A “DUALIDADE” DE NEWMAN, OU OS COMEÇOS DO “REINO DIVIDIDO” – PARTE 2

Fé e razão: Cardeal Newman será proclamado Doutor da Igreja

por Dardo Juan Calderón

O argumento de justificação

Em Newman, a consciência não é como um triste contador de culpas. Ele a situa na criação: quando Deus se fez criador, colocou a Lei do seu Ser – que é Ele mesmo – em suas criaturas. A consciência nos apresenta a verdade e é liberadora, é a mensageira de Deus. “Os católicos não somos escravos, nem sequer do Papa”, afirma Newman. Mas para Newman, este caráter tão positivo não implica que devamos desprezar a voz do Papa, embora destaque “a obediência devida à voz divina que fala em nós” em primeiro lugar.

“Seria um traidor um católico inglês no caso do dilema entre seguir o Papa e a sua consciência?” pergunta equiparando consciência a país; e, se olhamos bem, essa equivalência é bem de gosto liberal e supõe um país que é uma somatória de consciências individuais. E toma como exemplo os deputados católicos ingleses que se conjuraram para não admitir um rei de dinastia católica de outro pais (aos quais o Papa Pio IX obrigou a romper o juramento).

Aquela grande confiança na bondade de Deus levou à surpreendente conclusão, que tanto chamou a atenção da opinião pública inglesa, de que o católico deve seguir a consciência antes do Papa, e com isso evitou a intenção maçom de apagá-los do mapa. Um herói em toda linha, um herói de uma guerra real com consequências concretas e valoráveis, um herói cuja arma tinha sido a literatura e ali poderia ter permanecido.

Mas excedendo a conjuntura, o atual Catecismo da Igreja Católica, para definir a consciência, utiliza e cita essa carta ao Duque de Norfolk: “A consciência é a mensageira… A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (CIC 1778). Com quem essa consciência vicária deve ser confrontada? Perante ao próprio Vigário? Diziam-no os próprios Vigários?

O fato é que três anos depois dessa controvérsia, em 1879, o Padre Newman foi nomeado Cardeal pelo papa Leão XIII: era o indicado para a política de Ralliement na Inglaterra, dado esse acerto político que teve, sendo, ademais, um homem de confiança em Roma.

Mas Newman tinha saído de uma encruzilhada política salvando a cabeça – as posses e a posição – dos seus, e tinha feito literatura polêmica, enquanto o alemão fazia com isso neoteologia.

Deve-se levar em conta – como dissemos – que era inconcebível para um inglês – católico ou não – enfrentar a “ordem estabelecida”, e era preciso encontrar uma saída. “O homem de estirpe, com a revolução, arrisca unicamente sua cabeça. O pequeno burguês perderia tudo, pois ele depende por inteiro da ordem estabelecida. Ordem Estabelecida essa que ama como a si mesmo, pois é seu estabelecimento” (Outra vez Bernanos; entende-se por que se vota em Macri? [texto escrito em 2018; os exemplos são infinitos])

Acaso Newman dava amparo para essa pirueta? Olhemos esta bela frase: “Sinto aquele Deus dentro de meu coração. Sinto-me em sua presença. Ele me diz: faz isso, não faz aquilo. Podeis dizer-me que essa prescrição é somente uma lei da minha natureza, como são o alegrar-se ou o entristecer-se. Não consigo entendê-lo. Não, é o eco de uma pessoa que me fala. Nada me convencerá de que no final não provenha de uma pessoa externa a mim. Ela leva comigo a prova de sua origem divina. Minha natureza experimenta para com isso um sentimento como para com uma pessoa. Quando lhe obedeço, sinto-me satisfeito, quando desobedeço sinto-me aflito, como o que sinto quando fico contente ou ofendo a um amigo venerado […] O eco implica uma voz, a voz remite a uma pessoa que fala. A essa pessoa que fala, eu a amo e a temo” [grifos meus]. A voz está dentro de mim, mas é externa; é minha pessoa, mas é outra pessoa; uns entenderam que diz expressamente que não vem de Roma, que é anterior a ela, mas depois virão frases mais ortodoxas que colocarão, em uma espécie de explosão literária, as coisas em seu trilho tradicional e magisterial.

Comentando essa frase, junto àquela outra do Cardeal dizendo que não lhe deixavam tranquilo as “provas” da existência de Deus do duro tomismo, preferindo sua prova própria na “experiência da consciência”, diz um autor: “Essa passagem muito densa resume todo o percurso da afirmação – a partir da consciência de si mesmo e do sentido moral – do Deus pessoal e não de uma mera lei ou “something”, de maneira que podemos sintetizar toda a fenomenologia realista de Newman assim: cogito ergo sum e conscientiam habeo, ergo Deus est.” (Roger Cheaib, Itinerarium cordis in Deum. Prospettive pre-logiche e meta-logiche per una mistagogia verso la fede alla luce di V. E. Frankl, M. Blondel y J. H. Newman, Editorial Cittadela, Assis 2012). E ninguém poderá me dizer que o bom Rober esta falseando o autor.

