MATRIMÔNIO MISTO

mistoMuito faltam neste ponto, por vezes pondo em perigo a própria salvação eterna; os que temerariamente contraem matrimônio misto, de que a providência e o amor materno da Igreja afasta os fiéis por gravíssimas razões, conforme se deduz claramente dos muitos documentos compreendidos naquele cânon do Código onde se lê: “A Igreja proíbe em toda a parte, com grande severidade, que se realize o matrimônio entre duas pessoas batizadas, uma das quais seja católica e a outra pertencente a seita herética ou cismática, e, se houver perigo de perversão do cônjuge católico e da prole, é proibido também pela própria lei divina” (Cod. Jur. Can, c. 1060). E, se a Igreja, por vezes, devido a circunstâncias dos tempos, das coisas e das pessoas, é levada a conceder a dispensa destas severas disposições (salvo o direito divino e removido, quanto possível, com oportunas garantias, o perigo de perversão), só muito dificilmente o cônjuge católico não recebe nenhum dano de tal matrimônio.

De fato, dele deriva, não raro, uma triste defecção da religião nos descendentes, ou, pelo menos, a queda fácil naquela negligência religiosa que se chama indiferença, vizinha da incredulidade e da impiedade. Acresce ainda que, nos matrimônios mistos, se torna muito mais difícil aquela viva união dos espíritos, que deve imitar o mistério há pouco relembrado da inefável união da Igreja com Cristo.

Facilmente, em verdade, virá a faltar a estreita união dos espíritos que, assim como é sinal e característica da Igreja de Cristo, assim deve ser distintivo, decoro e ornamento do casamento cristão. Costuma efetivamente dissolver-se ou, pelo menos, afrouxar-se o vínculo dos corações onde haja diversidade de pensamento e de afeto acerca das coisas mais altas e supremas que o homem venera, isto é, acerca das verdades e dos sentimentos religiosos. Depois surge o perigo de se enfraquecer o amor entre os cônjuges e de se arruinar a paz e a felicidade da sociedade doméstica, que floresce principalmente na unidade dos corações. E por isso há já muitos séculos o antigo direito romano tinha definido: “O matrimônio é a união do homem e da mulher e consórcio de toda a vida, a comunicação do direito divino e humano (Modestinus, in Dig. livr. XXIII, II: De Ritu nuptiarum, livr. I Regularum).

O divórcio

Mas o que sobretudo impede a restauração e a perfeição do matrimônio estabelecido por Cristo Redentor é, como já advertimos, Veneráveis Irmãos, a sempre crescente facilidade dos divórcios. De fato, os defensores do neopaganismo, nada tendo aprendido com a triste experiência, vão sempre atacando com ardor a sagrada indissolubilidade do casamento e as leis que lhe são favoráveis, e pretendem dever declarar-se lícito o divórcio, para que uma nova lei, mais humana, venha substituir as leis antiquadas.

Os vários pretextos

Apresentam eles muitas e variadas razões a favor do divórcio, umas provenientes de vício ou culpa das pessoas, outras inerentes às próprias coisas (chamam às primeiras subjetivas e às demais objetivas); em uma palavra, tudo o que torna mais áspera e ingrata a inseparável convivência. Pretendem basear tais razões e leis em muitos fundamentos: em primeiro lugar, o interesse de ambos os cônjuges, quer do inocente, que tem por isso direito de separar-se do cônjuge réu, quer do culpado de delitos, que, por isso mesmo, deve ser afastado de uma união ingrata e coagida; depois, o benefício da prole, que fica privada da boa educação ou perde o fruto dela, afastando-se muito facilmente do caminho da virtude, escandalizada pelas discórdias e outras culpas dos pais; finalmente, o interesse comum da sociedade, visto que este requer que, antes de tudo, se dissolvam de fato os matrimônios que já não servem para obter o fim em vista pela natureza; e pretendem, além disso, que a lei consinta os divórcios, quer para prevenir os delitos que são de recear na convivência de tais cônjuges, quer para evitar que a autoridade das leis e os tribunais continuem a ser objeto de ludíbrio, porque os cônjuges, para obter a desejada sentença de divórcio, ou cometem propositadamente os delitos em virtude dos quais o juiz pode dissolver o vínculo, segundo a lei, ou mentem descaradamente e juram falsamente tê-los cometido, apesar de o juiz ver com clareza a realidade das coisas. Portanto, dizem, as leis devem adaptar-se de qualquer forma a todas essas necessidades e às diferentes condições dos tempos, opiniões dos homens, instituições e costumes das nações. Os motivos apresentados bastariam por si sós, e principalmente se considerados em conjunto, para demonstrar com evidência que se deve absolutamente conceder a faculdade do divórcio por certos motivos.

