DA CARIDADE NAS CHAMADAS “FORMAS DE POLÊMICA”

Pe. Félix Sardá y Salvani

(…) Ele [o liberalismo] prefere acusar incessantemente os católicos de serem pouco caridosos em suas formas de propaganda. É neste ponto, como dissemos, que certos católicos, bons no fundo, mas contaminados da maldita peste liberal, costumam insistir contra nós.

Vejamos o que dizer sobre isso. Nós, católicos, temos razão neste ponto como nos demais, ao passo que os liberais não têm nem sombra dela. Para nos convencermos disso analisemos as seguintes considerações:

1°) O católico pode tratar abertamente o seu adversário de liberal, se ele o é de fato; ninguém porá em dúvida esta proposição. Se um autor, jornalista ou deputado começa a jactar-se de liberalismo e não trata de ocultar suas preferências liberais, que injúria se faz em chamá-lo de liberal? É um princípio do Direito: Si palam res est, repetitio injuriam non est: “Não é injúria repetir o que está à vista de todos”. Muito menos em dizer do próximo o que ele diz de si mesmo a toda hora. Entretanto, quantos liberais, particularmente os do grupo dos mansos ou temperados, consideram grande injúria que um adversário católico os chame de liberais ou de amigos do liberalismo?

2°) Dado que o liberalismo é coisa má, não é faltar com caridade chamar os defensores públicos e conscientes do liberalismo de maus.

Isto é, em substância, aplicar ao caso presente a lei de justiça que foi aplicada em todos os séculos. Nós, os católicos de hoje, não fazemos inovação neste ponto, e nisto nos atemos à prática constante da antiguidade. Os propagadores e fautores de heresias foram em todos os tempos chamados de hereges, tal como os autores delas. E como a heresia foi sempre considerada na Igreja mal gravíssimo, a Igreja sempre chamou de maus e malignos os seus fautores e propagadores. Lede a coleção dos autores eclesiásticos: vereis como os Apóstolos trataram os primeiros heresiarcas, e como os Santos Padres, os polemistas e a própria Igreja em sua linguagem oficial, os imitaram. Não há assim nenhuma falta contra a caridade em chamar o mau de mau; os autores, fautores e seguidores do mau de malvados; iniquidade, maldade, perversidade, o conjunto de seus atos, suas palavras e seus escritos. O lobo foi sempre chamado de lobo, e nunca se acreditou que, por interpelá-lo assim, se fizesse algo ruim ao rebanho e a seu dono. 

3°) Se a propaganda do bem e a necessidade de atacar o mal exigem o emprego de termos duros contra os erros e seus conhecidos líderes, esse emprego não tem nada de contrário à caridade. Este é um corolário ou uma consequência do princípio anterior. É preciso tornar o mal detestável e odioso. Ora, não é possível conseguir isso sem mostrar os perigos do mau, sem dizer o quanto é perverso, odioso e desprezível. A oratória cristã de todos os séculos autoriza o emprego das figuras retóricas mais violentas contra a impiedade. Nos escritos dos grandes atletas do cristianismo é contínuo o uso da ironia, da imprecação, da execração, dos epítetos depreciativos. Aqui, a única lei deve ser a oportunidade e a verdade.

Há ainda outra razão desse uso.

A propaganda e apologética populares (e são sempre populares quando são religiosas) não podem guardar as formas elegantes e temperadas da academia e da escola. Não é possível convencer o povo senão falando-lhe ao coração e à imaginação, que só se emocionam com uma linguagem calorosa, inflamada e apaixonada. Agir com paixão, quando se é movido pelo santo ardor da verdade, não é repreensível.

As chamadas intemperanças do jornalismo ultramontano moderno, não apenas são muito sutis quando comparadas às do jornalismo liberal, mas estão ainda justificadas nas páginas de nossos grandes polemistas católicos das melhores épocas, fácil é verificá-lo.

Começamos com São João Batista, que chamou os fariseus de “raça de víboras”. Jesus Cristo Nosso Senhor dirige-lhes os epítetos de “hipócritas, sepulcros caiados, geração perversa e adúltera”, sem crer com isso manchar a santidade de sua mansíssima pregação. São Paulo dizia dos cismáticos de Creta que eram “mentirosos, bestas malignas, crapulosos, preguiçosos[1]“. O mesmo Apóstolo chamou Elimas o Mago de “homem cheio de toda fraude e embuste, filho do diabo, inimigo de toda verdade e de toda justiça”.

