COM OU SEM MANDATO? SOBRE AS FUTURAS SAGRAÇÕES NA FSSPX

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome n° 687 – Tradução: Dominus Est

Esse artigo é uma continuação do UMA LEITURA CUIDADOSA? SOBRE AS FUTURAS SAGRAÇÕES NA FSSPX

1 – Direito Divino e Direito Eclesiástico

1. Em todos os textos em que Pio XII fala da sagração episcopal realizada sem mandato apostólico,(1) é tratado da sagração conferida com jurisdição. Ora, a sagração conferida com jurisdição só constitui uma violação ao direito divino quando é conferida sem mandato apostólico e contra a vontade do Papa. A passagem da Encíclica Ad Apostolorum Principisem que Pio XII caracteriza essa violação do direito divino utiliza a expressão “contra jus fasque“, que designa tanto o direito humano (“jus”)quanto o divino (“fas”). Aqui, mais uma vez, é importante ter uma compreensão bastante clara do que esses conceitos implicam.

2. O direito divino é o objeto da lei divina, imediatamente promulgada por Deus. É costume distinguir entre direito divino natural e direito divino positivo. O direito divino natural equivale à lei natural, isto é, a expressão da ordem moral estabelecida por Deus, autor da ordem natural por meio de sua criação, expressão presente para todos os homens. O direito divino positivo é o objeto de uma lei da qual Deus é o autor e que Ele promulgou por meio de sua Revelação sobrenatural (em oposição à lei divina natural). O direito eclesiástico é o objeto da lei humana promulgada pela Igreja para o bem comum de toda a sociedade eclesiástica e que obriga todos os fiéis batizados a partir dos 7 anos de idade.

3. Pode-se dizer que um poder é de direito divino ou de direito eclesiástico em três sentidos diferentes.

4. No primeiro sentido, esse poder é de direito divino ou de direito eclesiástico do ponto de vista de sua necessidade ou de sua própria existência. É de direito divino que, na Igreja, existam, como partes do poder da Ordem, o sacerdócio e o diaconato, sendo o episcopado o grau superior do sacerdócio, cujo grau inferior é o presbiterato. (2) E, segundo a opinião mais provável, é também de direito divino que, na Igreja, existam os poderes correspondentes às quatro Ordens menores. Mas é de direito eclesiástico que exista, na Igreja, o poder de jurisdição dos patriarcas, arcebispos ou párocos, ou o poder de impor o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e de abençoar medalhas milagrosas.

5. No segundo e terceiro sentidos, o poder é de direito divino ou eclesiástico, do ponto de vista de sua necessidade ou existência em relação a uma dada circunstância, por exemplo, a existência de um poder em um determinado sujeito. Isso, novamente, significa duas coisas.

6. No segundo sentido, isso significa que foi Deus (direito divino) ou a autoridade humana da Igreja (direito eclesiástico) quem decidiu que esse poder existiria em um determinado sujeito distinto. Por exemplo, é de direito divino que, na Igreja, o poder do diácono seja confiado a um sujeito distinto do sacerdote; por outro lado, poderia ser de direito eclesiástico que, na Igreja, o poder de cada uma das quatro Ordens menores seja confiado a tantos sujeitos distintos, tanto do diácono quanto do sacerdote.

7. No terceiro sentido, a distinção significa que ou Deus (direito divino) ou a autoridade humana da Igreja (lei eclesiástica) age para comunicar esse poder a esse sujeito, isto é, que investe o sujeito com esse poder. Se for Deus, o homem pode cooperar com Ele na conferência desse poder, mas será um mero instrumento: é o caso do bispo que, na ordenação sacerdotal, confere a um diácono o poder (por direito divino no primeiro sentido) de celebrar a Missa, ou que, na sagração episcopal, confere a um sacerdote o poder de conferir a ordenação sacerdotal. Se for a autoridade humana da Igreja, o homem atua como representante de Deus, mas não como um mero instrumento: é o caso do bispo que confere a um pároco o poder (por direito eclesiástico no primeiro e segundo sentidos) de governar uma paróquia; é também o caso do Papa, que concede a um bispo o poder (por direito divino no primeiro e segundo sentidos) de governar uma parte da Igreja.

8. São de direito divino, no primeiro sentido, o poder de ordem do diácono, o do sacerdote e o do bispo, bem como o poder de jurisdição do Papa e o dos bispos, sendo o primeiro supremo e universal, o segundo subordinado e restrito. (4) Dito isso, é fácil compreender que, no primeiro sentido, não é por direito divino que pertence ao Papa, e somente a ele, consagrar bispos, isto é, comunicar a um presbítero o poder da ordem episcopal. É por direito divino que pertence a todo bispo (e não apenas ao Bispo de Roma) sagrar outros bispos. A própria comunicação desse poder, tal como ocorre com a sagração de bispos, é então por direito divino no terceiro sentido, isto é, no sentido de que é Deus, e somente Deus, quem comunica esse poder, sendo o bispo consagrante, neste caso, meramente um instrumento. E esse bispo consagrante é, por direito divino, no primeiro sentido, todo bispo, e não apenas o Bispo de Roma. Os fatos bem conhecidos da história passada e presente da Igreja são suficientes para provar isso.

