Tradução: Dominus Est
Este capítulo demonstrará que a perspectiva panteísta fornece uma explicação global e coerente às inovações litúrgicas do concílio Vaticano II. Com razão, alguns não deixarão assim de levantar a questão da influência protestante sobre o Vaticano II, mais que visível, aliás, na missa nova. Seríamos os últimos a querer negá-la ou minimizá-la. Porém devemos ver nela a origem última da subversão religiosa? O protestantismo não é ele próprio o vetor de outras influências, que só se revelam progressivamente no desenrolar da história? Ele não é apenas uma etapa na subversão espiritual.
Não buscaremos evidenciar aqui a filiação histórica entre gnósticos, maniqueus, cátaros, albigenses, humanistas, cabalistas, Rosa-Cruzes e maçons, de um lado, e protestantes, do outro. Somente esta enumeração demonstra a extensão das pesquisas a serem conduzidas a termo. Não se pode negar que todos[1] estes movimentos são anteriores à Reforma e não podem provir dela. A influência destas correntes anti-católicas sobre a origem da Reforma, uma semelhança espiritual frequentemente muito profunda com o protestantismo (que este capítulo evidenciará implicitamente) e a convergência dos herdeiros de todas estas forças durante o concílio Vaticano II estabelecem naturalmente um vasto problema. Não tomaremos a iniciativa de resolvê-lo aqui, mencionando somente que ele conduz a conclusões muito perturbadoras sobre a origem do protestantismo e, portanto, do ecumenismo e do Vaticano II.
A proximidade, não mais histórica, mas intelectual, entre os movimentos gnósticos e o protestantismo exige, não obstante, um esclarecimento rápido[2]. Por que tantos elementos do concílio Vaticano II podem ser interpretados tanto em uma perspectiva holística, gnóstica e maçônica, quanto em um âmbito protestante? Por que o ecumenismo, a colegialidade, a liberdade religiosa, a missa nova, a confusão entre a natureza e a graça, figuram naturalmente nestes dois sistemas de interpretação? Devemos resumir aqui umas considerações que mereceriam desenvolvimentos mais amplos. A doutrina maçônica, que é também aquela do Vaticano II, confunde a natureza e a graça, divinizando a natureza. “Esta natureza foi elevada em nós a uma dignidade incomparável. Pois, por sua encarnação, o Filho de Deus se uniu de algum modo a todo homem“. Por sua vez, Lutero confundia a natureza e a graça, destruindo a natureza para deixar subsistir somente Deus: o pecado original, que o batismo não apaga, corrompeu radicalmente o homem. A natureza estando irremediavelmente ferida, não pode o homem fazer nenhum esforço moral. Toda a nossa santificação é obra somente de Deus, e não podemos de modo algum colaborar com ela. Assim os eleitos são justificados somente pela graça de Deus, que lhes imputa a justiça de Cristo, revestindo-os como por um manto de seus méritos. Chega-se assim ao panteísmo por duas vias opostas: seja exaltando e divinizando o homem, seja o rebaixando até à aniquilação.
Todavia, resta mencionar que, apesar de todas estas semelhanças profundas, o protestantismo não pode por si só justificar a doutrina do Vaticano II: a confusão entre o Criador e a criatura, a salvação universal, a salvação cósmica, a unidade do gênero humano, nossa graça natural e a dignidade humana só podem ser explicadas no âmbito do pensamento holístico. O livre exame protestante só tomará sua amplitude com a doutrina conciliar e gnóstica da revelação interior. Assim, a Reforma aparece como uma simples etapa na transmutação alquímica da cristandade que culminou no concílio Vaticano II.
O SANTO SACRIFÍCIO DA MISSA
Não é nossa intenção acrescentar algo aos profundos estudos sobre a missa nova que outros, melhor armados, publicaram [3]. Neste capítulo, contentar-nos-emos em recordar suas conclusões bem fundamentadas e remeter nossos leitores a estas obras preocupadas com aprofundamentos. Servir-nos-emos particularmente do estudo publicado pela Fraternidade sacerdotal São Pio X intitulado “O problema da reforma litúrgica”[4]. Ele expõe uma das chaves de interpretação da missa nova: o “mistério pascal”, que, na teologia conciliar, substituiu o dogma da Redenção.
Baseados nestas conclusões, que esclarecem as modificações introduzidas pelo Vaticano II no santo sacrifício da missa e que, essencialmente, suporemos assimiladas, ainda que as recordemos rapidamente, demonstraremos que a doutrina holística, panteísta e maçônica, esclarece imediatamente todas estas mudanças e apresenta o “mistério pascal”, como mistério gnóstico. Portanto, tal é o único propósito deste capítulo: demonstrar que a doutrina maçônica fornece a explicação mais completa da renovação litúrgica. Recordaremos de forma breve as principais críticas formuladas contra a nova liturgia; resumiremos em seguida a teologia do “mistério pascal” e a análise que O problema da reforma litúrgica faz dela; em seguida demonstraremos que todos estes elementos figuram no âmbito do pensamento maçônico.
A querela sobre a missa incide principalmente sobre o desaparecimento ou a diminuição de seu caráter de sacrifício propiciatório, de representação e de renovação não sangrenta do sacrifício da Cruz, e, portanto, sobre a aplicação de seus méritos sobre nossas almas. A nova liturgia tende a negar ou a reduzir tanto o aspecto sacrificial da missa quanto seu caráter propiciatório. A definição da missa dada pela Instituio generalis [5] causou grande escândalo antes de ser levemente modificada.
“A Cena dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus, que se reúne sob a presidência do sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. É por esta razão que, para a assembleia local da santa Igreja, vale a promessa eminente de Cristo: lá onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”.
Em algumas palavras, esta definição notável nega implicitamente o sacrifício, a propiciação e o caráter sacerdotal do padre, para transformar o santo sacrifício da missa em refeição (cena) e em memorial; o padre, outro Cristo, em presidente da assembleia, e a presença real, em presença espiritual (estarei presente no meio deles). Silencia-se o milagre da caridade divina manifestado pela representação e a renovação do sacrifício da Cruz, pela presença real e pela comunhão que nos leva realmente a receber Nosso Senhor Jesus Cristo. Os cardeais Ottaviani e Bacci puderam então afirmar a Paulo VI: “Quiseram passar uma esponja em toda a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante que destruiu o sacrifício da Missa” [6]. Encontramos as mesmas omissões e deslizes nos textos do concílio Vaticano II. Contentar-nos-emos em dar suas referências para não sobrecarregar inutilmente nossa análise [7].
Tal omissão voluntária do sacrifício propiciatório significa sua “superação” e, ao menos na prática, sua negação [8] e sua substituição somente pela ação de graças (eucaristia) ou por um sacrifício de louvor. A pena devida ao pecado e a finalidade satisfatória da missa são destruídas, de tal modo que esta não aparece mais em parte alguma na liturgia dos defuntos. Enfim, a participação na vítima, realizada na comunhão, não é mais requerida. A Cruz é esquecida, suplantada pela Ressurreição. O santo sacrifício é substituído por uma liturgia de salvos.
A missa não passa mais então de uma refeição memorial que requer, portanto, comê-la e bebê-la — a comunhão sob as duas espécies. O altar, pedra fixa sobre a qual se efetua o sacrifício, é substituído por uma mesa de madeira, móvel, adaptada à refeição e voltada para os fiéis.
