Como grandíssimas vantagens derivam para toda a sociedade de um tal primado da missão educadora da Igreja e da família, como temos visto, assim também nenhum dano pode ele causar aos verdadeiros e próprios direitos do Estado relativamente à educação dos cidadãos, segundo a ordem estabelecida por Deus.
a) Em ordem ao bem comum
Estes direitos são concedidos à sociedade civil pelo próprio autor da Natureza, não a título de paternidade, como à Igreja e à família, mas sim em razão da autoridade que lhe compete para promover o bem comum e temporal, que é precisamente o seu fim próprio. Por conseqüência a educação não pode pertencer à sociedade civil do mesmo modo por que pertence à Igreja e à família, mas de maneira diversa, correspondente ao seu próprio fim.
Ora, este fim, o bem comum de ordem temporal, consiste na paz e segurança de que as famílias e os cidadãos gozam no exercício dos seus direitos, e simultaneamente no maior bem-estar espiritual e material de que seja capaz a vida presente mediante a união e o coordenamento do esforço de todos.
b) Duas funções
Dupla é portanto a função da autoridade civil, que reside no Estado: proteger e promover, e de modo nenhum absorver a família e o indivíduo, ou substituir-se-lhes.
Portanto relativamente à educação, é direito, ou melhor, é dever do Estado proteger com as suas leis o direito anterior da família sobre a educação cristã da prole, como acima indicamos, e por conseqüência respeitar o direito sobrenatural da Igreja a tal educação cristã.
Dum modo semelhante pertence ao Estado proteger o mesmo direito na prole, quando viesse a faltar, física ou moralmente, a acção dos pais, por defeito, incapacidade ou indignidade, visto que o seu direito de educadores, como acima declaramos, não é absoluto ou despótico, mas dependente da lei natural e divina, e por isso sujeito à autoridade e juízo da Igreja, e outrossim à vigilância e tutela jurídica do Estado em ordem ao bem comum, tanto mais que a família não é sociedade perfeita que tenha em si todos os meios necessários ao seu aperfeiçoamento. Em tal caso, excepcional de resto, o Estado não se substitui já à família, mas supre as deficiências e providência com os meios apropriados, sempre de harmonia com os direitos naturais da prole e com os sobrenaturais da Igreja.
Em geral pois, é direito e dever do Estado proteger, em harmonia com as normas da recta razão e da Fé, a educação moral e religiosa da juventude, removendo as causas publicas que lhe sejam contrárias.
Principalmente pertence ao Estado em ordem ao bem comum, promover por muitos modos a mesma instrução e educação da juventude.
Primeiramente e por si, favorecendo e ajudando a iniciativa e esforço da Igreja e das famílias; e, quanto eficaz isso seja, demonstram-no a história e a experiência. Depois disso completando este esforço, quando ele não chegue ou não baste, também por meio de escolas e instituições próprias, porque o Estado, mais que ninguém, possui meios de que pode dispor para as necessidades de todos, e é justo que deles use para vantagem daqueles mesmos de quem derivam (32).
Além disso o Estado pode exigir e por isso procurar que todos os cidadãos tenham o necessário conhecimento dos próprios deveres cívicos e nacionais, e um certo grau de cultura intelectual, moral e física, que, dadas as condições dos nossos tempos, seja verdadeiramente reclamada pelo bem comum.
Todavia, é claro que, em todos estes modos de promover a educação e instrução pública e privada, o Estado atêm de observar a justiça distributiva, deve também respeitar os direitos congénitos da Igreja e da família sobre a educação cristã. Portanto é injusto e ilícito todo o monopólio educativo ou escolástico, que física ou moralmente constrinja as famílias a frequentar as escolas do Estado, contra as obrigações da consciência cristã ou mesmo contra as suas legítimas preferências.
c) Qual educação pode reservar-se
Isto porém não impede que para a recta administração do Estado e para a defesa externa e interna da paz, coisas tão necessárias ao bem comum e que requerem especiais aptidões e peculiar preparação, o Estado se reserve a instituição e direção de escolas preparatórias para o exercício dalgumas das suas funções, e nomeadamente para o exercito, desde que não ofenda os direitos da Igreja e da família naquilo que lhes pertence. Não é inútil repetir aqui, dum modo particular, esta advertência, visto que nos nossos tempos (em que se vai difundindo um nacionalismo tão exagerado e falso quanto inimigo da verdadeira paz e prosperidade) costuma o Estado ultrapassar os justos limites, organizando militarmente a chamada educação física dos jovens (e às vezes mesmo das meninas, contra a própria natureza das coisas humanas), absorvendo muitas vezes desmesuradamente, no dia do Senhor, o tempo que deve ser dedicado aos deveres religiosos e ao santuário da vida familiar.