9. Em contrapartida, no primeiro sentido, é por direito divino que cabe ao Bispo de Roma, e somente a ele, conferir a qualquer outro bispo o poder episcopal de jurisdição necessário para governar uma parte da Igreja. A transmissão desse poder episcopal, tal como ocorre com a missão canônica, é, então, de direito eclesiástico no terceiro sentido (visto que é o Bispo de Roma, e não Deus, quem procede por si mesmo à transmissão desse poder).

2 – O Direito Divino do Papado.

10. Observemos isto atentamente. Esta última verdade é uma consequência que decorre de outra verdade, que é o seu princípio: é por direito divino que o Bispo de Roma é o chefe supremo de toda a Igreja, isto é, ele possui, como sucessor do Apóstolo São Pedro, o poder episcopal de jurisdição suprema e universal sobre toda a Igreja de Cristo, a Igreja Católica Romana. A verdade de princípio e a consequência que dela decorre são aqui ambas por direito divino, no primeiro sentido, e isso é compreendido por que ambas se expressam no mesmo nível e em relação ao mesmo objeto, que é o poder episcopal de jurisdição divinamente instituído (ou por direito divino no primeiro sentido). Mas, apesar de tudo isso, nem toda comunicação de todo poder pertence necessariamente, na santa Igreja de Deus, somente ao Bispo de Roma, e, supondo que pertença a ele e somente a ele, este fato não decorre necessariamente do direito divino.

11. Em outras palavras, se uma das consequências do mesmo princípio necessário também é necessária (porque é de direito divino no primeiro sentido), não se segue disso que todas as outras consequências desse mesmo princípio também sejam necessárias. Do mesmo princípio necessário (ou de direito divino no primeiro sentido) podem, de fato, decorrer consequências ora necessárias, ora contingentes (e, portanto, de direito eclesiástico apenas no primeiro sentido). (5) Vemos claramente, aliás, que o Governo divino impõe a necessidade a certas criaturas, mas implica a contingência e a liberdade de outras. E, no entanto, esse Governo permanece ele próprio necessário (e de direito divino!) em todos os seus atos, e o é precisamente como Governo de Deus, e não como o de qualquer IA (Inteligência Artificial).

12. Certamente que sim, o Papa é, por direito divino, o chefe de toda a Igreja. E daí decorre que cabe somente a ele permitir que outros participem desse poder de jurisdição que ele possui em plenitude, sendo essa plenitude de poder a de Cristo, cujo vigário é o Bispo de Roma — e a exclusividade desse poder decorre de direito divino. Disso também decorre que a transmissão de qualquer outro poder na Igreja deve depender, de uma forma ou de outra, da vontade do Papa. Mas disso não decorre necessariamente que a transmissão de qualquer outro poder na Igreja dependa unicamente da vontade do Papa, nem que essa dependência, se verificada, derive de direito divino.

13. Como já indicamos, (6) somente a sagração de um bispo, à qual está vinculada atribuição de um poder de jurisdição, depende, por direito divino, da vontade exclusiva do Papa. A sagração de um bispo, à qual não está vinculada a outorga de um poder de jurisdição, certamente depende da vontade do Papa, mas essa dependência não se baseia em direito divino.

3 – Com ou sem mandato? O sofisma do La Nef e dos eclesialistas.

14. O raciocínio do La Nefé duplamente falso. É falso porque acumula citações do Magistério sem dar a compreensão exata delas, confundindo a consagração com jurisdição (da qual falam os textos de Pio XII e todos os outros textos citados) e a sagração sem jurisdição. É falso também porque busca autorizar uma inferência indevida: sendo o Papa a cabeça de toda a Igreja por direito divino, qualquer transferência de poder que dele dependa, dependeria dele em virtude do mesmo direito divino.

15. Esse raciocínio é o seguinte: uma sagração conferida, com ou sem jurisdição, contra a vontade do Papa constitui uma violação do direito divino. No entanto, as sagrações episcopais sem jurisdição realizadas na Fraternidade São Pio X são conferidas contra a vontade do Papa. Portanto, as sagrações episcopais realizadas na Fraternidade São Pio X constituem uma violação do direito divino.