“Com efeito, a Missa levanta a mesa tanto (primeiramente) da palavra de Deus quanto (em segundo lugar) do Corpo do Senhor, onde os fiéis são instruídos e restaurados”. (Institutio generalis, § 8)
“O penhor desta esperança e o viático para este caminho deixou-os o Senhor aos seus naquele sacramento da fé, em que os elementos naturais, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue gloriosos, na ceia [9] da comunhão fraterna e na prelibação do banquete celeste”. (Gaudium et spes, 38, 2)
O ofertório, que oferecia a Deus uma hóstia (vítima) imaculada e o cálice da salvação, referindo-se ao único sacrifício que o homem decaído possa oferecer a Deus, aquele de seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, é assim substituído por uma simples apresentação dos dons, que retoma uma oração judaica. A Presença real, objetiva, é morta (comunhão na mão e de pé [10]) enquanto que a ênfase é posta sobre a presença espiritual de Cristo e sobre a palavra de Deus. O pão e o vinho, que a liturgia tradicional já considera como uma “hóstia imaculada” e o “cálice da salvação”, agora se tornam “pão da vida” e “bebida espiritual”, indicando uma mudança espiritual, e não substancial, sem referência à presença real, corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, Cristo está presente por sua palavra:
“Na Igreja, quando se lê a Santa Escritura, é o próprio Deus que fala com seu povo, e é Cristo, presente em sua palavra, que anuncia o Evangelho”. (Institutio generalis, § 9)
Da mesma forma, Cristo está presente no povo de Deus. Desde o Vaticano II, todos os leigos estão revestidos do sacerdócio comum dos fiéis:
“A Igreja quer que os fiéis, não somente ofereçam esta vítima sem mancha, mas ainda que eles aprendam a oferecer a si mesmos”. (Institutio generalis, § 79)
Toda a assembleia dos fiéis se associa então ao padre para celebrar a eucaristia. Esta inversão fica particularmente sensível durante a genuflexão do padre, que no rito antigo ocorre imediatamente após a consagração, enquanto que agora é postergada para depois da elevação, depois que os fiéis, reunidos em nome do Senhor, o tornaram presente (lá onde dois ou três…). Do mesmo modo, o Pater é recitado agora por todos, padres e fiéis.
O “MISTÉRIO PASCAL”
O Problema da reforma litúrgica faz remontar a origem da missa nova à doutrina do “mistério pascal” [11]. Esta doutrina se caracteriza pelo abandono da satisfação e, mais particularmente, da satisfação vicária, pela afirmação do amor infinito de Deus, que o pecado de nenhum modo ofende [é incapaz de ofender] [12], e pela negação da justiça divina e de toda dimensão vindicativa [13]. A Redenção “não é mais a satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação última da Aliança eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo pecado[14]” e que acarreta, portanto, na salvação humana.
Por trás do “mistério pascal”, o Problema da reforma litúrgica evidencia uma “doutrina dos mistérios” que faz dele, de acordo com Joseph Ratzinger, “a ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século” [15]. O mistério, ou sacramento, não produz mais a graça santificante, mas torna realmente presente a realidade santificante. Assim, Cristo é o “sacramento primordial”, que “torna presente e revela plenamente o Pai” [16]. A Igreja é o sacramento de Cristo, visto que por ela “o homem pode encontrar Cristo e Deus no Cristo” [17]. A liturgia também é sacramento de Cristo, visto que nela realizamos a experiência de sua presença. O povo reunido é sacramento da Igreja, que ele se manifesta e torna presente [18]. Deus se revela assim diretamente na consciência pela experiência e não pela pregação. O sacramento é “revelação” da presença viva de Deus. Ele permite realizar uma “certa experiência das verdades de fé”.
“Assim como dissemos, uma das principais chaves da teologia do mistério pascal é o sentido que ela concede à palavra “sacramento”. Visto que ela o considera como uma realidade que torna presente o divino (o “mistério” propriamente dito), faz do sacramento o elo que permite a experiência do encontro com Deus. “Sinal e meio da união íntima com Deus” (Lumen gentium 1), o sacramento concebido de forma nova, centrado como ele é sobre o símbolo e sobre o divino tornado acessível à experiência humana, recebe um campo de aplicação de uma extensão até então desconhecida”.[19]
“(em resumo) Visto que a teologia do mistério pascal estima que o pecado não traz como consequência contrair nenhuma divida de justiça em relação à honra escarnecida de Deus, e por via de consequência, não considera mais a satisfação vicária de Cristo como um dos elementos essenciais do ato redentor, a reforma litúrgica afastou do rito da missa tudo o que poderia dizer respeito à pena devida ao pecado, assim como a finalidade propiciatória da missa. Visto que a teologia do mistério pascal só considera a Redenção como a manifestação última do amor eterno do Pai em relação ao homem, ao qual responde a acolhida deste mesmo amor pelo Cristo, que se fez em sua Encarnação solidário a todo homem, a reforma litúrgica fez do sacramento uma revelação deste mesmo amor divino, ao qual o homem é convidado a responder por uma acolhida de fé para entrar em contato com Cristo glorioso tornado presente sob os véus do mistério. Visto que a teologia do mistério pascal considera o rito memorial como único apto a tornar presente, por além do tempo do homem, os mistérios da morte e da Ressurreição de Cristo, a reforma litúrgica modificou profundamente a estrutura ritual da missa ao ponto de retirar sua dimensão propriamente sacrificial”.[20]
O Problema da reforma litúrgica menciona enfim vários outros temas gnósticos. Ele revela que a noção de mistério “busca exprimir o caráter de revelação direta de Deus aos seus servos, que está ligada à Revelação, por oposição a um modo de conhecimento filosófico”[21]; ele nota o “questionamento do valor objetivo do conhecimento especulativo”, a recusa dos dogmas, a vontade de realizar a experiência da presença de Deus[22] e cita, enfim, esta passagem a priori surpreendente de Odon Casel, um dos “pais” da “teologia dos mistérios” (a primeira parte desta citação é formada pela post-comunhão da oitava da Epifania):
“Cerque-nos sempre e por toda parte, Senhor, com a luz celeste, a fim de que, por este mistério, ao qual tivestes por bem nos fazer participar, possamos contemplá-Lo com um olhar puro e recebê-Lo com um coração digno”. Em que consiste a participação? Inicialmente, na contemplação. Contemplamos o mistério na gnose da fé. Porém esta não é uma contemplação inativa e ineficaz. Somos transformados por esta contemplação”. [23]
Agora nos é possível terminar de estabelecer que as críticas formuladas contra o Vaticano II, e mais particularmente pelo Problema da reforma litúrgica, demonstram que nos encontramos diante de uma reforma de inspiração maçônica e gnóstica. A doutrina do Vaticano II é rigorosamente equivalente ao panteísmo ou à afirmação de que nossa natureza é graciosa. Se nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível [24], devemos então negar a necessidade dos sacramentos [25], visto que a graça, que nos seria natural, não poderia ser perdida. O sacrifício propiciatório da missa, sua aplicação em nossas almas e a satisfação vicária são inúteis, e o pecado não nos faz mais perder a amizade divina. Em sentido inverso, se o pecado não nos faz mais perder a amizade divina, nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível. O mesmo ocorre se se nega a necessidade da aplicação dos méritos da Paixão em nossas almas pelo santo sacrifício, ou se se nega a satisfação vicária: isso significa afirmar que todas as almas sempre estão em estado de graça, que o pecado não ofende mais a Deus, não acarreta mais uma dívida de justiça – porque nossa natureza possui uma graça inamissível.
