O texto de Gustavo Corção que publicamos aqui é parte de um ciclo de conferências realizadas em Belo Horizonte na década de 1950. Apesar de não estar completo, não deixa de ser um exemplar importante das atividades do grande escritor católico, numa época em que Corção era requisitado para constantes palestras, entrevistas e artigos. Depois o mundo girou, os polos foram deslocados, os homens tornaram-se cúmplices da Revolução num mundo evolutivo e estagnado no nada. Já não lhes interessava a firmeza da verdade e da fé que Gustavo Corção guardou e ensinou até a morte.
Editora Permanência
VI Conferência de Belo Horizonte
Como ninguém aqui ignora, creio eu, a Igreja preceitua que os seus filhos, ao menos uma vez por ano, confessem e comunguem, isto é, que ao menos um dia em trezentos e sessenta e cinco dias se lembrem de usar o Sangue de Cristo, derramado para a nossa salvação. Esta é a condição, é o mínimo que Deus, por sua igreja, exige de nós, para que sejamos contados entre os membros vivos do Corpo Místico do Cristo.
Para quem está habituado à vista da Igreja, e usa de seus bens com assiduidade, esse mínimo se afigura esquisito. Como é possível amar a Deus e somente uma vez, em trezentos e sessenta e cinco dias, procurar o socorro de seus sacramentos? Como é possível amar de tão longe, e com tão descuidado dever? E, sobretudo, como é possível agüentar a pressão do mundo, a atração das pompas, a sedução do pecado sem o socorro particularmente eficaz da Penitência e da Eucaristia?
Na verdade, se me perguntarem, eu direi que não acho possível tão extraordinário equilíbrio. Atrevo-me a dizer que esse mínimo me parece insuficiente, e que eu tremeria pela sorte de minha alma se deixasse correr tamanha distância entre mim e o meu Salvador. Mas como se explica então esse empenho que todos nós, em obediência à Igreja, temos de conquistar mais um irmão para esse mínimo que nos parece insuficiente e até temerário?
A essa dificuldade responderemos de três modos. Em primeiro lugar, diremos que atrás dessa pequena exigência todos nós escondemos — segredo de polichinelo! — a malícia de uma esperança: o mínimo poderá frutificar em generosidade, e o fiel que viveu distraído, embora ainda fiel, poderá neste encontro que hoje preparamos, render-se à centelha divina, e tornar-se mais assíduo e mais amigo de seu grande Amigo do Céu.
Em segundo lugar, com uma esperança ainda maior, nós pensamos que esse mínimo, para muitos, seja uma reconciliação, uma conversão, um renascimento para a vida cristã: e nesse caso já não admira que o passo seja mínimo porque tudo o que nasce, nasce pequenino. O próprio Jesus nasceu pequenino; e como cresceu nos braços de Maria poderá crescer também nos vossos corações. E neste caso, alegrem-se os que renascem, exultem os que se reconciliam, porque haverá maior alegria no céu por essa primeira confissão, por essa primeira comunhão, do que pelas nossas trezentas e sessenta e cinco.
Em terceiro lugar eu direi que esse mínimo é um máximo, uma espécie de máximo. Mas para bem entenderem esse paradoxo nós vamos começar por torná-lo ainda mais forte.
Diz-nos o Evangelho que nós devemos amar a Deus de toda a alma, de todo o entendimento, de todo o coração. Diz-nos também o Cristo que nós devemos ser perfeitos como nosso Pai celestial é perfeito. Como conciliar então estes preceitos tremendos com aquela pequenina exigência da Igreja? Como entender que, fazendo tão pouco, já estaremos cumprindo aqueles enormes mandamentos?
Tentarei explicar-lhes isto por meio de uma definição e de uma figura. A Sagrada Doutrina nos ensina que o pecado mortal é aversão a Deus e conversão aos bens do mundo. Estar em pecado mortal é, portanto, o mesmo que estar de costas para Deus. É uma atitude total, que marca uma preferência e uma aversão. Converter-se, ao contrário, é voltar-se para Deus, e é começar a caminhar nesta nova direção que aponta para o pólo da vida.
Há portanto, na vida religiosa, esse primeiro ato, essa primeira escolha de uma direção, esse primeiro passo que é mínimo como avanço, mas que já tem em si um máximo de resolução, de revolução, de orientação, de escolha. E é nesse sentido que eu lhes dizia há pouco que a comunhão do preceito, sendo um mínimo, já era de certo modo um máximo.
Mas não termina aqui, nessa reviravolta, o problema da vida religiosa. O pecado mortal foi vencido por essa mudança radical de atitude, por esse infinito de escolha que depende de um pequeno gesto humilde. Amanhã ou depois, se ficarmos parados, teremos novas distrações e novas seduções. É preciso caminhar na boa direção escolhida, e é preciso caminhar depressa e com firmeza. Já temos a direção, mas o caminho está cheio de obstáculos, e nós mesmos, às vezes, voluntariamente retardamos os passos; e voluntariamente procuramos um obstáculo que nos atrase. Estamos então fugindo de Deus por retardamento consciente e voluntário, embora sem voltar-lhe as costas. E é nisto que consiste o pecado venial, essencialmente diverso do pecado mortal, mas infelizmente, e quase sempre, o seu introdutor e preparador.