Não queremos, de resto, censurar o que pode haver de bom relativamente ao espírito de disciplina e de legitima ousadia, em tais métodos, mas semente todo o excesso, qual é por exemplo o espírito de violência, que não deve confundir-se com o espírito de intrepidez nem com o nobre sentimento do valor militar em defesa da Pátria e da ordem publica, qual é ainda a exaltação do atletismo que marcou a decadência e a degenerescência da verdadeira educação física, mesmo na época clássica pagã.
Em geral pois, pertence à sociedade civil e ao Estado a educação que pode chamar-se cívica, não só da juventude mas também a de todas as idades e condições, que consiste na arte de apresentar publicamente tais objectos de conhecimento racional, de imaginação e de sensibilidade, que atraiam a vontade para o honesto e lho inculquem por uma necessidade moral, tanto pela apresentação da parte positiva de tais objectos, como pela da negativa, que impede os contrários (33).
Tal educação cívica, tão ampla e múltipla que compreende quase toda a acção do Estado pelo bem comum, assim como deve ser informada pelas normas da rectidão, assim também não pode contradizer a doutrina da Igreja que foi divinamente constituída e é mestra destas normas.
d) Relações entre a Igreja e o Estado
Tudo o que dissemos até agora da acção do Estado na educação, baseia-se no fundamento seguríssimo e imutável da doutrina católica De Civitatum constitutione christiana, tão egregiamente exposta pelo Nosso Predecessor Leão XIII, especialmente nas encíclicas Immortale Dei e Sapientiae christianae, da seguinte forma: «Deus dividiu entre dois poderes o governo do gênero humano, o eclesiástico e o civil, um para prover às coisas divinas e outro às humanas: ambos supremos, cada um na sua esfera; ambos têm confins determinados, que lha limitam, e marcados pela própria natureza e fim próximo de cada um; de modo que chega a descrever-se como que uma esfera dentro da qual se exerce, com exclusivo direito, a ação de cada um. Mas como a estes dois poderes estão sujeitos os mesmos subditos, podendo dar-se que a mesma matéria, embora sob aspectos diversos pertença à competência e juízo de cada um deles, Deus providentíssimo, de Quem ambos dimanam, deve ter marcado a cada um os seus caminhos. Os poderes que existem são regulados por Deus» (34).
Ora a educação da juventude é precisamente uma daquelas coisas que pertencem à Igreja e ao Estado, « embora de modo diverso », como acima indicamos. a Portanto — prossegue Leão XIII — deve reinar entre os dois poderes uma ordenada harmonia; a qual é comparada e com razão àquela pela qual a alma e o corpo se unem no homem. Qual e quão grande esta seja, não se pode avaliar doutro modo senão reflectindo, como dizemos, na natureza de cada um deles, atendendo à excelência e nobreza do fim, sendo próximos e propriamente ordenados, um para procurar o útil das coisas mortais, e outro, pelo contrário, para procurar os bens celestes e sempiternos. Portanto tudo o que há, dalgum modo sagrado nas coisas humanas, tudo o que se refere à salvação das almas e ao culto de Deus, quer seja tal por sua natureza, quer tal se considere em razão do fim a que tende, tudo isso está sujeito ao poder e às disposições da Igreja: o resto que fica na ordem civil e política, é justo que dependa da autoridade civil, tendo Jesus Cristo mandado que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus » (35).
Se alguém recusasse admitir estes princípios e consequentemente aplicá-los à educação, chegaria necessariamente a negar que Cristo fundou a sua Igreja para a eterna salvação dos homens, e a sustentar que a sociedade civil e o Estado não estão sujeitos a Deus e à sua lei natural e divina.
Ora isto é evidentemente ímpio, contrário à sua razão e principalmente em matéria de educação extremamente pernicioso à recta formação da juventude e seguramente ruinoso para a mesma sociedade civil e para o bem-estar social. E ao contrário, da aplicação destes princípios não pode deixar de resultar o máximo auxílio para a recta formação dos cidadãos.