Um certo senhor Crosby escreve um longo ensaio para demonstrar que o personalismo nasce em Newman, Maritain depois o expressa em toda sua dimensão e Wojtyla o torna doutrina magisterial (este estava na URSS, equiparável à Inglaterra maçônica, embora alguns não notem o parecido pela diferença dos modais russos com os ingleses). Bento XVI, com um pouco mais de consciência da mudança teológica e não somente política, pretende salvar a pura subjetividade: “A concepção que Newman tem da consciência é diametralmente oposta (ao puro subjetivismo). Para ele, ‘consciência’ significa a capacidade de verdade do homem: a capacidade de reconhecer, nos âmbitos decisivos de sua existência – religião e moral – uma verdade, ‘a’ verdade. A consciência, a capacidade do homem para reconhecer a verdade, impõe a ele ao mesmo tempo o dever de encaminhar-se até a verdade, de buscá-la e de se submeter a ela onde quer que a encontre. Consciência é capacidade de verdade e obediência em relação à verdade, que se mostra ao homem que busca com coração aberto. O caminho das conversões de Newman é um caminho da consciência, não um caminho da subjetividade que se afirma, mas, ao contrário, da obediência à verdade que se abria passo a passo”. Abria-se? Onde? Na Igreja e seu Magistério? Ou dentro de si? Ou em que raios de lugar? E caímos no círculo vicioso da imanência que quer escapar de si mesma e morde o próprio rabo, típico do alemão e dos teólogos protestantes.

Um século depois da controvérsia, essa obra de Newman seguia sendo de interesse, mas não por um problema político da Inglaterra e sim por um problema teológico na Igreja, que não queria se entender tal qual se entendia até esse momento. Um cardeal alemão deu uma conferência acerca de “Newman e a consciência” em Dallas em 1978. O sobrenome do Cardeal era Ratzinger. A Providência tinha decidido que teriam ambos os cardeais um encontro nessa cidade de Birmingham. Não só isso: a Providência tinha decidido que o alemão iria representar toda a Igreja e colocaria em nome do inglês a primazia da consciência sobre a autoridade do magistério, consciência que se formava no mistério da imanência e lançava o homem à transcendência, pirueta que, como dizia Rubén Calderón Bouchet, fazia recordar àquele ator cômico – Buster Keaton – que se levantava do chão puxando suas próprias orelhas.

Não foi Newman alheio ao problema de sair da imanência em seu conceito de consciência, e então a duplicou e deu à Igreja uma certa ingerência nela, em uma segunda fase, já não como “formadora” mas como “corretora”. Escutemos: “Quanto à consciência, para o homem existem duas modalidades de segui-la. Na primeira, a consciência só forma uma espécie de intuição até o oportuno, uma tendência que nos recomenda uma coisa ou outra. Na segunda, é o eco da voz de Deus. Tudo depende dessa diferença. A primeira via não é a da fé; a segunda é.”

“A norma e a medida do dever não é a utilidade, nem a conveniência, nem a felicidade do maior número de pessoas, nem a razão de Estado, nem a oportunidade, nem a ordem ou o pulchrum. A consciência não é um egoísmo clarividente, nem o desejo de ser coerente consigo mesmo, mas a mensageira d’Aquele que, tanto no mundo da natureza como no da graça, fala-nos por trás de um véu e nos adestra e governa por meio de seus representantes. A consciência é o ‘vigário original de Cristo’, profética em suas palavras, soberana em sua peremptoriedade, sacerdotal em suas bençãos e em seus anátemas; e se alguma vez decaísse a Igreja no eterno sacerdócio, na consciência permaneceria o princípio sacerdotal e ela teria seu domínio” […] “Cheguei à conclusão de que, em uma verdadeira filosofia, não havia solução intermédia entre o ateísmo e o catolicismo, e que um espírito plenamente coerente, nas circunstâncias em que se encontra aqui embaixo, deve abraçar ou um ou ao outro. E estou, no entanto, convencido disso: sou católico em virtude da minha fé em Deus; e se me perguntam por que creio em Deus, respondo: porque creio em mim mesmo. Vejo que é, com efeito, impossível crer em minha própria existência (e desse fato estou perfeitamente seguro) sem crer também na existência de Quem vive em minha consciência como um Ser Pessoal, que tudo vê, tudo julga”… E depois, aqui entra a Igreja e o magistério: Deus, segundo ele, não se revelou ao mundo como um fato histórico (embora também), mas principalmente como uma experiência da consciência, e a Igreja não é a Testemunha e Guardiã de uma Revelação deste Deus que nos falou por meio da boca de homens, mas o guardião da consciência que recebeu sua presença: “… o sentimento do justo e do injusto, que na religião é o primeiro elemento, é tão delicado, tão irregular, tão fácil de se confundir, de se obscurecer, perverter-se, tão sutil em seus métodos de raciocínio, tão maleável desde a educação, tão influenciado pelo orgulho e as paixões, tão inestável em seu curso que, na luta pela existência, entre os múltiplos exercícios e triunfos da mente humana, esse sentimento ao mesmo tempo é o maior e o mais obscuro dos mestres; e a Igreja, o Papa, a hierarquia constituem, na Providência divina, a resposta a uma necessidade urgente.”