Outros, com maior audácia, são da opinião de que o matrimônio, como contrato meramente privado que é, deve ser entregue ao consenso e ao arbítrio privado dos dois contraentes, como sucede com os outros contratos privados, e assim sustentam que pode ser dissolvido por qualquer motivo.

A lei de Deus

Contra todas essas insânias, porém, fica de pé, Veneráveis Irmãos, a lei de Deus amplissimamente confirmada por Cristo, e que não pode ser abalada por nenhum decreto dos homens, opinião dos povos ou vontade dos legisladores: “Não separe o homem aquilo que Deus uniu” (Mt 19, 6). Se o homem injuriosamente tenta separá-lo, seu ato é completamente nulo; e com razão, porque, como já mais de uma vez vimos, o próprio Cristo afirmou: “Todo aquele que repudia a sua mulher e casa com outra é adúltero, e quem casa com a repudiada é adúltero” (Lc 16, 18). Estas palavras de Cristo se referem a qualquer matrimônio, ainda o somente natural e legítimo; pois de fato é própria de qualquer verdadeiro matrimônio aquela indissolubilidade em virtude da qual ele fica subtraído completamente, quanto à dissolução do vínculo, ao arbítrio das partes e a qualquer poder civil.

Deve-se relembrar igualmente, aqui, o solene juízo com que o Concílio de Trento feriu de anátema essas coisas: “Aquele que disser que o vínculo do matrimônio pode ser dissolvido pelo cônjuge por motivo de heresia, de molesta coabitação ou de ausência simulada seja anátema” (Conc. Trident., sess. XXIV, c. 5), e: “Se alguém afirmar que a Igreja erra quando ensinou e ensina que, segundo a doutrina evangélica e apostólica, o vínculo do matrimônio não pode ser dissolvido pelo adultério de um dos cônjuges e que nenhum dos dois, nem sequer o inocente que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro matrimônio em vida do outro cônjuge, e que comete adultério tanto aquele que, repudiada a adúltera, casa com outra como aquela que, abandonado o marido, casa com outro, seja anátema” (Con. Trident. sess. XXIV c. 7).

Do fato de a Igreja não ter errado nem errar nesta doutrina, e de por isso mesmo ser absolutamente certo que o vínculo do matrimônio não pode ser dissolvido nem sequer pelo adultério, segue-se com evidência que muito menos valor têm todas as outras razões, aliás mais fracas, que costumam apresentar-se a favor do divórcio, as quais, por conseguinte, não devem ter-se em conta alguma.

A separação

De resto, as objeções que com aquele tríplice fundamento se apresentam contra a firmeza do vínculo são de fácil refutação. De fato, os danos apontados podem ser impedidos e os perigos removidos se em tais circunstâncias extremas se permitir a separação imperfeita dos cônjuges, isto é, permanecendo incólume e íntegro o vínculo, separação essa que a própria lei da Igreja concede pelas palavras dos cânones que tratam da separação do tálamo, da mesa e da habitação (Cod. Jur. Can., cn. 1128 e segs.). Compete às leis sacras e em parte pelo menos também às civis, no que se refere às coisas e aos efeitos civis, fixar as causas de tal separação, as condições, a forma e os cuidados com que se deve prover à educação dos filhos e à incolumidade da família, e remover, na medida do possível, todos os danos derivados para os cônjuges, para a prole e para própria comunidade civil.