Isto demonstram superabundantemente os factos, em todas as épocas, e por isso assim como Tertuliano nos primeiros tempos do Cristianismo assim também S. Agostinho na sua época, podia desafiar todos os adversários da Igreja Católica — e Nós em nosso tempo podemos repetir com ele: — « Pois bem, aqueles que dizem ser a doutrina de Cristo inimiga do Estado, que nos dêem um exército tal como a doutrina de Cristo ensina que devem ser os soldados; que nos dêem subditos, maridos, esposas, pais, filhos, patrões, criados, reis, juízes, finalmente contribuintes e empregados fiscais, como a doutrina cristã manda que sejam, e atrevam-se depois a dizer que é nocivo ao Estado, ou melhor, não hesitem um instante em proclamá-la a grande salvadora do mesmo Estado em que ela se observa » (36).
e) Necessidade e vantagens do acordo com a Igreja
E tratando-se de educação, vem agora a propósito fazer notar, como, no período da Renascença, exprimiu bem esta verdade católica, confirmada pelos factos, nos tempos mais recentes, um escritor eclesiástico, grande benemérito da educação cristã, o piíssimo e douto Cardeal Silvio Antoniano, discípulo do admirável educador que foi S. Filipe de Nery, e mestre e secretário das cartas latinas de S. Carlos Borromeu, a instancias e sob a inspiração do qual escreveu o áureo tratado Della educazione cristiana dei figliuoli, no qual assim discorre: « Quanto mais o governo temporal se coordena com o espiritual e mais o favorece e promove, tanto mais concorre para a conservação do Estado. Pois que, enquanto o superior eclesiástico procura formar um bom cristão com a autoridade e os meios espirituais, segundo o seu fim, procura ao mesmo tempo e por necessária conseqüência formar um bom cidadão, como ele deve ser sob o governo político. O que verdadeiramente se dá, porque na Santa Igreja Católica Romana, cidade de Deus, é absolutamente uma e a mesma coisa, o bom cidadão e o homem de bem. Pelo que grave é o erro daqueles que separam coisas tão unidas e pensam poder conseguir bons cidadãos por outras normas e por meios diversos daqueles que contribuem para formar o bom cristão.
Diga-se portanto, discorra a prudência humana como lhe aprouver, que não é possível que produza verdadeira paz e tranquilidade temporal, tudo o que repugna e se afasta da paz e felicidade eterna » (37).
Assim como o Estado, também a ciência, o método e a investigação científica, nada têm a temer do pleno e perfeito mandato educativo da Igreja. Os institutos católicos, a qualquer grau de ensino e de ciência a que pertençam, não têm necessidade de apologias. O favor de que gozam, os louvores que recebem, as produções científicas que promovem e multiplicam, e mais que tudo, os sujeitos, plena e excelentemente preparados que oferecem à magistratura, às várias profissões, ao ensino, e à vida em todas as suas actividades, depõem mais que suficientemente em seu favor (38).
Estes factos, de resto, não são mais que uma confirmação cabal da doutrina católica definida pelo Concilio Vaticano: « A Fé e a razão não só não podem contradizer-se nunca, mas auxiliam-se mutuamente, visto que a recta razão demonstra os fundamentos da Fé, e iluminada pela sua luz, cultiva a ciência das coisas divinas, ao passo que a Fé livra e protege dos erros a razão e enriquece-a com vários conhecimentos. Por isso a Igreja está tão longe de se opor à cultura das artes e das disciplinas humanas que até a auxilia e promove, porque não ignora nem despreza as vantagens que delas provêm para a vida da humanidade e até ensina que elas, assim como provêm de Deus, Senhor das ciências, assim também, se tratadas rectamente, conduzem a Deus com a sua graça. E de nenhum modo ela proíbe que tais disciplinas, cada uma na sua esfera, usem do método e princípios próprios, mas reconhecida esta justa liberdade, provê cuidadosamente a que não caiam em erro, opondo-se aventurosamente à doutrina divina, ou ultrapassando os próprios limites, ocupem e revolucionem o campo da fé » (39).
E esta norma de justa liberdade científica é também norma inviolável de justa liberdade didática ou de ensino, quando bem compreendida; e deve ser observada em qualquer comunicação doutrinal feita a outrem, mormente por dever muito mais grave de justiça no ensino da juventude quer porque sobre ela, nenhum professor, seja público seja particular tem direito educativo absoluto mas participado, quer porque toda a criança ou jovem cristão tem direito estrito ao ensino conforme à doutrina da Igreja, coluna e fundamento da verdade, e lhe causaria um grave dano quem perturbasse a sua fé, abusando da confiança dos jovens nos seus professores, e da sua natural inexperiência e desordenada inclinação para uma liberdade absoluta, ilusória e falsa.