Outro autor nos diz, e também nele não podemos acusar uma interpretação falseada: “Newman sempre afirmou plenamente a dignidade da consciência subjetiva, sem desviar-se jamais da verdade objetiva. Ele não diria: consciência sim – Deus ou fé ou Igreja não; mas sim: consciência sim – e precisamente por isso Deus e fé e Igreja sim. A consciência é a advogada da verdade em nosso coração; é ‘o vigário original de Cristo’” (ERMANN GEISSLER).

Sem forçar, vemos os modernistas encontrando nos pensamentos de Newman todas as notas que fazem a sua ambígua – mas herética – doutrina; de fato foram seus cultores Loisy (na cabeceira de seu leito de morte estava um retrato de Newman), Tyrrel, Von Huegen e Guitton. Paulo VI disse que a posteridade se daria conta, um dia, de que o Concílio Vaticano II se inspirava nele. Também poderíamos passar dias citando frases inteiramente ortodoxas, embora (como já disse anteriormente) já não em tom literário, mas como uma explosão de estilo, como uma espécie de freada que costumam fazer os crentes quando a imaginação nos deixa loucos. Alguém poderia dizer “não entendo a monogamia, é-me mais doce a poligamia, mas aceito com esforço o que me diz o Magistério da Igreja e a ele me atenho com toda a vontade”. E isso é muito notável em Newman, convertido enfim, mas convertido malgré lui. E assim como houve denúncias a Roma (a São Pio X) a partir de seus pares e contemporâneos pelo perigo de suas doutrinas (Mons. O’Dwyer, Bispo de Limerick), São Pio X o defende em uma carta que dizia algo assim como (estava em latim e não a encontro): “… apesar de certas incoerências não se pode duvidar de sua fé(1). E eu me enquadro – apesar de que me grita a dúvida: se o Santo o disse o aceito com a mesma vontade com que Newman aceitou o Syllabus.

Escondem essa aceitação de ortodoxia os modernistas? Não, em geral tampouco o fazem, mas festejam a “dualidade” de Newman (aponta-o especialmente Crosby) como uma nota de angústia existencialista. E embora – muito de soslaio – outros deixam entrever que eram declarações entremeadas para evitar uma condenação e valer-se delas em caso de uma inquisição ante as acusações de seus pares, e que portanto não se devem levar em conta; e essa suspeita a fundamentam na mudança de estilo quando o autor recorre a elas.

Newman vinha de uma religião liberal, e tinha se convertido de verdade, aferrava-se ao magistério com encrespadas mãos de católico recém-chegado (um magistério que em sua época condenava o liberalismo de modo claro e rotundo e ele o acatava), mas seguia respirando pelos poros sua formação e o espírito de sua pátria, que lhe surgiam enquanto literato. Essa dualidade, que ele mesmo experimenta e que leva ao movimento de Oxford ao catolicismo, e que são suas “duas consciências”, a que busca o bem carnal, ainda que ótimo, e aquela consciência da “verdade”, cheia de escória, que necessita da disciplina da Igreja para emendar-se e corrigir-se. E em seu caso é, sem dúvida, o que necessita, poque não pode “formar-se” nela, nem conformar-se de todo a ela. Para ele, a Igreja é uma dura e necessária vara a que se ata para guiar a retorcida – embora nobre – árvore de nossa personalidade. Mas não vemos essa ideia serenamente católica de que seja a Igreja a Árvore mesma da qual brotamos e de cuja seiva nos alimentamos.

