MARX SERIA CONSERVADOR HOJE?

Camiseta Tio Karl Marx | VandalFonte: Ricognizioni – Tradução: Gederson Falcometa

Um fantasma assombra o dourado mundo progressista: a suspeita de que Marx hoje não se daria bem com a atual esquerda político-cultural “fúcsia”, do Partido Democrata de marca Schlein ao espanhol Sànchez até mesmo as brigadas woke americanas e aos autodenominados Social justice Warriors da extrema-esquerda financiados por bilionários. Há anos a tese é tematizada na França, sobretudo por Jean Paul Michéa, que se define como socialista, mas não “de esquerda”. Agora a desconfiança ecoa nas considerações de uma pensadora suíça, Elena Louisa Lange. Um artigo no semanário alemão Die Weltwoche causou sensação. “Vale a pena perguntar o que Marx, um lutador contra a censura prussiana, pensaria da cultura do cancelamento da esquerda hoje, o que Marx pensaria dos Verdes alemães, cuja política é baseada em um novo coletivismo centrado no vírus ou na mudança climática.” E em um belicismo desatinado, representado pela ministra Annalena Baerbock, que contradiz décadas de pacifismo de arco-íris.

A Lange identifica o momento decisivo da esquerda ocidental na contracultura nascida na década de 1960 e na Escola de Frankfurt. Os frankfurtianos partiram do pensamento de Marx, mas para revira-lo como a uma meia, até perderem o interesse pelo elemento básico, a abolição da propriedade privada como elemento fundamental da libertação da humanidade. O próprio internacionalismo era íntimo deles: optaram por um cosmopolitismo abstrato, cuja saída paradoxal era o subjetivismo mais exaltado, ponto de encontro com o liberalismo. Herbert Marcuse, figura chave daqueles anos, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, embora fortemente marcados pelo marxismo clássico, nunca se interessaram “pela emancipação social das classes trabalhadoras. Adorno e companhia, influenciados pela experiência de Auschwitz, substituíram a luta de classes pela política de identidade judaica, Marcuse viu o sujeito revolucionário nos danados da Terra (Frantz Fanon), no Terceiro Mundo, nas mulheres, nos negros e nos homossexuais.”

Não concordamos com o julgamento relativo a Adorno e Horkheimer: os dois certamente foram influenciados pela raiz judaica – comum a todos os frankfurtianos – mas seu alvo polêmico era sobretudo a sociedade autoritária – símbolo de uma espécie de eterno fascismo (A personalidade autoritária ) e a cultura de massa (Dialética do Iluminismo), que detestavam em nome de um intelectualismo elitista. A falta de interesse pelo destino do proletariado e seus problemas concretos é evidente. Na verdade, eles acreditavam que a classe trabalhadora não era nada revolucionária, mas sim interessada em melhorar sua condição econômica e social, portanto conservadora.

Nisso, concordamos com a tese de Lange. “Para Marcuse, esses párias, os marginalizados da terra, numa espécie de reedição do conflito cultural maoísta, deveriam ter o papel histórico de romper com os velhos padrões e formar um novo homem contra o predomínio cultural das ideias burguesas de felicidade: uma família branca e heteronormativa, televisões coloridas, carros e casa própria. Desde então não se falou mais na emancipação de todas as pessoas; isto é, da libertação da opressão em geral. Na ideia da Nova Esquerda, a justiça só existiria quando os marginalizados tivessem conquistado um lugar na mesa do poder”.

Igualmente dura é a rejeição à classe de acadêmicos e intelectuais com altos rendimentos e vida confortável, acostumados ao privilégio, a quem chamam de grupos sociais opressores que vivem muito pior do que eles. A ideia de dividir as pessoas em opressores e oprimidos com base na cor da pele, gênero e preferências sexuais, e não de acordo com seu papel na estrutura de poder, contradiz toda a filosofia política de Marx. Para Marx, declarar o homem branco e heterossexual como inimigo, mesmo que seja apenas trabalhador, em vez de querer melhorar a vida de todos, seria sinal de uma fundamental degeneração política”, afirma Lange.