Disso resulta uma liturgia de salvos, uma simples ação de graças, uma refeição memorial. O sacrifício sendo apagado, o papel do padre é diminuído a simples presidente. Toda a assembleia de salvos deve participar: ”A Cena dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus”, enquanto que, na realidade, as missas sem assistência são válidas. Nossa natureza sendo graciosa, não temos mais que participar da vítima, e a Cruz é suplantada pela Ressurreição. A presença real desaparece por detrás da presença espiritual [26] em cada um de nós, que a Redenção encarregou de revelar (de nos fazer entender).
A teoria dos mistérios de Odon Casel e a teoria do “mistério pascal” podem então ser repostas no âmbito dos mistérios iniciáticos.
“(Tito Lívio) nos descreve de um modo muito impressionante o juramento das jovens recrutas da legião dos Samnitas[27]. O local onde elas eram chamadas a pronunciar seu juramento era cercado por um pano. Como o narra Tito Lívio, esta legião se servia de um antigo rito de consagração (ritu sacramenti) para adotar (initiare) seus novos membros. Todo um dispositivo cultual era empregado: ofereciam-se sacrifícios, pronunciavam-se juramentos sagrados e terríveis, e toda esta encenação tinha antes a aparência de uma iniciação mistagógica que de um juramento militar. Todos estes gestos recordavam ainda mais a consagração dos Mistérios (occultum sacrum), que também eram precedidos de um juramento secreto. É evidente que a palavra sacramentum já tende aqui a tomar o sentido de consagração, de mysterium. Quando, em 186 antes de Jesus Cristo, o Estado romano demandou a interdição dos mistérios de Bacu, o cônsul se levantara contra os mistérios, aproximando-os da prestação do juramento militar, e, nesse intuito, ele se apoiava sobre uma expressão comum a ambos, a de sacramentum. “Vocês acreditam, cidadãos, exclamara ele, que estes jovens que receberam a iniciação dos mistérios (hoc sacramento initiatos) ainda possam se tornar soldados? Aquele que foi introduzido na santidade dos mistérios, que foi santificado por esta consagração à divindade, como ainda ele poderia se devotar à República pelo juramento (sacramentum) do soldado?”[28]. Por seu lado, Apuleio[29] compara o juramento militar à iniciação mistagógica, ao”juramento” (sacramentum) que o mista [30] deve prestar na qualidade de soldado de seu deus.
“Não é difícil ver por qual caminho a palavra sacramentum penetrou na terminologia dos mistérios. Esta é uma via que deveria se tornar da mais elevada importância para a teologia cristã. Já na primeira versão latina da Escritura santa, os cristãos, lá onde eles não mantiveram a palavra grega, reproduziram o termo mysterium (μνστηριον) pelo de sacramentum. Deste modo, todo o significado da expressão grega μνστηριον passou para a palavra sacramentum. A terminologia antiga passava completamente para o cristianismo”[31]. (Odon Casel) [32].
Não há dúvidas de que, para Odon Casel, o pai da “doutrina dos mistérios”, “a ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século”, de acordo com Joseph Ratzinger, a noção de mistério, vem das iniciações mistéricas – cuja maçonaria reivindica a herança panteísta:
“O Ser de Deus em sua majestade está, portanto, infinitamente acima do mundo, porém ele habita, misericordiosamente, em sua criatura, na humanidade. Por sua natureza, ele ultrapassa infinitamente toda criatura; por sua ubiquidade e sua onipotência, ele penetra todas as coisas.
O mundo antigo já tinha um pressentimento obscuro deste Mistério. Ele pressentia que todo o terrestre era apenas a imagem e a sombra de algum poder e de alguma beleza supra-terrestres. É o sentimento deste mistério que está na origem dos templos sumérios e babilônicos, das pirâmides e das esfinges egípcias. Na Grécia, a sabedoria platônica fala deste mistério divino, e os cultos aos mistérios do período helênico ainda são orientados para ele. Por toda parte se encontra o desejo ardente de fazer o céu descer sobre a terra, de aproximar a humanidade e o divino para uni-los.
O próprio Deus endossara esta profunda nostalgia se revelando ao povo judeu. A lei, certamente, traçava com severidade a linha de demarcação entre Deus e o homem, ela formava como uma cerca em torno da montanha santa sobre a qual Deus tinha estabelecido seu trono. Porém os profetas não encontravam imagens sempre novas para anunciar o reino onde o Senhor teria sua tenda no meio de seu povo, onde seu Espírito preencheria toda carne?” (Odon Casel) [33].
Porém o mistério da divindade do mundo deve ser revelado ao iniciado:
“Traduzindo superficialmente mysterium por ‘mistério’, corremos o risco de nos perdermos, mesmo quando esta última palavra exprime o caráter oculto da verdade divina; porém, ele é verdadeiro, sobretudo quando ele designa claramente a ação de Deus ou a ação cultual. Com efeito, o mysterium não é mais um mistério (ou seja, um segredo) para o mista. O mysterium foi manifestado para ele, mas ele continua um mistério, um segredo inacessível para o infiel. A revelação é realmente um elemento essencial do mysterium, e, para que haja mysterium, é preciso que haja uma revelatio, é preciso que o véu (de Ísis) seja arrancado”. (Odon Casel)[34]
“Na linguagem paulina, “mysterium” significa inicialmente uma ação divina, a realização de um propósito eterno de Deus por uma ação que procede da eternidade de Deus, que se realiza no tempo e no mundo, e que tem seu cumprimento final, seu fim, no próprio Eterno.
Este mysterium pode ser enunciado unicamente na palavra “Christus“, que designa ao mesmo tempo a pessoa do Salvador e seu Corpo místico, que é a Igreja. Por “Christus“, entendemos inicialmente a Encarnação de Deus” (portanto, na pessoa do Salvador e de seu Corpo místico)”. (Odon Casel) [35]
O iniciado deve então dar-se conta de sua divindade, não se contentando mais em saber que ele é Deus, mas vivê-lo e sê-lo verdadeiramente:
“Foi por sua Paixão que o Senhor se tornou[36] Espírito, Pneuma. É por isso que devemos viver com ele, misticamente, sua Paixão. Assim como Cristo se tornou Pneuma por sua paixão física, assim devemos transpor misticamente sua Paixão pelo batismo, compartilhar o Espírito divino, para nos tornarmos homens “espirituais”,pneumatikoi“. (Odon Casel)[37]
“Contemplamos o mistério na gnose da fé. Porém esta não é uma contemplação inativa e ineficaz. Somos transformados por esta contemplação”. (Odon Casel) [38].
Convém notar que esta realização é efetuada somente pela eficácia dos ritos iniciáticos [39], graças ao sacramento que realmente torna presente a realidade santificante: o mysterium foi manifestado ao mista pela ação cultual, o véu foi arrancado, sem nenhum esforço de santificação, sem purificação, sem que a justiça divina tivesse sido satisfeita. Deus realmente se tornou presente por seu sacramento, Cristo; Cristo, pelos seus: a Igreja, a liturgia e sua Palavra; e a Igreja, pelo povo de Deus reunido. Esta revelação dos mistérios, de uma realidade pré-existente, porém encoberta ao “infiel” pela ignorância, este segredo enfim conhecido não pela graça e a santificação, mas somente pela eficácia dos ritos, este conhecimento não passa de gnose. Compreende-se então porque a Redenção não seja “mais satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação (e, portanto, conhecimento) última da Aliança eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo pecado” [40].
“O órgão dos mistérios é a ação litúrgica; ela é uma cooperação aos atos divinos. Seu resultado é a união com a divindade, a participação na vida divina […].