Todos os argumentos, pois, que se costumam apresentar, e a que acima Nos referimos, para demonstrar a indissolubilidade do matrimônio servem evidentemente, e com igual força, não só para excluir a necessidade e a faculdade dos divórcios mas também para negar a qualquer magistrado o poder de os conceder. A todas as vantagens que se podem enumerar a favor da indissolubilidade, correspondem outros danos do divórcio, perniciosíssimos não só aos indivíduos como a toda a sociedade humana.

Multidão de inconvenientes

E, para Nos servirmos novamente da doutrina do nosso Predecessor, quase não é necessário observar que, assim como é grande a abundância de benefícios que em si contém a firmeza indissolúvel do matrimônio, assim também é grande a multidão dos inconvenientes que os divórcios trazem consigo. De um lado, com a firmeza do vínculo os matrimônios são absolutamente seguros; do outro, ao contrário, com a possibilidade e até probabilidade do divórcio o laço nupcial se torna inconsistente, ou, pelo menos, objeto de ansiedade e suspeitas. Por um lado, fica admiravelmente consolidada a mútua benevolência e comunhão dos bens; pelo outro, fica deploravelmente enfraquecida, se se admitir a faculdade de separação. De um lado, fortes proteções à fidelidade dos cônjuges; do outro, perniciosos incitamentos à infidelidade. Por um lado, eficazmente promovida a procriação, a proteção e educação da prole; pelo outro, sempre expostas aos mais graves prejuízos. Por um lado, estancada a multíplice oportunidade de discórdias entre as famílias e os parentes; pelo outro, oferecidas ocasiões mais freqüentes a estas discórdias. Por um lado, mais facilmente suprimidos os germes de dissensões; pelo outro, mais copiosa e largamente espalhados. Por um lado, principalmente, reintegrada e felizmente restaurada a dignidade e a missão da mulher na família e na sociedade; pelo outro, indignamente rebaixada, exposta como está a esposa ao perigo de “ser abandonada depois de ter servido à paixão do homem” (Leão XIII, Encíclica Arcanum, 10 de fevereiro de 1880).

Ameaça social

E, visto que, para destruir as famílias — concluindo com as gravíssimas palavras de Leão XIII — “e abater o poderio dos reinos, nada tem maior força do que a corrupção dos costumes, facilmente se percebe que os divórcios são os maiores inimigos da prosperidade das famílias e das nações, dado nascerem de costumes depravados dos povos, e fomentarem, como o atesta a experiência, uma sempre maior corrupção da vida privada e pública. Se considerarmos que não haverá freio possível para conter dentro de certos e preestabelecidos limites a liberdade, uma vez concedida, dos divórcios, todos estes males se nos patentearão com muito maior gravidade. É grande a força dos exemplos, mas é maior a das paixões, e devido a tais incitamentos acontecerá certamente que o desenfreado desejo dos divórcios, serpeando cada vez mais, invada o espírito de muitíssimos, à maneira de morbo que grassa pelo contágio ou como torrente que, uma vez quebrados os diques, se despenha” (Encíclica Arcanum, 10 de fevereiro de 1880).

Razão por que, como se lê na mesma Encíclica, a não ser que mudem as opiniões, as famílias e a sociedade humana devem estar sempre receosas de ser envolvidas no turbilhão e na desordem geral (Encíclica Arcunum, 10 de fevereiro de 1880). Ora, tanto a corrupção diariamente crescente como a incrível depravação da família nas regiões absolutamente dominadas pelo comunismo demonstram à saciedade com quanta verdade tudo isto tenha sido anunciado há 50 anos.

Trecho da Encíclica Casti Conubii, de Pio XI