16. A primeira premissa seria comprovada: primeiro, pelos textos do Magistério e, segundo, pela inferência assinalada, a saber, que, sendo o Papa o chefe da Igreja por direito divino, toda a comunicação de todo o poder na Igreja pertence, por direito divino, ao Papa.

17. Negamos esta primeira premissa na medida em que afirma que a sagração conferida, mesmo sem jurisdição, constitui uma violação do direito divino, e a aceitamos na medida em que afirma que a sagração conferida com jurisdição constitui uma violação do direito divino. E quando a negamos, negamos, por um lado, que os textos do Magistério falem de qualquer coisa além da sagração conferida com jurisdição, e negamos, por outro lado, a inferência assinalada.

4 – O Estado de Necessidade. 

18. Embora a sagração de um bispo sem jurisdição, realizada contra a vontade do Papa, represente normalmente uma violação do direito eclesiástico, neste caso, e como tal, constitui nada menos do que um ato de desobediência, ou seja, uma grave injustiça, a injustiça aqui consistindo em não retribuir à autoridade o que lhe é devido, em consideração ao bem comum. Portanto, circunstâncias extraordinárias podem exigir tal sagração, precisamente por motivos de justiça, quando a autoridade abusa do seu poder e coloca gravemente em perigo o bem comum, isto é, quando existe o que se chama de “estado de necessidade“. Devido a este estado de necessidade, não há injustiça e, portanto, nenhuma desobediência em consagrar bispos — sem lhes conceder jurisdição — contra a vontade do Papa. De fato, o estado de necessidade é aquele em que é o próprio Papa quem comete a injustiça, negando aos membros da Igreja a oportunidade de prover para si mesmos pastores verdadeiramente bons. A gravidade dessa injustiça obriga todo bispo na Igreja a recusar ao Papa o que seria uma falsa obediência (e, na realidade, uma verdadeira cumplicidade na injustiça) e autoriza-o igualmente a prover aos membros da Igreja os pastores verdadeiramente bons de que necessitam e a sagrar bispos para esse fim, sem lhes conceder jurisdição ordinária. A chamada jurisdição de suplência, se houver, será apenas a resposta dada por esses bispos às necessidades das almas que a eles recorrem pedindo a administração dos verdadeiros sacramentos e a pregação da doutrina da verdadeira fé.

19. Em última análise, tudo depende desse estado de necessidade e da correta avaliação das circunstâncias atuais.

– “Vocês tem um mandato apostólico?” [solicita o cerimonial da sagração dos bispos, 30 de junho de 1988.]

– “Nós o temos!” [responde o D. Lefebvre.]

– “Que seja lido!”

– “Nós o temos da Igreja Romana que, em sua fidelidade às sagradas tradições recebidas dos apóstolos, nos ordena que transmitamos fielmente essas sagradas tradições – isto é, o depósito da fé – a todos os homens, em virtude do dever de salvar suas almas. Dado que, desde o Concílio Vaticano II até hoje, as autoridades da Igreja Romana têm sido movidas por um espírito modernista, agindo contrariamente à Sagrada Tradição – “não suportam mais a sã doutrina, desviando os ouvidos da verdade e voltando-se das fábulas”, como diz São Paulo a Timóteo em sua Segunda Epístola (IV, 3-5) – consideramos sem peso todas as punições e censuras impostas por essas autoridades.”

D. Lefebvre, “Texto do mandato lido em 30 de junho de 1988” em Fideliter nº 65 (setembro-outubro de 1988), p. 11.

CONTINUA….

Notas:

(1) Ver o artigo “Uma Leitura Diligente” nesta edição do Courrier de Rome.

(2) Charles Journet, A Igreja do Verbo Encarnado, Volume I, § 3 do L’Excursus II, p. 134, nota 5. Veja o artigo “O Episcopado” na edição de setembro de 2019 do Courrier de Rome.

(3) Até o século III, todos eram exercidos pelo diácono.

(4) Veja o Código de Direito Canônico de 1917, cânon 108, § 3: “De instituição divina, a hierarquia sagrada, fundada no poder de ordem, é composta por bispos, presbíteros e ministros; fundada no poder de jurisdição, inclui o pontificado supremo e o episcopado subordinado; de instituição eclesiástica, outros graus foram acrescentados.”

(5) Este ponto é enfatizado por Santo Tomás de Aquino diversas vezes na Prima pars da Summa Theologica: Questão XIV, artigos 11 e 13 (sobre o conhecimento divino); Questão XIX, artigos 6 e 8 (sobre a vontade divina); Questão XXII, artigo 4 (sobre a Providência); Questão XXIII, artigos 5 e 6 (sobre a Predestinação); Questão CIII, artigos 7 e 8 (sobre o governo divino).

(6) Veja o artigo “Uma Leitura Diligente” nesta edição do Courrier de Rome.