Pode-se então definir assim o mistério: uma ação sagrada e cultual, na qual uma obra redentora do passado se torna presente sob um rito determinado; a comunidade cultual, realizando este rito sagrado, participa do fato redentor evocado, e adquiri assim sua própria salvação”. (Odon Casel) [41].
É assim que encontramos por toda parte, sob a pluma de Casel, os grandes temas gnósticos: ódio dos dogmas, do conhecimento racional e da filosofia; gnose (da fé); experiência direta do divino (iluminação). Devemos ainda afirmar fortemente que a “teologia dos mistérios”, sobre a qual a reforma litúrgica se apóia, é uma doutrina panteísta, iniciática e maçônica, em oposição frontal com a verdade revelada.
A SATISFAÇÃO VICÁRIA DE ACORDO COM O CARDEAL RATZINGER[42][43]
“Que lugar a cruz ocupa exatamente na fé em Jesus reconhecido como Cristo? Tal é o problema ao qual nos confrontamos novamente neste artigo do Credo. As reflexões precedentes nos forneceram praticamente todos os elementos para uma resposta; precisamos agora tentar sintetizá-los. A consciência cristã, sobre este ponto, foi amplamente marcada, como já constatamos, por uma apresentação extremamente rudimentar da teologia da satisfação de Anselmo de Cantuária, cuja expusemos as grandes linhas em outro contexto. Para um grandíssimo número de cristãos, e sobretudo para aqueles que conhecem a fé somente de assaz longe, a cruz se situaria no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido. Este seria o modo cuja justiça de Deus infinitamente ofendida teria sido novamente reconciliada por uma satisfação infinita. Outrossim, a cruz parece exprimir uma atitude de Deus que exige uma equivalência rigorosa entre o “Devo” e o “Ter”; e, ao mesmo tempo, tem-se a sensação de que esta equivalência e esta compensação repousam, apesar de tudo, sobre uma ficção. Inicialmente, dá-se em segredo com a mão esquerda o que se pega solenemente com a mão direita. A “satisfação infinita” que Deus parece exigir toma assim um aspecto duplamente inquietante. Alguns textos de devoção parecem sugerir que a fé cristã na cruz representa um Deus cuja justiça inexorável reclamou um sacrifício humano, o sacrifício de seu próprio Filho. E se se afasta com horror de uma justiça cuja ira sombria retira toda credibilidade da mensagem do amor.
Tanto esta imagem está difundida, tanto ela é falsa. A Bíblia não apresenta a Cruz como parte de um mecanismo de direito lesado; aí a cruz aparece, bem ao contrário, como a expressão de um amor radical que se doa completamente; este é um acontecimento no qual alguém é o que faz, e faz o que é; ela é a expressão de uma vida totalmente para os outros.[…]
(No Novo Testamento) Não é o homem que se aproxima de Deus para lhe trazer uma oferta compensatória, é Deus que vem ao homem para lhe dar. Pela iniciativa do poder de seu amor, Deus restabelece o direito lesado, justificando o homem injusto por sua misericórdia criadora, revivificando aquele que estava morto. Sua justiça é graça; ela é justiça ativa, que “reajusta” o homem curvado, que o restaura, o torna reto. Tal é a revolução que o cristianismo traz na história das religiões. O Novo Testamento não diz que os homens se reconciliam com Deus, como deveríamos, de fato, esperar, visto que foram eles que cometeram a falta, e não Deus. O Novo Testamento afirma, ao contrário, que é “Deus que, em Cristo, se reconciliava com o mundo” (2 Cor 5, 19). Eis aqui algo realmente inaudito e novo, o ponto de partida da existência cristã e o centro da teologia neo-testamentária da cruz: Deus não espera que os culpados venham por si mesmos se reconciliar com Ele, Ele passa na frente deles e os reconcilia. Nisso se manifesta a verdadeira direção do movimento da encarnação, da cruz.
Assim, no Novo Testamento, a cruz aparece antes de tudo como um movimento de cima para baixo. Ela não é a obra de reconciliação que a humanidade oferece ao Deus encolerizado, mas a expressão do amor insensato de Deus, que se entrega, que se rebaixa para salvar o homem; ela é sua vinda para junto de nós, e não o inverso. A partir desta revolução na ideia da expiação, e, portanto, no eixo próprio da realidade religiosa, o culto cristão e toda a existência cristã recebem, eles também, uma nova orientação. A adoração no cristianismo consiste inicialmente na grata acolhida da ação salvífica de Deus. É por isso que a expressão essencial do culto cristão se chama justamente Eucaristia, ação de graças.[…]
“Certamente nem tudo ainda foi dito desta forma. Lendo o Novo Testamento do começo ao fim, somos da mesma forma obrigados a nos perguntar se, apesar de tudo, ele não descreve a obra da expiação de Jesus como um sacrifício oferecido ao Pai, se a cruz não é apresentada como o sacrifício oferecido por Cristo a seu Pai, na obediência. Em toda uma série de textos, a cruz aparece como o movimento ascendente da humanidade rumo a Deus, de modo que vemos ressurgir tudo o que acabamos de afastar. Com efeito, apenas com a linha descendente não se pode entender todos os dados do Novo Testamento. Porém, então como conceber a relação entre as duas linhas? Deveremos eliminar uma em favor da outra? E se quiséssemos fazê-lo, qual critério teríamos para justificar nossa escolha? É evidente que não poderíamos proceder assim: isto seria tomar arbitrariamente nossa opinião como critério da fé”. (Cardeal Ratzinger)[44]
Provavelmente não é inútil recordar alguns dos textos desta “série” que o cardeal menciona sem citar nenhum deles[45]:
“Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores” (Rom 3, 25).
“Se pensamos não ter pecado, nós o declaramos mentiroso e a sua palavra não está em nós” (I Jo 4, 10).
“Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (I Jo 2, 2).
“Nesse Filho, pelo seu sangue, temos a Redenção, a remissão dos pecados, segundo as riquezas da sua graça” (Ef 1, 7).
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados. Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).
“Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou como resgate por todos. Tal é o fato, atestado em seu tempo” (I Tim 2, 5-6).
“Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Rom 8, 32)
“Cantavam um cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça” (Ap 5, 9).
Como o cardeal reconcilia sua concepção da Cruz, expurgada de toda dimensão vindicativa, com toda “esta série de textos”?
A satisfação vicária eliminada, o cardeal pode então reinterpretar a Paixão para reduzi-la ao “absoluto do amor”.
“Não são os touros e uns bodes que interessam a Deus, mas o homem; a única adoração verdadeira só pode ser o “sim” incondicional do homem. Tudo pertence a Deus, porém Ele concedeu ao homem a liberdade de dizer “sim” ou “não, de amar ou de recusar; a adesão livre do amor, tal é a única coisa que Deus deva esperar; eis a adoração e o “sacrifício” que sozinhos podem ter um sentido. Ora, este “sim” dado a Deus e pelo qual o homem se restituiu a Deus, não pode ser substituído pelo sangue dos bodes e dos touros. O Evangelho não disse: “E que pode dar o homem em troca de sua própria vida?” (Mc 8, 37). Há apenas uma resposta: nada pode ser dado em compensação do próprio homem.[…]
(Cristo) retirou dos homens suas oferendas para substituí-las por sua própria pessoa, ofertada em sacrifício, seu próprio Eu. Se o texto afirma, apesar de tudo, que Jesus cumpriu a reconciliação por seu sangue (9, 12), este não deve ser entendido como um dom material, como um meio de expiação medido quantitativamente; ele é apenas a expressão concreta do amor cujo é dito que ele vai até o extremo (Jo 13, 1), a expressão da radicalidade de sua doação e de seu serviço; ele traduz o fato de que Cristo não traz nem mais nem menos que ele próprio. O gesto de um amor que dá tudo, eis unicamente o que constitui, segundo a carta aos Hebreus, a verdadeira reconciliação do mundo. É por isso que “a hora” da cruz é o dia da reconciliação cósmica, a verdadeira e definitiva reconciliação. Não há mais outro culto, não há mais outro sacerdote senão aquele que oferece este culto: Jesus Cristo.
