— Mamãe, você está fora da realidade!… exclamou com admiração e carinho a boa filha que ainda entretém sentimentos afetuosos por sua mãe, mas não esconde o pasmo que lhe causa seu espantoso alheamento às “realidades”.
Este grito de toda uma geração contra tudo o que encontrou já feito, já preparado e já servido nas mamadeiras é essencialmente um grito de ingratidão organizada, a serviço da onda de desordens que se avolumam contra o IV mandamento e, portanto, contra seu Autor. Mas antes, tal gravidade é uma proclamação universal da tolice, da bobice que dá o nome de “realidade” às coisas, aos fatos, aos acontecimentos, aos procedimentos que querem se impor por suas “existências” ao mesmo tempo que se furtam a qualquer juízo de valor em termos de bem e de verdade. Diante desse ídolo — “o que todos fazem” — a quase totalidade dos moços de nosso tempo ficam possuídos de um critério infalível que lhes dá uma coisa de um brutal determinismo físico que eles confundem com liberdade, por lhes parecer que estão sempre fazendo o que querem, quando, na verdade, nunca estão propriamente fazendo nada, mas fazendo o que todos fazem. Pobres vitimas de uma perversa tradição, julgam-se herdeiros opulentos, quando não passam de portadores de taras acumuladas por uma corrente histórica que, em nome de uma categoria denominada “liberdade” e desde a denominação ambígua, passa a relativar e a contestar a verdade e o bem.
O liberalismo produziu este fruto que passa de verde a podre, sem amadurecer. O melhor exemplo deste século está no amontoado de assombros disparates produzidos principalmente pelos povos de língua inglesa que, sempre em nome dos mais filantrópicos princípios, e dos mais desumanos erros, fizeram de nosso triste século este estuário de desordens de incalculáveis conseqüências. Vimos em poucos anos desmoronar-se o maior império de nossa historia. E por quê? Que fizeram os ingleses para em tão pouco tempo perderem o Império? Combateram heroicamente, quando uma conjuração de traições alheias e próprias os deixaram isolados diante da máquina de guerra alemã que se tornara superpoderosa, não apenas pelo enérgico trabalho dos alemães, mas pela enérgica obstinação do mundo liberal no consentimento e na promoção da anarquia. Depois desse combate heróico, venceram os alemães e russos, mas nessa hora de vencer, ingleses e norte-americanos fizeram prevalecer a obstinação da desordem, da anarquia liberal sobre as virtudes patrióticas e militares. Como resultado dessa atitude, viu-se este assombro: o inimigo, já vencido, é admitido como vencedor. E a Rússia constrói o seu imenso império ainda mais depressa do que a Inglaterra perdeu o seu. E hoje vemos o desmoronamento dos Estados Unidos acelerar o processo de desmoronamento universal da civilização.
Sob as frágeis categorias políticas e sociais com que os espíritos fracos analisam este limiar do Apocalipse, o instinto cristão sente a presença de correntes históricas profundas dirigidas pelos inimigos de Deus e do gênero humano. A Igreja de Cristo é invadida pelos piores malfeitores saídos de sua própria hierarquia, e uma anti-igreja se ergue contra ela, a lhe gritar que ela, a Mãe, a Mestra, está fora da realidade.
Voltemos ao princípio: a idéia de soberanizar a “realidade” que se impõe por sua própria existência, deixando o homem fora da possibilidade de atuar, de reagir em termos de verdade e de bem, é o mais vergonhoso erro metafísico e moral de toda a história. Se nós conseguíssemos gritar aos moços: — Reajam! Sejam homens! — acordem, porque vocês estão imersos numa realidade que está fora da Verdade e do Bem! — se conseguíssemos o aparelho acústico ou publicitário para tal grito, receio que logo, em poucos minutos, o perdêssemos, arrancados de nossas mãos por uma sinistra maioria que hoje existe no mundo, e logo usaria o dito aparelho para denunciar nossa alienação: — Eles estão fora da realidade!
Deve ser isto que hoje impede a verdadeira Igreja de falar, de aparecer ao mundo em sua santa visibilidade, decorrente do Verbo Encarnado; deve ser este dilúvio de erros que dá à caricatura da Igreja, dirigida pelos inimigos da Una e Santa, a força publicitária de se impor como sendo a válida, a Igreja da “Realidade” que usurpa o lugar da Igreja de Verdade e do Bem, denunciando-a aos berros: “Ela está fora da realidade”.
A mocinha que discute com a mamãe, em termos de “realidade”, se acaso conseguisse ler estas linhas, e chegar até este ponto, se tivesse mantido em sua alma profundidades capazes de tão tremendo espanto, seria capaz de desmaiar, com a tomada de consciência de sua abismal alienação. Imaginemos que choque produziria nas profundezas da alma este simples pensamento: — Então, na verdade eu vivo tão imersa numa “realidade” imposta por sua simples existência que não me sobra nada para ser eu mesma, um ser capaz de negar e capaz de adorar uma Verdade que seja a sua própria existência e que realmente, por tudo que em mim tenho de melhor, se me impõe com exigência de conhecimento e de amor.
O fato é que a passividade moral diante do quadro de costumes que se impõe tiranicamente é uma das formas mais repugnantes de aversão a Deus que coletivamente a história já produziu. Os sedutores, contestadores do IV mandamento, que tanto exaltaram os “jovens”, conseguiram deprimi-los a uma extrema chatice. Nunca, em tempo algum, foram tão pouco alegres, tão pouco sérios, tão pouco ardorosos, tão pouco jovens.
Imagino, com pavor, que nas formas extremas de degradação, que a época generosamente oferece, os pobres massificados, os pobres desossados, nos vislumbres de nostalgia moral, lá se consolem, com este pensamento lúgubre: — estou presente na realidade de meu tempo.
A esperança que me dão todas as vozes verdadeiramente católicas é a de que Deus não permitirá que a vitória de Satã seja total. Já nos assombra a paciência com que Ele suporta a insolência de sua criatura que ousa esticar-se para injuriá-lo, para negar-lhe obediência. Temos vontade, às vezes, de incitá-los: depressa! depressa! mais! coragem!
E ao mesmo tempo, de mistura com o temor e com a impaciência, nos invade, quando pensamos na iminência do fim, o mesmo sentimento que Leon Bloy confessou, na hora da agonia: uma imensa curiosidade.
08/08/1974