As esquerdas que encarnam essa degeneração estão hoje nos corredores do poder: uma classe cheia de profissionais, professores, intelectuais, privilegiados que Marx “certamente teria acusado de socialismo pequeno-burguês e contra quem teria lutado.” Lange lembra que Marx era um ferrenho inimigo da tecnocracia, também convencido de que a liberdade coletiva é impossível sem a liberdade individual, e por isso ela acha que “ele teria se oposto aos impulsos do coletivismo totalitário que vimos surgir com a crise do coronavírus e as mudanças climáticas”.

Possível, ainda que a ideia de ditadura fosse aceita por Marx, mesmo como uma fase transitória na construção da sociedade comunista. É verdade que “teve de fugir da Alemanha em 1849 devido à perseguição do Estado, e hoje teria destino semelhante. Mas não seriam os conservadores que o perseguiriam, mas os homens de esquerda”, conclui Lange e é a afirmação mais perturbadora. A filósofa suíço é partidária da controversa política alemã Sahra Wagenknecht, formada na DDR, cujo programa combina medidas contra a desigualdade social com outras consideradas conservadoras.

A Wagenknecht é autora de um livro com um título significativo, Freiheit gegen kapitalismus (liberdade contra o capitalismo) e do mais conhecido contra a esquerda neoliberal, no qual são discutidas as mesmas teses de Lange. “Este livro – escreve – surge num clima político em que a cultura do cancelamento substituiu os confrontos leais. Eu faço isso sabendo que posso acabar cancelada também. Em última análise, porém, Dante, na Divina Comédia, aos que em tempos de mudanças profundas se abstém, aos preguiçosos, reservou o nível mais baixo do Inferno.

O partido em que militava – Die Linke, a esquerda- caiu no “neoliberalismo progressista” que contaminou todas as esquerdas ocidentais, as quais botaram na lata de lixo da história noções como a luta de classes e a luta contra as desigualdades para se tornar uma esquerda da moda , defensor de um estilo de vida privilegiado de uma pequena elite – representada pela nova classe média de graduados das grandes cidades – inspirado nos dogmas do cosmopolitismo, globalismo, europeísmo, multiculturalismo, ambientalismo, identitarismo vítimistas de mil minorias e do politicamente correto .

Uma elite que nada tem a dizer sobre o empobrecimento da classe média e a exploração dos trabalhadores, que não apenas promove os interesses dos vencedores da globalização, mas despreza abertamente os perdedores, ou seja, as classes populares e seus valores, acusados de fascistas , racistas, retrógrados, machistas, nacionalistas e populistas. Uma elite cada vez mais restrita em termos eleitorais, que exerce uma hegemonia muito forte sobre a mídia e sobre a cultura. Em oposição à esquerda dos privilegiados, Wagenknecht esboça uma visão radicalmente alternativa, um programa baseado em valores que não são individualistas, mas comunitários – incluindo conceitos abominados pelos progressistas como pátria, comunidade e mérito – capaz de definir identidade, não mais do que uma minoria intelectualista, mas de uma maioria de pessoas concretas.

O sociólogo César Rendueles sublinha que para Marx a luta contra as desigualdades nunca foi uma questão de abrir mão de liberdades, mas de aprofundá-las. “O mercado de trabalho foi criado a sangue e fogo, aproveitando as circunstâncias históricas favoráveis com o objetivo de criar uma classe social majoritária com liberdades reprimidas: suficientemente independentes para que os empregadores se desvencilhassem de sua subsistência, suficientemente subordinados e politicamente desarticulados para garantir uma oferta suficiente de mão-de-obra barata todas as manhãs.Sem libertação dos grilhões. “Marx estava tão ou mais preocupado com a ausência de liberdade nas sociedades capitalistas do que com a desigualdade, na qual as normas democráticas e a autonomia dos cidadãos são suspensas. É ridículo fingir que é soberana uma sociedade em que as grandes empresas têm um voto implícito que pesa mais do que o dos seus parlamentos nacionais”.