A essência do culto cristão
A essência do culto cristão não consiste, então, na oferenda de coisas, nem em uma destruição qualquer, como é repetido incessantemente nas teorias do sacrifício da missa, desde o século XVI (depois do concílio de Trento?)[46]. Segundo estas teorias, a destruição seria o verdadeiro modo de reconhecer a soberania de Deus sobre todas as coisas. Todas estas especulações são simplesmente ultrapassadas pelo advento de Cristo e pela interpretação que a Bíblia oferece disso. O culto cristão consiste no absoluto do amor, tal que só aquele em quem o próprio amor de Deus se tornara amor humano poderia oferecê-lo; ele consiste na forma nova de representação, inclusa neste amor: a saber, que Cristo amou por nós, e que nos deixamos cativar por ele.[…]
Uma questão novamente levantada, em particular pelas devoções tradicionais da cruz, é aquela da relação que existe de fato entre o sacrifício (portanto, a adoração) e o sofrimento. Segundo as reflexões que acabam de ser feitas, o sacrifício cristão nada mais é que o êxodo do “para”, consistindo em sair de si, realizado fundamentalmente no homem, que está completamente em êxodo, superando a si mesmo no amor. O princípio constitutivo do culto cristão é, portanto, este movimento de êxodo, com sua orientação, dupla e única ao mesmo tempo, rumo a Deus e rumo ao próximo. Introduzindo o ser do homem junto a Deus, Cristo o introduz em sua salvação. O acontecimento da cruz é pão da vida “para a multidão” (Lc 22, 19), visto que o Crucificado remodelou o corpo da humanidade para lhe dar a forma do “sim” da adoração. Ele é completamente “antropocêntrico”, completamente ordenado ao homem, porque ele foi radicalmente teocêntrico, entregando o Eu, e, assim sendo, o ser do homem, a Deus. Ora, uma vez que este êxodo do amor é a “ec-stase” do homem para fora de si mesmo, um êxtase onde ele se encontra além de si mesmo e como tendido adiante, infinitamente além de si mesmo, e como dividido, atraído para além de suas aparentes possibilidades de desenvolvimento, nesta medida a adoração (o sacrifício) é, ao mesmo tempo, cruz, sofrimento do rompimento, morte do grão de trigo, que só pode gerar frutos passando pela morte. Todavia, desta forma vemos ao mesmo tempo que este elemento do sofrimento é secundário, e resulta de uma realidade primária que sozinha lhe confere um sentido. O princípio constitutivo do sacrifício não é a destruição, mas o amor. O sofrimento faz parte do sacrifício somente na medida em que este amor quebra, abre, crucifica, rasga: como forma do amor em um mundo marcado pela morte e o egoísmo.
Existe, relativamente a este assunto, um texto importante de Jean Daniélou, que responde, é verdade, a uma outra problemática, mas que deveria poder esclarecer mais a ideia que tentamos destacar: “Entre o mundo pagão e a Trindade bem-aventurada, há apenas uma passagem, que é a cruz de Cristo. Como nos espantar, então, tão logo desejamos nos estabelecer neste intervalo e entrelaçar novamente entre o mundo pagão e a Trindade os fios misteriosos que os unirão, de não poder fazê-lo senão pela cruz? Devemos nos sintonizar com esta cruz, carregá-la em nós e, como diz São Paulo do missionário, “trazer sempre em nosso corpo os traços da morte de Jesus” (2 Cor 4, 10). Esta divisão que nos crucifica, esta incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor de um mundo estranho à Trindade santíssima, é a Paixão própria do Filho único que ele nos chama a compartilhar, Ele que quis carregar em Si esta separação, para destruí-la Nele, mas só a destruiu porque inicialmente ele a carregou: ele vai de um extremo ao outro. Sem deixar o seio da Trindade, ele se estende até as extremas fronteiras da miséria humana e preenche todo o espaço. Esta extensão de Cristo, cujas quatro dimensões da cruz são o sinal[47], é a expressão misteriosa de nossa “distensão, e nos sintoniza nela””[48]. O sofrimento é, no final das contas, o resultado da expressão desta extensão de Jesus Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno do “Meu Deus, por que me abandonastes?” Aquele que distendeu sua existência ao ponto de estar mergulhado ao mesmo tempo em Deus e no abismo da criatura abandonada de Deus, se encontra necessariamente dividido, ele é realmente “crucificado”. Porém, este desmembramento é idêntico ao amor: ele é a realização “até o extremo” (Jo 13, 1), ele é a expressão concreta da abertura imensa criada pelo amor. Poderia-se distinguir a partir disso o verdadeiro fundamento de uma devoção autêntica[!] pela Paixão”. (Cardeal Ratzinger)[49]
Resumamos a tese do cardeal Ratzinger. Deus, infinitamente bom, não pode ter sacrificado seu Filho único para a remissão de nossos pecados. Se as Escrituras parecem afirmar o contrário, é porque elas foram mal interpretadas, por que elas foram objeto de “especulações […] simplesmente ultrapassadas”. Elas indicam principalmente que Cristo amou por nós. Se ele também sofreu durante sua Paixão, isso foi acidentalmente, porque o amor o faz sair de si mesmo, porque ele se excedeu no amor. Ele entregou seu Eu a Deus e, neste “ec-stase”, se encontrou dividido. A Paixão é a “incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor de um mundo estranho à Trindade santíssima”. Cristo carregou em si esta divisão, esta separação, e a destruiu. Ele vai de uma extremidade a outra, sua realização se estende da Trindade às extremas fronteiras da miséria humana. Ele preenche todo o espaço e nos chama a compartilhar esta Paixão, a nós conformar com ela.
Depois desta exposição da tese do cardeal Ratzinger, inicialmente buscaremos fazer uma rápida crítica dela de acordo com a doutrina da Igreja, e, em seguida, mostraremos que estas ideias são tiradas dos temas maçônicos.
O próprio cardeal admite que sua tese está em contradição com “as teorias do sacrifício da missa” em curso “desde o século XVI”. Estas ideias podem se conciliar com alguns dos versículos que citamos? Estes textos recordam claramente que o próprio Deus deu seu Filho como vítima propiciatória por nossos pecados, que foram redimidos por seu sangue[50]; que a redenção[51] foi adquirida a um custo elevado. Nada disso figura nos desenvolvimentos do cardeal. O pecado é totalmente ignorado; o sacrifício propiciatório é, portanto, inútil. A justiça divina[52], a satisfação vicária[53] e as penas do inferno são praticamente negadas. Enfim, esta teoria não explica por que Cristo teve de sofrer a morte mais ignominiosa, a morte sobre a Cruz[54].
O que resta, não mais do dogma, mas da espiritualidade cristã depois de semelhante “releitura”? O que a espiritualidade da Cruz, a mortificação e a renúncia, a participação no caminho de Cruz, a imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo[55] se tornam? Se o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo é negado ou diminuído, como podermos nos associar a ele? O que se torna nosso próprio sacrifício? “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á” (Mt 16, 24-25).