Hoje, porém, eu quero aqui encarecer a importância infinita dessa pequena reviravolta de amor que Deus espera dos que se afastaram de seus sacramentos. E torno a dizer — amigos — que quase invejo esse grande e perigoso privilégio que fará de vós os festejados recém-nascidos do céu.
Deus marcou encontro conosco. Já muitas vezes vos disse que os homens usam sinais para os encontros aprazados. Nós costumamos dizer assim: estarei à sua espera na esquina da Ouvidor com a Avenida, às tantas horas. E observem que as coordenadas humanas são geralmente marcadas num cruzamento, isto é, num lugar que tem a marca da cruz. Deus também espera por nós na sua grande encruzilhada, isto é, nos sinais derivados da cruz. Ele está à nossa espera, no lugar e na hora da Igreja. E chega sempre primeiro. E espera que nós nos dignemos a voltar o rosto, a girar o coração e converter a alma.
Ele espera por nós, no seu banquete, na sua festa, mas primeiro nos adverte que estejamos vestidos com a túnica branca da sua graça. E é Ele mesmo, ainda Ele, que nos espera para os preparativos do perdão.
Deus marcou encontro conosco no sacramento do perdão. Pensai um pouco nesse primeiro convite. Quem haverá por aí, tão duro de coração, que não tenha fome e sede de perdão? Quem haverá por aí, tão certo de si mesmo, que possa viver sem a necessidade do perdão? Ah! A nossa vida… Nós vamos andando, andando, e deixamos para trás nossas faltas. Assim como as vamos esquecendo, elas nos parecem menores. Mas por quê? Se eu hoje matar um homem, e amanhã esquecer, estarei perdoado? Nós vamos andando, e enterramos as nossas faltas. Mas hoje vos pergunto, como há doze anos a mim mesmo perguntei: de que me vale o enterro de minhas culpas? Nem o famoso cemitério de Genova, com seus magníficos mausoléus, seria bastante espaçoso para o luxo funerário de minhas faltas. Onde iria eu buscar a paz, se trazia um monturo em mim mesmo arquivado? Esquecendo? Mas a memória brinca dentro de nós: quando a buscamos é nuvem; quando a evitamos é pedra. A memória é um quisto. E eu andava com o fibroma na alma?
Não vou aqui contar-vos meus desconcertos, não vos assusteis. Imaginai que estou apenas explicando ou falando de um outro. E torno a vos perguntar quem me aliviará desse peso, do que fiz, do que não fiz? Quem me livrará das sombras que me perseguem chorando? E aquele pobre homem que num certo dia, num certo lugar, eu devia ter ajudado e abraçado, quem mos devolverá, o dia, o lugar, o pobre? E aquela velhinha dormindo enroscada como um bicho, no chão, na rua, e que eu não levantei, e que eu não socorri, porque não era a minha mãe, embora pelos cabelos brancos parecesse, sim, pelos cabelos brancos espalhados nos trapos? E aquele menino Jesus que um dia eu vi passar no colo de uma mendiga, imagem suja, miserável, e que me olhou, a mim!, com os olhos de abismo, e que me sorriu, para mim!, lá do fundo, do fundo da sua inocência? Quem me devolverá esse menino, quem me dará a força de um São Cristovão, para carregá-lo no meio das águas?
Grande coisa essa paz de consciência de quem toma juízo e se aposenta na carne! Fresca tranqüilidade esta que está mais na caiação do que no conteúdo do sepulcro! Há gente que diz assim: eu faço isto e aquilo, pago minhas dívidas, cumpro meus compromissos, para andar de cabeça erguida. E a velha? E o pobre? E o menino Jesus? E a coleção de horrores em que nem me atrevo a tocar?
Quem? Quem me desembaraçará deste corpo de morte? A quem hei de chamar, do fundo do despenhadeiro, para dizer que meus ossos me consomem, que não há nada na minha carne que não doa, que meus dias fogem como sombras que se alongam, que caem cinzas no que como e no que eu bebo? A quem pedir a pureza que perdi e a brancura de neve que manchei? Quem poderá entre os vivos dizer-me palavras de alegria que me penetrem a medula dos ossos doloridos? Quero um auxílio, um auxílio para me levantar, e tenho pressa, pressa da mão estendida, da face atenta, do hissopo que lava, da palavra de perdão e de alegria…
Os homens também perdoam. Eu deveria então sair por aí afora pedindo perdão dos transeuntes espantados, na esperança de encontrar os ofendidos por mim. Mas o perdão dos homens, que já é uma grande coisa, não dissolve as pedras que eu carrego. Quando muito apago neles o ressentimento, o rancor, o que já é uma grande coisa; mas não destrói a culpa, não penetra, não lava, não queima. E na maior parte das vezes o pedido de perdão se perde no deserto, ou ecoa nas paredes do quarto. E se nós sairmos por aí, com essas brasas na mão, quem quererá recebê-las? Quem quererá pagar por nós, a fundo, até o sangue, até a morte?
