brindavam por sua consciência antes do que pela Britânica Coroa, como vinham fazendo os católicos desde Tomás More. O problema é que a consciência, agora, estava antes dos dois e a fórmula pagou o esforço do Duque, que podia ser um bom súdito da coroa britânica e, ao mesmo tempo, ser católico, coisa que havia posto em grandes dúvidas a Tomás More, e nisso foi-se a sua cabeça. Não criam que a conjuntura não era séria porque já não se costumava cortar cabeças, mas o perigo era mais do que mortal: era a pobreza.

Deixo para outros a consideração de que se essa coisa é possível, ser fiel à Coroa – cabeça religiosa e política – e ao Papa de Roma ao mesmo tempo. Mas o que importa é que antes da Coroa e antes da Igreja, está a Pessoa e sua Consciência. Muito inglês e muito oportuno. Outra coisa é saber o que raios entendia por consciência.

Newman não quis, provavelmente, fundar com isso o “personalismo”, mas salvar a roupa (propriedades, privilégios e prebendas que tinham na Ordem Estabelecida e que uma maçonaria raivosa e vitoriosa queriam meter a mão) do Duque e de outros católicos, mas que mal lhe pese, o fez. E assim muitos entenderam; entre eles o Papa Bento XVI que disse: “A doutrina de Newman sobre a consciência tornou-se, para nós, o fundamento daquele personalismo teológico, que atraiu a todos nós com encanto. A imagem do homem, assim como nossa concepção da Igreja, foram marcadas por esse ponto de partida… pelo qual foi um fato liberador e essencial saber que o nósda igreja não se fundamentava na eliminação da consciência, mas que poderia desenvolver-se somente a partir da consciência.”

Isso significa dizer que uma chave que servia para poder seguir existindo como “alguém” em uma Nação não católica, onde a Coroa lhes colocava na encruzilhada de apostatar ou empobrecer-se e ser socialmente rebaixados, passava a ser a forma de “estar dentro da Igreja”. Se Newman tivesse sido mais valente, deveria ter brindado pela Coroa, mas antes por sua consciência (como More), dizendo que sua consciência foi formada pela Igreja Católica por meio de seu Magistério – mas o Duque lhe teria dado uns tapas porque sabia o final dessa história. E a questão foi como armar ou conformar esta consciência “antes” da Igreja ou “previamente” à Igreja, que os católicos ingleses já tinham usado o argumento contra a Coroa, mas agora deveriam usá-lo contra a Igreja.

Tema que de alguma maneira não é muito distinto do Ralliement de Leão XIII: como existir politicamente nas repúblicas laicas, maçônicas e ateias? (que estavam dando uma dura sacudida no catolicismo). Mas este último não o levou à Igreja, deixou-o em política e não como princípio – e nos princípios manteve a doutrina correta – mas como estratégia diplomática de sobrevivência e até de posterior intenção de tomada de poder (que não funcionou em nenhum dos dois modos). Recordem o tema “punição e regeneração” no qual se apoiavam os contrarrevolucionários.

Nota

  1. “if I am obliged to bring religion into after-dinner toasts, I shall drink—to the Pope, if you please—still, to Conscience first, and to the Pope afterwards.”