Carta Encíclica Divini Illius Magistri – Papa Pio XI
(32) Discurso aos alunos de Mondragone, 14 de Maio de 1929.
(33) P. L. Taparelli, Saggio teor. di Diritto Naturale, n. 922; Obra nunca assaz louvada e recomendada ao estudo dos jovens universitários (cfr. o Nosso discurso de 18 de Dezembro de 1927).
(34) Ep. enc. Immortale Dei, 1 Nov. 1885: Deus humani generis procurationem inter duas potestates partitus est, scilicet ecclesiasticam et civilem, alteram quidem divinis, alteram humania reines praepositam. Utraque est in suo genere maxima: habet utraque certos, quibus contineatur, terminos, eosque sua cuiusque natura causaque proxime definitos; unde aliquis velut orbis circumscribitur, in quo sua cuiusque actio iure proprio versetur. Sed quia utriusque imperium est in eosdem, cum usuvenire possit, ut res una atque eadem quamquam aliter atque aliter, sed tamen eadem res, ad utriusque ius iudiciumque pertineat, debet providentissimus Deus, a quo sunt ambae constitutae, utriusque itinera recte atque ordine composuisse. Quae autem sunt, a Deo ordinatae sunt (Rom., XIII, 1).
(35) Ep. enc. Immortale Dei, 1 Nov. 1885: Itaque inter utramque potestatem quaedam intercedant necesse est ordinata colligatio: quae quidem coniunctioni non immerito comparatur, per quam anima et corpus in homine copulantur. Qualis autem et quanta ea sit, aliter iudicari non potest, nisi respiciendo, uti diximus, ad utriusque naturam, habendaque ratione excellentiae et nobilitatis causarum; cum alteri proxime maximeque propositum sit rerum mortalium curare commoda, alteri caelestia ac sempiterna bona comparare. Quidquid igitur est in rebus humanis quoquo modo sacrum, quidquid ad salutem animorum cultumve Dei pertinet, sive tale illud sit natura sua, sive rursus tale intelligatur propter causam ad quam refertur, id est omne in potestate arbitrioque Ecclesiae: cetera vero, quae civile et politicum genus complectitur, rectum est civili auctoritati esse subiecta, cum Iesus Christus iusserit, quae Caesaris sint, reddi Caesari, quae Dei, Deo.
(36) Ep. 138: Proinde qui doctrinam Christi adversam dicunt esse reipublicae, dent exercitam talem, quales doctrina Christi esse milites iussit; dent tales provinciales, tales maritos, tales coniuges, tales parentes, tales filios, tales dominos, tales servos, tales reges, tales iudices, tales denique debitorum ipsius fisci redditores et exactores, quales esse praecipit doctrina christiana, et audeant eam dicere adversam esse reipublicae; imo vero non dubitent sam confiteri magnam, si obtemperetur, salutem esse reipublicae.
(37) Della educazione cristiana, liv. I, e. 43.
(38) Carta ao Card. Secretário de Estado, 30 de Maio de 1929.
(39) Conc. Vat., Sess. 3, cap. 4. Neque solam fides et ratio inter se dissidere nunquam possunt, sed opera quoque sibi mutuam ferunt, cum recta ratio fidei fundamenta demonstret eiusque lumine illustrata rerum divinarum scientiam excolat, fides vero rationem ab erroribus liberet ac tueatur eamque multiplici cognitione instruat. Quapropter tantum abest, ut Ecclesia humanaram artium et disciplinaram culturae obsistat, ut hanc multis modie iuvet atque promoveat. Non enim commoda ab iis ad hominum vitam dimanantia aut ignorat aut despicit; fatetur immo, eas, quemadmodum a Deo scientiarum Domino profectae sunt, ita, si rite pertractentur, ad Deum iuvante eius gratia perducere. Nec sane ipsa vetat, ne huiusmodi discipline in suo quaeque ambitu propriis utantur principiis et propria methodo; sed instam hanc libertatem agnoscens, id sedulo cavet, ne divinae doetrinae repugnando errores in se suscipiant, aut fines proprios transgressae ea, quae sunt fidei, occupent et perturbent.