Se abrimos a coleção dos Padres, encontramos por toda parte traços dessa natureza. Eles os utilizaram sem hesitar, a cada passo, na sua eterna polêmica com os hereges. Citaremos tão só uma e outra dessas frases. São Jerônimo, discutindo com o herege Vigilâncio, lançou-lhe em face sua antiga profissão de taberneiro, dizendo-lhe: “Desde tenra infância aprendestes outras coisas que a teologia e te dedicaste a outros estudos. Averiguar ao mesmo tempo o valor das moedas e dos textos da Escritura, degustar os vinhos e ter a inteligência dos profetas e apóstolos não é algo que um mesmo homem possa executar com eficiência”. É fácil notar que o Santo polemista tinha afeição a tais modos de desautorizar o adversário. Noutra ocasião, atacando o mesmo Vigilâncio, que negava a excelência da virgindade e do jejum, pergunta-lhe com seu humor usual “se pregava assim para não perder o consumo de sua taverna”. Oh! Quantas coisas teria dito um crítico liberal, se um de nossos polemistas tivesse escrito assim contra um herege de hoje!

Que diremos de São João Crisóstomo? Sua famosa invectiva contra Eutrópio não é comparável, no que toca o caráter pessoal e agressivo, às mais cruéis invectivas de Cícero contra Catilina ou contra Verres? O melífluo Bernardo não era certamente de mel quando tratava os inimigos da fé. Dirigindo-se a Arnaldo de Bréscia, grande agitador liberal de sua época, chama-o com todas as letras de “sedutor, vaso de injúrias, escorpião, lobo cruel”.

O pacífico Santo Tomás de Aquino esquece a calma de seus frios silogismos para lançar contra seu adversário Guilherme de Saint-Amour e seus discípulos as violentas apóstrofes que seguem: “Inimigos de Deus, ministros do diabo, membros do Anticristo, ignorantes, perversos, réprobos”. Jamais o ilustre Luís Veuillot chegou a tanto! O seráfico São Boaventura, tão pleno de doçura, increpa Geraldo com os epítetos de “imprudente, caluniador, espírito malicioso, ímpio, impudico, ignorante, embusteiro, malfeitor, pérfido e insensato”. Nos tempos modernos vemos aparecer a figura encantadora de São Francisco de Sales, que, por sua distinta delicadeza e sua admirável mansidão, mereceu ser chamado de imagem viva do Salvador. Credes que ele mostrou alguma consideração pelos hereges de seu tempo e país? Ah! Perdoou-lhes as injúrias, cobriu-lhes de benefícios, chegou até a salvar a vida de quem tinha atentado contra a sua. Chegou a dizer para um rival: “Se me arrancásseis um olho, não deixaria com o outro de olhar-vos como meu irmão”; mas com os inimigos da fé, ele não mostrava nenhum tipo de consideração. Perguntado por um católico se podia falar mal de um herege que difundia suas doutrinas venenosas, respondeu-lhe: “Sim, podeis, contanto que não digais dele coisa contrária à verdade, e apenas conforme o conhecimento que tenhais de seu mau modo de viver: falando do duvidoso como duvidoso, e segundo o grau maior ou menor de dúvida que sobre isso tenhais”.

Falou mais claramente em sua Filotéia, livro tão precioso como popular. Diz assim: “Os inimigos declarados de Deus e da Igreja devem ser vituperados com toda a força possível. A caridade obriga que se grite: ‘olha o lobo!’, quando um lobo se introduz no rebanho, e mesmo em qualquer lugar em que se encontre”.

Será então necessário dar um curso prático de retórica e crítica literária aos nossos inimigos? Eis o que há sobre a tão decantada questão das formas agressivas dos escritores ultramontanos, vulgo católicos verdadeiros. A caridade nos proíbe fazer aos outros o que razoavelmente não queremos para nós mesmos. Note-se o advérbio razoavelmente, no qual está toda a essência da questão.

A diferença essencial entre o nosso modo de ver este assunto e a dos liberais consiste em que estes consideram os apóstolos do erro como simples cidadãos livres, usando de seu pleno direito quando opinam em matéria de religião diferentemente de nós. Assim, se creem obrigados a respeitar essa opinião e não a contradizer, senão nos termos de uma discussão livre. Nós, ao contrário, não vemos neles senão inimigos declarados da fé que estamos obrigados a defender. Não vemos em seus erros opiniões livres, mas heresias formais e culpáveis, tal como ensina a lei de Deus. Com razão, pois, diz um grande historiador católico aos inimigos do catolicismo: “Vós vos fazeis infames com vossas ações e eu acabarei de cobrir-vos de infâmia com meus escritos”. Com igual teor a Lei das Doze Tábuas ordenava a viril geração dos primeiros tempos de Roma: Adversus hostem aeterna auctoritas esto, que se pode traduzir assim: “contra os inimigos, guerra sem tréguas”.

[fonte: El liberalismo es pecado, Capítulo XXII, 1887]

Tradução e Fonte: Permanência


[1] Tt 1, 12.