“Oh! imensa comiseração da vossa graça, imprevisível amor para conosco: a fim de resgatar o escravo, entregais vosso Filho!” (Exultet). A interpretação do cardeal impede de entrar no mistério da caridade de Deus e da Redenção, e o restringe às dimensões de uma filosofia maçônica. Destruição da ação de graças e da consciência de nossa miséria, da humildade, raiz de todas as virtudes católicas. Poderíamos naturalmente multiplicar os textos dos mais espirituais sobre o mistério do sacrifício da Cruz:
“O apóstolo nos ensina que pelo batismo fomos sepultados com Cristo e que tomamos parte de sua morte. Agora devemos nos constituir uma nova vida. Sabemos, com efeito, que o velho homem foi crucificado com Cristo, afim que não sejamos mais escravos do pecado, vivendo com Deus, em Cristo, nosso Senhor”. (Vigília pascal, renovação das promessas do batismo)
“Sabeis o que é ser espiritual deveras? É fazer-se escravos de Deus, para que, marcados com o Seu ferrete que é a cruz, pois já Lhe deram a sua liberdade, os possa vender por escravos de todo o mundo, como Ele o foi; e não lhes faz nenhum agravo nem pequena mercê” (Santa Teresa d’Ávila)[56]
“Será bom dizer-vos, irmãs, qual o fim para que o Senhor fez tantas mercês neste mundo. Ainda que nos efeitos delas já o tereis entendido, se advertistes nisso, eu vo-lo quero tornar a dizer aqui, para que não pense alguma que é só para regalar essas almas, o que seria grande erro; porque Sua Majestade não no-lo pode fazer maior que em dar-nos vida que seja imitando a que viveu Seu Filho tão amado; e assim tenho por certo serem estas mercês para fortalecer a nossa fraqueza – como aqui já tenho dito alguma vez para podê-Lo imitar no muito padecer” (Santa Teresa d’Ávila)[57].
Conforme as teses panteístas, o cardeal ignora totalmente o pecado e suas consequências. O pecado é um erro, uma ausência de conhecimento (gnose), a ignorância da unidade divina, “esta divisão que nos crucifica”[58], cuja devemos nos libertar e que Cristo teve de “destruí-la em Si”. Suprimindo o pecado como atentado à honra de Deus e ao seu direito de ser obedecido, suprimem-se também as penas que resultam dele e o inferno, e acaba-se praticamente por negar a justiça divina. O pecado se sustenta essencialmente na ilusão da separação, nesta “incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor do mundo estranho à Trindade santíssima”[59], nesta negação da unidade divina que nos separa da Santíssima Trindade. Como Cristo, então, também o homem deve superar esse erro por via do amor. Será pelo êxodo, “ultrapassando as próprias fronteiras de si mesmo no amor”. Como? Por meio da “ec-stase”, “saindo de si”.
Eis a realização gnóstica da identidade suprema, de nossa divindade, não por participação gratuita naa natureza divina, mas pela tomada de posse completa da divindade de nossa natureza. Devemos então entender que somos Deus e o mundo, porque, na verdade, esta distinção é ilusória, visto que devemos, “entregando o Eu” ao Si divino, entrar na não-dualidade. Esta “Paixão própria do Filho único que ele nos chama a compartilhar” destrói “esta separação”; “Ele vai de uma extremidade a outra; sem deixar o seio da Trindade, estende às extremas fronteiras da miséria humana e preenche todo o espaço. Esta extensão de Cristo, cujas quatro dimensões da cruz são o sinal característico, é a expressão misteriosa de nossa distensão e nos sintoniza a ela”. Devemos então compartilhar nossa “existência a ponto de estarmos ao mesmo tempo mergulhados em Deus e no abismo da criatura abandonada de Deus”, e compartilhar “esta extensão de Jesus Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno” visto que nada, nem mesmo o mal, pode existir fora de Deus. Alcança-se assim a “reconciliação cósmica, a verdadeira e definitiva reconciliação”, a reintegração dos seres, a apocatástase, a restauração universal da Cabala, a salvação universal. “O amor é (então realmente) a “ec-stase” do homem fora de si mesmo, atraído para além de suas aparentes possibilidades de desenvolvimento (realização)”. O homem é então “plenamente antropocêntrico”, plenamente ordenado ao homem, visto que ele foi radicalmente “teocêntrico”.
“Mas então – repetimos – este é o mais homem, o homem verdadeiro, que é o mais il-limitado (ent-shränkt), que não somente entra em contato com o infinito – o Infinito – mas é um com ele: Jesus Cristo. Nele, o processo de hominização chegou verdadeiramente ao seu termo”. (Cardeal Ratzinger) [60][61]
“O ser de Jesus é pura atualidade das relações ‘a partir de’ e ‘para’. E pelo próprio fato de que este ser não é mais separável de sua atualidade, ele coincide com Deus; ele se torna ao mesmo tempo o homem exemplar, o homem do futuro através do qual se pode perceber quanto o homem ainda é o ser por vir, por realizar, quão pouco o homem começou a ser ele mesmo”. (Cardeal Ratzinger)[62]
Na verdade, e ainda que eles não tenham consciência disso, todos os homens já estão salvos. A Cruz sofreu uma reinterpretação hermenêutica. A Paixão, a cruz que nos crucifica, é “esta incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor de um mundo estranho à Trindade santíssima”, é esta “divisão”, este erro que nos esconde a unidade divina. Para entender a Deus e ao mundo, e antes de alcançar a paz da ressurreição, o homem deve passar pelo “êxodo do ‘movimento em direção a’: fonte de grandes cruzes e que também é o ‘verdadeiro fundamento de uma devoção autêntica pela Paixão’”.
“O sofrimento é no final das contas o resultado da expressão desta extensão de Jesus Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno do ‘Meu Deus, por que me abandonastes?’ Aquele que fez um prolongamento de sua existência, a ponto de ser mergulhado ao mesmo tempo em Deus e no abismo da criatura abandonada de Deus, se encontra necessariamente dividido, esse é realmente um ‘crucificado’”. (Cf. supra)
“Ora, uma vez que este êxodo do amor é a ‘ec-stase’ do homem para fora de si mesmo, um êxtase onde se encontra para além de si mesmo e como que prolongado à frente, infinitamente além de si, e como dividido, atraído para além de suas aparentes possibilidades de desenvolvimento, nesta medida, a adoração (o sacrifício) é, ao mesmo tempo, cruz, sofrimento do rompimento, morte do grão de trigo, que só pode gerar frutos passando pela morte”. (Cf. supra)
Notar-se-á o paralelismo assombroso entre estes textos do cardeal e as teses gnósticas e maçônicas expostas por Guénon:
“Se tapas frequentemente toma o sentido de esforço árduo ou doloroso, não é porque seja atribuído um valor ou uma importância especial ao sofrimento enquanto tal, nem que este seja visto aqui como algo que vá além de um ‘acidente’; mas é porque, pela própria natureza das coisas, o desprendimento das contingências é forçosamente sempre árduo para o indivíduo, uam vez que a própria existência deste também diz respeito à ordem contingente. Não há nada aqui que seja assimilável a uma ‘expiação’ ou a uma ‘penitência’, ideias que desempenham, ao contrário, um grande papel no ascetismo entendido no sentido vulgar, e que têm, sem dúvida, sua razão de ser em um certo aspecto do ponto de vista religioso, mas que não pode manifestadamente encontrar um lugar no domínio iniciático, nem, a fortiori, nas tradições que não estão revestidas de uma forma religiosa.
