Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: “Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?”
Ia responder-lhe com ênfase: “Era!” Mas enquanto vacilei alguns segundos meu amigo desenvolveu a idéia: “Olhe aqui. Eu bem sei que antigamente existiam padres simplórios, freiras tapadíssimas, leigos ainda mais simplórios e tapados. A burrice não é novidade, é antiqüíssima. Garanto-lhe que ao lado do artista genial que pintava touros nas cavernas de Espanha, anunciando há quarenta mil anos a brava raça de toureiros, havia dois ou três idiotas a acharem mal feita a pintura.
— Mas, calavam-se, disse eu.
E logo o meu amigo uivou uma exclamação que trazia na composição harmônica de suas vibrações todas as explosões da alma: a alegria, a angústia, a aflição de convencer, a tristeza de um bem perdido e até a cólera…
— Pois é! CALAAAVAM-SE!!!
Contei-lhe então uma história de antigamente. Teria eu dezoito ou dezenove anos, e meu heróis dezessete ou dezoito. Ele era o aluno repetente de uma escola qualquer, e eu seu “explicador” de matemática. Eu sentia a resistência tenaz que, dentro dele, se opunha às generalizações matemáticas. Ficava rubro, vexado e alagado de suor.
Recomeçava eu a explicar certo problema quando ele, numa decisão brusca, me deteve e suplicou:
— Explica devagar, devagarzinho, porque eu sou burro.
Na outra ponta do fio meu amigo de hoje explodiu:
— Que gênio! QUE GÊNIO!!
Era efetivamente genial aquele moço de antigamente. Não segui sua trajetória e não sei se ele hoje amadureceu e desabrochou aquele botão de sabedoria em flor, ou se virou idiota e portanto intelectual. O que pude garantir ao meu amigo não-católico é que antigamente a atitude média dos idiotas era tímida, modesta e respeitosa. E isto que se observava nas ruas, nas aulas particulares, nos salões de bilhar e nos clubes de xadrez, observava-se também na Igreja. De repente, em certo ângulo da história, mercê de algum gás novo na atmosfera, ou de algum fator ainda não deslindado, os idiotas amanheceram novos e confiantes. Já ouvi e li muitas vezes o termo “mutação” surrupiado das prateleiras da genética e aplicado à história, à Igreja, ao dogma e aos costumes. Dois ou três bispos franceses não sabem falar dez minutos sem usar o termo “um mundo em mutação”.
Se mutação houve, estou inclinado a crer que foi naquele ponto a que atrás aludimos: os idiotas que antigamente se calavam estão hoje com a palavra, possuem hoje todos os meios de comunicação. O mundo é deles. Será genético o fenômeno e por conseguinte transmissível?
— “Receio muito”, gemeu a voz de meu amigo, “você não leu os jornais da semana passada?”
— O quê? — perguntei com a aflição já engatilhada.
— A descoberta do capim!
Não tinha lido tão importante notícia, e o meu amigo explicou-me: um sábio, creio que dinamarquês, chegou à conclusão de que o capim é um dos melhores alimentos do homem. Meu amigo não me explicou que se tratava do Homo Sapiens, do Everlasting Man – de Chesterton, ou do Homo postconciliarius. Seja como for, dentro de quatro ou cinco anos teremos a humanidade de quatro e espalhada nos pastos.
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Estas reflexões amaríssimas, como diria o “agregado” de Machado de Assis, vieram-me hoje ao espírito depois da leitura de La Documentation Catholique, e principalmente depois da casual leitura de um volume encontrado entre outros livros de vinte anos atrás: O personalismo, de Emmanuel Mounier.
Nunca lera nada desse personagem que fundou a revista Esprit e que fez escola. Abri a página 42 da tradução editada pela Livraria Duas Cidades e li: “O homem é um ser natural”. Detenho-me nesta proposição seguida desta outra: “Será somente um ser natural?” E depois: “Será, inteiramente, um joguete da natureza?” Ora, é fácil de ver que nenhuma dessas proposições têm sentido, e nenhuma conexão se percebe entre elas. Ou então, se o leitor quiser ser mais exato, diremos que todo aquele fraseado joga com a polivalência te termos equívocos pretendendo com essa confusão transmitir ao desavisado adepto do “personalismo” um sentimento de profundidade ou de rara acuidade. O que quer dizer “um ser natural”? Dotado de natureza própria todos os seres o são, desde o átomo de hidrogênio até Deus. Tenho diante dos olhos o dorso de um livro de Garrigou-Lagrange: Dieu, son existance et sa nature. Logo, Deus é um ser natural. Se por natural se entende tudo o que pertence ao Universo criado, todos os seres, exceto o Incriado, serão seres naturais: a água, um gato, São Miguel Arcanjo. Se o termo natural se contrapõe a artificial, todos nós sabemos que um homem não é montado como um rádio de pilha, ou como uma máquina de costura. Logo, é um ser natural. Mas não se entende por que razão foi preciso fundar Esprit, lançar o progressismo, atirar-se nos braços do comunismo, comprometer Jacques Maritain, excitar tanta gente em torno de tão óbvia proposição.
Emmanuel Mounier já morreu coberto de glória há mais de dez anos. Podemos tranqüilamente dizer que era burro, apesar de tudo o que foi escrito em francês a seu respeito, como já podemos dizer tranqüilamente que Teilhard de Chardin era meio tantã. Dentro de cinqüenta anos ninguém mais saberá em que consistiu o “personalismo” de Mounier, ou o “phenomène humain” de Teilhard de Chardin. Essas obras foram o consolo e a volúpia de muitos leitores que, não entendendo nada do que liam, ao menos se aliviavam com este pensamento balsâmico: todos os livros são escritos para ninguém entender. E assim os idiotas do mundo tiveram um decênio ou dois de júbilo.
Passarão esses autores, mas se é verdadeira a descoberta das propriedades do capim, muitos novos autores surgirão a perguntar “se o homem é um ser natural”. Já se houve o tropel… Mas — quem sabe — talvez o próprio capim, entre suas virtudes estudadas em Estocolmo ou Copenhague, entre duas Pornôs, traga uma espécie de calmante que nos devolva o genial tipo clássico do burro que se conhecia e que não fundava revistas católicas nem rasgava novos horizontes para a Igreja.
Conversa em Sol Menor – Gustavo Corção