Concluamos por agora: não se faz teologia fora da Igreja e de seu Magistério. Não se faz com De Maistre e seu estorvo dialético e martiniano – seu passado franco-maçom – que prevê a regeneração histórica depois da punição revolucionária com certo perfume milenarista (Mons. Delassus cai um pouco nessa tentação por admiração ao personagem – imagine se visse hoje o Vaticano um século depois, em que supunha uma restauração! E neste sonho entram a TFP e Roberto de Mattei [Nota de Dominus Est: e também os Arautos do Evangelho]). Tampouco com Blanc de Saint Bonnet e seu passado sansimoniano. Não se faz teologia com Maurras nem com Péguy por causa de seus antecedentes, nem se faz com muitos outros de nossos heróis contrarrevolucionários. Com eles se faz política, história ou literatura. (Li muitos a falar de um Lefebvre “maurrasiano” quando o próprio Bispo – reconhecendo os acertos do francês – confessou não ter lido uma única obra sua. A doutrina do bom Monsenhor era o Magistério da Igreja e Maurras estava indo a ele. Essa é toda a coincidência). Não se faz teologia com Newman.

Diz-nos Louis Medler, em sua obra sobre Mons. Delassus, que “esses autores, em que a evolução (até o catolicismo) dura toda a vida, merecem ser estudados, mas não podem ser considerados verdadeiros mestres, pois para o mestre se exige uma estabilidade na verdade que permita, ao discípulo, estudar com plena confiança”, e essa estabilidade se consegue no seio da Igreja Católica, em seu Magistério que alcança sua máxima expressão na teologia de Santo Tomás.

Mas, claro, esses mestres têm o costume antipático de ter sempre razão, e não apresentam esses “aspectos humanos”, tão simpáticos a nós, que neles encontramos semelhantes amores e rancores, vícios e virtudes, e nos acarinhamos com seus “estilos”. E têm razão aqueles não por ter razão em si mesmos, pois nem sequer esses “Padres da Igreja” que Newman tanto admirou e onde encontrou sua conversão ao catolicismo – e ali lamentavelmente ficou – são infalíveis tomados separadamente de todo o curso do Magistério (como, em seu seguimento, muitos acreditam hoje). Próximos a nós são mestres um Cardeal Pie, um Pio X, um Mons. Lefebvre, um Mons. de Castro Mayer no Brasil e até ponho nessa série a um Meinvielle na Argentina (com mínimas precauções). Aqueles outros, especialistas do inimigo, denunciantes das maquinações sectárias, combatentes diretos contra a conjuração, publicistas e polemistas que resistiram ao assalto, e até vítimas da confusão; merecem nosso amor, gratidão, compreensão, nossas orações e nosso trato. Porque como bem dizia Bernanos, para entender nosso tempo que se preparou em batalhas passadas, não é útil falar com os vivos, mas com os mortos.

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Excursus: Newman é muito querido e combina perfeitamente com nós, que vivemos em situações semelhantes. Em realidade, não queremos reconhecer que desde há um século a única e verdadeira maneira de ser católico é alguma espécie de martírio, é estar em combate – ou ao menos não colaborar – com a Besta que rege o mundo por meio de uma política ateia, laica e anticristã. É estar contra a Ordem Estabelecida e disposto a perder tudo. E Newman, esse bom diretor espiritual, tinha buscado a forma para não nos exigir nada além do pouco que, cada vez menos, estamos dispostos a dar.

O argumento justificável desta miserável maneira de ser católicos, de não ter perdido tudo na Vendéia, de não ter sido mortos no México Cristeiro, de não ter sido massacrado na Espanha do século passado, de não ter sido relegados à solidão e ao desprezo como Calmel e como tantos outros bons padres, de não ter sido Genta nem Sacheri, não pode ser um argumento “elegante”. O mais aceitável seria uma nobre pobreza e desprendimento, um retiro sacrificial, mas o que nos é mais próprio é simplesmente que somos “miseráveis” e com isso ir relutantemente, como o Cirineu, de joelhos perante a Cruz.

Newman soube dar a essa condição uma pátina artificial de envelhecimento e estuque, que não é tradição nem glória, e a ela se aferram desesperados os católicos de nosso tempo – fazendo de uma saída oportuna e vergonhosa uma louvável forma de vida.

Nota/Nota de Dominus Est:

(1) “Informamos-vos que o vosso ensaio, no qual demonstrastes que os escritos do Cardeal Newman, longe de estarem em desacordo com Nossa Carta Encíclica Pascendi, estão, pelo contrário, em plena harmonia com ela, foi enfaticamente aprovado por Nós: pois não poderíeis ter servido melhor tanto à verdade quanto à dignidade do homem. É evidente que aqueles cujos erros condenamos nesse Documento decidiram entre si criar algo de sua própria invenção, com o qual buscassem atribuir à sua causa a aprovação de uma pessoa ilustre. Assim, por toda parte, afirmam com confiança que derivaram tais coisas da própria fonte e cume da autoridade, e que, portanto, não poderíamos censurar seus ensinamentos; ao contrário, dizem que havíamos até condenado previamente o que um autor tão grande ensinara.”

São Pio X, carta a Dom Edward Thomas, Bispo de Limerick, 10 de março de 1908. Fonte: Actas Sactae Sedis, vol. XLI, 1908, pp. 200-202.