“No fundo, poder-se-ia dizer que toda ascese verdadeira é essencialmente um ‘sacrifício’, e temos tido a oportunidade de ver alhures que, em todas as tradições, o sacrifício, sob qualquer forma que ele se apresente, constitui propriamente o ato ritual por excelência, aquele no qual se resumem de algum modo todos os demais atos. O que é assim sacrificado gradualmente na ascese, são todas as contingências, de cujo ente deve conseguir se desapegar, à maneira de outros tantos laços ou obstáculos que o impedem de se elevar a um estado superior; porém, se pode e deve sacrificar estas contingências, é na medida em que estas dele dependem e fazem, de certo modo e algum título, parte dele mesmo. Como, aliás, a individualidade é apenas uma contingência, a ascese, em seu significado mais completo e mais profundo, nada mais é, em última análise, senão o sacrifício do ‘eu’, efetivado para consumar a consciência do ‘Si’”. (René Guénon) [63].
A “relação que existe de fato entre o sacrifício (logo, a adoração) e o sofrimento” não é, portanto, aquela que São João da Cruz acreditou encontrar nas noites purificadoras, quando a alma, envolta por trevas, participa da agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo no Gethsemani. A “relação que existe de fato entre o sacrifício (logo, a adoração) e o sofrimento” provém da realização de nossa divindade, que nos faz abandonar com dor nosso eu para realizar Deus. A cruz não é mais o instrumento de nossa salvação, visto que ela manifesta “que Cristo amou por nós”, visto que ela manifesta esta “admirável aliança de Deus com a humanidade”. O santo sacrifício da Missa sofreu uma transmutação alquímica operada pela hermenêutica gnóstica.
“A cruz de Cristo sobre o Calvário surge no caminho daquele «admirabile commercium», daquelacomunicação admirável de Deus ao homem, que encerra o chamamento dirigido ao homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e oferecendo consigo todo o mundo visível, participe da vida divina, e, como filho adotivo, se torne participante da verdade e do amor que estão em Deus e vêm de Deus. No caminho da eterna eleição do homem para a dignidade de filho adotivo de Deus, ergue-se na história a cruz de Cristo, Filho unigênito, que, como «Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro» veio para dar o último testemunho da admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus com o homem”. (João Paulo II, Dives in misericordia, 7)
O SACERDÓCIO COMUM DOS FIÉIS
Sabe-se que o concílio Vaticano II introduziu uma novidade no ensino dispensado por Roma: o sacrifício comum dos fiéis[64]. Todo cristão participaria realmente e não metaforicamente do sacerdócio de Cristo. Esta afirmação que a Igreja combateu[65], é uma consequência natural da visão holística panteísta. Se todos os homens são Deus, se “por sua encarnação, o Filho de Deus se uniu de algum modo a todo homem”, então cada um é seu próprio sacerdote, seu padre interior, e pode encontrar o Salvador em si mesmo. Cada um deve se conscientizar de seu caráter sacerdotal (realizá-lo), e, sendo sacerdote[66], deve se oferecer em sacrifício espiritual a Deus[67]. O sacerdócio ministerial deve ser reinterpretado; seu papel não é mais então de representar e de renovar o sacrifício da Cruz, mas de ajudar todos a se conscientizarem de seu sacerdócio[68]. Essencialmente, cada homem é sacerdote; o papel do sacerdócio hierárquico é puramente didático – acidental. O padre é rebaixado ao nível de um simples mestre espiritual do fiel. A missa deve ser pública para que cada um seja ensinado, tome consciência de seu sacerdócio e de sua salvação[69].
A estrutura hierárquica e visível da Igreja é imediatamente destruída ou, ao menos, gravemente diminuída para os defensores de semelhante teoria, como a história das heresias e do protestantismo o prova superabundantemente. Este aviltamento da hierarquia conduz à colegialidade, e, em seguida, ao ecumenismo e à liberdade religiosa: visto que o homem deve encontrar Deus em si[70], pouco importa o caminho que ele emprega. Esta diminuição iluminista da mediação da Igreja conduz igualmente à sua redefinição, para lhe restituir sua amplitude holística: a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica, mas a ultrapassa por toda parte. O sacerdócio sendo comum, o padre é um simples presidente que concelebra com a assembléia dos fiéis[71]. O acento é posto sobre a liturgia da palavra, que atualizaria a presença sacramental, e que hoje pode ser anunciada por qualquer fiel. A visão holística, a confusão entre a natureza e a graça se desenvolve assim até seu termo: a confusão entre o padre e o leigo que não deixa mais subsistir senão uma diferença acidental. O sacrifício da Cruz é substituído por um sacrifício espiritual que todo fiel pode oferecer.
A utopia sempre quis conduzir Deus e o paraíso sobre a terra em uma confusão panteísta que terminaria por negar o indivíduo, certamente divinizado, porém mergulhado no Grande Todo. O socialismo, o comunismo, a democracia totalitária, o mundialismo e a doutrina maçônica procedem assim da concepção holística: destruindo as hierarquias em nome de nossa divindade comum, destrói-se também o indivíduo em proveito da coletividade, da assembleia dos fiéis ou do povo de Deus[72]. Por trás de todas as utopias ouve-se o eco destas palavras de revolta que, desde o princípio, ressoam através dos séculos : “Sereis como deuses”. “Não servirei”. “Igualar-me-ei ao Altíssimo”.
“Realmente, tornando-nos « filhos de Deus », filhos de adoção, à sua semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo « reino de sacerdotes », alcançamos o « sacerdócio real », isto é, participamos naquela restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno 163 e ao mesmo tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre”. (João Paulo II, Redemptor hominis, 20)
“Cristo instituiu este enquanto função daquele; ele não é, portanto, somente hierárquico, mas também “ministerial”: ele deve servir (ministrare) para que seja mantido e desenvolvido no Povo de Deus tudo o que dá testemunho de sua participação no sacerdócio de Cristo, em outros termos, esta atitude que deriva desta participação. Esta atitude, pela qual o homem confia sua própria pessoa e o mundo a Deus, é a expressão mais simples e mais profunda da fé, o testemunho interior oferecido ao Deus da criação, da revelação e da redenção”. (Cardeal Wojtyla)[73]
“O sacerdócio representa o sentido do mundo em sua relação com Deus e, ao mesmo tempo, o sentido do homem no mundo criado e redimido por Deus. Ele é um “sacrifício de louvor” que o mundo carrega em si e que ele confia ao homem para oferecê-lo ao seu Criador. Ele lho confia precisamente porque ele é capaz de se tornar a expressão viva da glória de Deus (cf. Ps. 116, 17; Hb 13, 15), e a expressão do serviço que a criação inteira assume para com seu Soberano (Rm 12, 1), tornando-se, por assim dizer, a intermediária e a voz das criaturas”. (Cardeal Wojtyla)[77]
“O sacerdócio é a grande oração de todas as coisas: do homem e do mundo”. (Cardeal Wojtyla)[75]
Encontramos todos estes elementos no texto da Lumen gentium, que define o sacerdócio comum dos fiéis (antes mesmo do sacerdócio hierárquico, demonstrando a dependência deste último em relação ao primeiro). Notaremos particularmente a imbricação dos temas do sacerdócio comum dos fiéis e da Redenção universal.