Ora, Deus marcou encontro conosco no Sacramento do perdão, que corre diretamente da Cruz e do Sangue do Salvador. O que é mais fácil, dizer a um paralítico “levanta-te e anda” ou dizer “perdoados são os teus pecados”? Nosso Senhor respondeu a essa pergunta mandando o paralítico levantar-se, provando assim como é fácil, para Ele, o perdão dos pecados. Realmente fácil. Extraordinariamente fácil. Divinamente fácil. Porque a misericórdia, segundo Santo Tomás, é o que há de mais divino em Deus. Poderíamos talvez dizer que a misericórdia é o lado exterior, voltado para nós, do que há de mais interiormente divino em Deus — e que é a Sua alegria. “Há mais alegria no céu para um pecador que se converte do que para noventa e nove justos que perseveram”.
O perdão de Deus é a fonte escondida de nossa alegria, dessa alegria cristã, dessa alegria guardada, dessa alegria profunda que ninguém nos pode roubar. E assim fica provado que aquele pontual indivíduo que faz da cabeça erguida uma norma está enganado; o grande mistério, de vida, de alegria, é justamente o da cabeça curvada.
O perdão de Deus é efetivo, enquanto o dos homens é somente afetivo. É penetrante. É calcinante. É dissolvente. Basta um gemido sincero. Basta uma disposição mínima, para que o padre trace em nossas cabeças o mais fácil dos gestos, e Deus opera em nós a mais fácil de suas obras.
Já no Batismo recebemos o perdão da água. Recebamos agora no confessionário o perdão das lágrimas e do sangue, para que não nos fique somente — na melhor das hipóteses — o perdão do fogo no purgatório.
*
Vou falar-vos da morte. E porque não? Falei-vos da tristeza e da alegria, porque não falarei também do temor. Nossa alma tem paixões que nos são próprias, que fazem parte da riqueza de nosso ser. Não podemos viver sem paixões. Por mais que façam os inventores de um novo paraíso terrestre feito de prazeres, nós não podemos viver sem tristezas, sem temores, sem cóleras. Essas paixões, em si mesmas são neutras, moralmente neutras. Há boa e má alegria. Boa e má tristeza. E assim como há um temor degradante — que se chama covardia — há também um temor bom, um temor salutar, que é o princípio da sabedoria.
Para educar, para aconselhar, para servir, nós devemos apelar, em justa medida e em momento oportuno, para as paixões da alma.
Vou, pois, falar-vos da morte, esse fato trivial e terrível. Freqüentemente esquecemos que somos mortais. De tal modo vivemos divididos de nós mesmos, exteriorizados, distraídos, que chega a ser preciso um dom de Deus para despertar em nós a idéia da morte.
E, no entanto, não passa mês, ou semana, ou dia que não se veja passar na rua o triste e ridículo aparato funerário. Agora mesmo, enquanto aqui estamos, há milhares de agonias pelo mundo. Em cada palavra que pronunciamos morre um homem. Morreu um. Outro. Outro. Se pudéssemos ver numa janela essa goteira de corpos tombados, um por um, monotonamente, teríamos talvez uma impressão mais viva de nossa fragilidade. Conhecem talvez a história que aconteceu com S. João Bosco. Estava ele pregando a diversas pessoas, de todas as idades e condições, quando de repente parou de falar, e após um silêncio recolhido explicou: “Nosso Senhor acaba de me dizer que um de nós morrerá hoje”. E morreu, efetivamente, o mais moço.
Não vou anunciar-vos o mesmo. Não recebi nenhum aviso de Nosso Senhor. Mas quem nos garante, ao contrário, que todos nós aqui presentes estaremos vivos amanhã.
A morte chega de repente. Às vezes dá um prazo mais ou menos longo. Mas às vezes não concede um segundo. E o corpo que ia andando cheio de projetos de futuro cai como um fardo. E então? E então nós nos queixamos, se ao menos temos um segundo para nos queixarmos. Queixamo-nos que fomos pegos desprevenidos para esse encontro com a morte. E teremos, ai de nós, a amargura de pensar que a justiça divina foi pérfida conosco, esquecendo que foi longa a paciência da divina misericórdia. Ele chega de repente como Juiz, é verdade; mas não é verdade também que esperou a vida inteira como amigo?
Deus marcou encontro conosco. Vamos pois ao encontro da misericórdia que está à nossa espera, no lugar e na hora marcada, no santo tribunal do fácil perdão.
Quando a justiça chega de repente poderá alguém queixar-se? Não. Não poderá, porque a presteza e a rapidez são próprias da justiça. Nós mesmos somos os primeiros a reclamar quando ela tarda, nos casos em que nos parece que ela nos seja favorável. Como então estranhar que seja súbita e inesperada a justiça divina, se é tão demorada a misericórdia?