As perguntas sobre Marx dos marxistas pensantes estão se multiplicando. O que você pensaria da miséria de países “socialistas” como Cuba, Venezuela e Nicarágua? Como você julgaria a China e seu sistema autoritário, uma mistura de Orwell (1984) e Huxley (Admirável Mundo Novo)? Marx seria censurado pela esquerda woke pela relação inadequada com sua empregada e pelos textos eurocêntricos? Para Elizabeth Duval, uma filósofa muito jovem, Marx é apenas um entre tantos referências de esquerdas confusas, um microcosmo da subcultura sectária e auto-referencial. Certamente Marx concordaria em repudiar o crescente divórcio cultural entre a esquerda acadêmica e as classes populares. “A militância universitária tornou-se burguesa: parece um teatro de revolução”, explica, falando de suas experiências na Sorbonne. Não foge do debate Slavoj Zizek, marxista crítico com a opressão do comunismo real vivido na ex-Iugoslávia. Zizek sublinha a crescente insatisfação que produz o globalismo real, em que o capitalista “na sua avidez ilimitada de prazeres imaginários renuncia a todos os prazeres reais”.Clara referência às miragens do metaverso e ao poder das redes sociais em que uma vida paralela substitui a realidade, sempre mais insatisfatória, incapaz de corresponder às enormes expectativas impostas pelo sistema.

Quem sabe se Marx revivesse seria “de esquerda“. Certamente nunca usou o termo; esteve sempre ao lado das classes baixas (às quais não pertencia…), que hoje fogem desse rótulo político. Afinal, as esquerdas hegemônicas não são mais majoritariamente marxistas ou não o são de fato. Paradoxalmente, fingem de torná-lo as elites, obcecadas pela vontade de domínio: nada terás (ou seja, nada serás) e serás feliz, mas o slogan de ordem do Grande Reset aplica-se a nós, plebeus em excesso . Eles têm o direito de possuir tudo, também as nossas pessoas e até mesmo o foro interior que chamamos de consciência. Eles cumpriram o admirado juízo de Marx pela classe revolucionária “burguesa” (hoje diríamos os hiperpatrões globalistas), expresso no manifesto comunista de 1848.

“A burguesia desempenhou um papel altamente revolucionário na história. A burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas onde quer que tenha tomado o poder. Rasgou impiedosamente os variados laços feudais que ligavam a pessoa ao seu superior natural e não salvou nenhum outro vínculo entre os indivíduos além do simples interesse, a crua e pura prestação de contas. Ele afogou nas águas geladas do cálculo egoísta os sagrados bramidos da piedosa paixão, do entusiasmo cavalheiresco e da melancolia filisteu. Dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca e, no lugar das inúmeras liberdades patenteadas e merecidas, afirmou a única liberdade, a do comércio, uma liberdade sem escrúpulos. Em uma palavra, em vez de uma exploração escondida por ilusões religiosas e políticas, estabeleceu uma exploração aberta, sem vergonha, direta e seca.

A burguesia despiu de sua aparência sagrada todas as atividades até então honradas e consideradas com piedosa humildade. Ela transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta e o homem de ciência em seu salário. Ela dilacerou as relações familiares o seu tocante véu sentimental para reconduzir-lhe a uma pura questão de dinheiro. “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, então as próprias relações de produção, portanto todas as relações sociais. A transformação ininterrupta da produção, a sublevação constante de todas as instituições sociais, a eterna incerteza e o eterno movimento distinguem a época da burguesia de todas as épocas anteriores. Todos os relacionamentos estabelecidos e oxidados são subvertidos, com o seu séquito de representações e opiniões há muito honrado. E todos os novos relacionamentos envelhecem antes que possam ser estruturados. A necessidade de um escoamento cada vez maior para seus produtos lança a burguesia para a conquista de toda a esfera terrestre”.

Análise perfeita, exceto que para Marx este é o prólogo necessário para o estabelecimento do comunismo. A missão falhou, mas apenas na forma marxista. Mais astutos, os frankfurtenses imaginaram e forneceram as bases teóricas para um novo capitalismo que não é mais “burguês”: comunismo em baixo, feudalismo em cima, com povos destruídos, desidentificados, reduzidos a figurinhas spectrais as quais fornecem com modalidades modernas o antigo panem et circenses. Pão em quantidades modestas por meio de uma renda universal informatizada, para ser gasto onde, como e nos prazos por eles estabelecidos. Circenses, isto é, diversões vulgares, circunscritas à esfera pulsional, verdadeiros vícios. A verdade é que marxismo e liberalismo são filhos da mesma mãe. Portanto, não, o Marx revivido não seria nem se consideraria conservador. Talvez continuasse marxiano sem se tornar marxista, árvore espúria na floresta liberal, onde o enxerto sufocou a raiz da liberdade.

Roberto Pecchioli