“Com efeito, os que crêem em Cristo, regenerados não pela força de germe corruptível mas incorruptível por meio da Palavra de Deus vivo (cfr. 1 Ped. 1,23), não pela virtude da carne, mas pela água e pelo Espírito Santo (cfr. Jo. 3, 5-6), são finalmente constituídos em «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo conquistado… que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1 Ped. 2, 9-10).
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, «o qual foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado por causa da nossa justificação» (Rom. 4,25) e, tendo agora alcançado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos céus. E condição deste povo a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo. A sua lei é o novo mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou (cfr. Jo. 13,34). Por último, tem por fim o Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser também por ele consumado no fim dos séculos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cfr. Col. 3,4) e «a própria criação for liberta do domínio da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus» (Rom. 8,21). Por isso é que este povo messiânico, ainda que não abranja de facto todos os homens, e não poucas vezes apareça como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido por Cristo como comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também por Ele assumido como instrumento de redenção universal e enviado a toda a parte como luz do mundo e sal da terra (cfr. Mt. 5, 13-16).
Mas, assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já chamado Igreja de Deus (cfr. 2 Esdr. 13,1; Num. 20,4; Deut. 23,1 ss.), assim o novo Israel, que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e perene cidade (cfr. Hebr. 13-14), se chama também Igreja de Cristo (cfr. Mt. 16,18), pois que Ele a adquiriu com o Seu próprio sangue (cfr. Act. 20,28), encheu-a com o Seu espírito e dotou-a dos meios convenientes para a unidade visível e social. Aos que se voltam com fé para Cristo, autor de salvação e princípio de unidade e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela seja para todos e cada um sacramento visível desta unidade salutar (15). Destinada a estender-se a todas as regiões, ela entra na história dos homens, ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos. Caminhando por meio de tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus que lhe foi prometida pelo Senhor para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza da carne, mas permaneça digna esposa do seu Senhor, e, sob a ação do Espírito Santo, não cesse de se renovar até, pela cruz, chegar à luz que não conhece ocaso.
Cristo Nosso Senhor, Pontífice escolhido de entre os homens (cfr. Hebr. 5, 1-5), fez do novo povo um «reino sacerdotal para seu Deus e Pai» (Apor. 1,6; cfr. 5, 9-10). Na verdade, os baptizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (cfr. 1 Ped. 2, 4-10). Por isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cfr. Act., 2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas, agradáveis a Deus (cfr. Roma 12,1), dêem. testemunho de Cristo em toda a parte e àqueles que lha pedirem dêem razão da esperança da vida eterna que neles habita (cfr. 1 Ped. 3,15)” (Vaticano II, Lumen gentium 9 e 10).
Compreende-se então toda a extensão destas palavras do cardeal Wojtyla:
“De certo forma, pode-se dizer que a doutrina do sacerdócio de Cristo e da participação do homem nesse sacerdócio está no centro próprio do ensino do Vaticano II e contém, de certo modo, tudo o que o Concílio queria dizer da Igreja, da humanidade e do mundo.
É somente sobre a base das verdades relativas ao sacerdócio de Cristo, ao qual todo o Povo de Deus tem parte, que o Concílio enuncia a “subordinação” mútua entre o sacerdócio de todos os fiéis e o sacerdócio hierárquico”. (Cardeal Wojtyla)[76]
Lê-se nos catecismos para crianças: “a missa é um mistério”. Mistério sobrenatural da correspondência do Verbo feito carne, que representa e renova sacramentalmente e realmente seu sacrifício sobre os altares, imagem da liturgia celeste, que vem a nós para que desde já tenhamos a vida eterna. para que desde já permaneçamos nele e ele em nós: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma bebida” (Jo 6, 54-56).
BERNARDIN, Pascal. Le crucifiement de saint Pierre. La Passion de l’Église. Tradução Dominus Est. Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 2009, c. I, p.218-250.
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[1] Ou quase, se se quer respeitar a história oficial que mascara por vezes fenômenos consideráveis.
[2] Etienne Couvert, De la gnose à l’oecuménisme, Chiré-en-Montreuil, Éditions de Chiré, 2001, p.63 sq.
[3] Breve exame crítico da nova missa, apresentado por Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci, suplemento especial da Introïbo, nº 95, Angers, associação Noël Pinot.
[4] Fraternidade sacerdotal São Pio X, Le problème de la réforme liturgique, La messe de Vatican II et de Paul VI; Étude théologique et liturgique, Étampes, Clovis, 2001.
[5] § 7. Edição original de 1969.
[6] Breve exame crítico, op. cit., p. 5.
[7] Lumen gentium 28.1; Sacrosanctum Concilium 47, 102.1,106.
[8] Breve exame crítico, op. cit., p. 10.
[9] Pio XII, Mediator Dei.
[10] O papel da maçonaria sobre este ponto foi evidenciado por Dom Lefebvre em La messe de toujours, Étampes, Clovis, 2005, p.387.
[11] Louis Bouyer, Le mystère pascal, Paris, Les éditions du cerf, 1957, p. 44, 96, 132, 133, 135, 142, 143, 186, 190, 197, 222, 315, 327, 366, 377.
[12] O problema da reforma litúrgica, p. 55.
[13] Os confessionários são então abandonados.
[14] O problema da reforma litúrgica, p. 58.
[15] Ibid., p. 66.
[16] João Paulo II, Dives in misericordia, nº 3.
[17] Jean-Hervé Nicolas, Synthèse dogmatique. De la Trinité à la Trinité. Éditions universitaires, Fribourg, 1985, p. 635.
[18] Chega-se assim a afirmar que o Povo de Deus é o corpo físico e não místico de Cristo, opinião condenada por Pio XII na Mystici Corporis. Cornelia R. Ferreira e John Vennari, World Youth Day, From Catholicism to Counterchurch, Toronto, Canisius Book, 2005, p. 54.
[19] O problema da reforma litúrgica, p. 109.
[20] Ibid., p. 114.
[21] Odon Casel, Le mystère du culte, Paris, Cerf, collection Lex orandi, 1964, p.300.
[22] O problema da reforma litúrgica, p. 71 sq.
[23] Odon Casel, Le mystère du culte, op. cit., 1964, p.319.
[24] ST, I-II, q. 85, a.1.
[25] ST, III, q.62.
[26] Este resvalamento do real rumo ao espiritual é característico da gnose.
[27] Livius, X, 38 ss.
[28] Livius XXXIX, 15, 13.
[29] Metamorfoses, XI, 15.
[30] Iniciado nos pequenos mistérios.
[31] Em itálicos no texto.
[32] Odon Casel, Le mystère du culte, Paris, Cerf, collection Lex orandi, 1964, p.114 e 115.
[33] Idib., p. 108 e 123. Assim como Karol Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p. 83.
[34] Odon Casel, Le mystère du culte dans le christianisme, op. cit., 1946, p.25.
[35] Odon Casel, Le mystère du culte dans le christianisme, op. cit., 1946, p.21 e 22.
[36] Todo o historicismo também é contido nesta palavra.
[37] Odon Casel, Le mystère du culte, 1946, p.34.
[38] Idib., p.319.
[39] Em acordo com a doutrina guenoniana.
[40] O problema da reforma litúrgica, op. cit., p. 58.
[41] Odon Casel, Le mystère du culte, op. cit., p. 109 e 110.
[42] Para um estudo detalhado desta opinião do cardeal, ver: Monseigneur Bernard Tissier de Mallerais, Le mystère de la rédemption selon Benoît XVI, Le sel de la terre, Avrillé, Hiver 2008-2009, nº 67, p. 22-54.
[43] A satisfação vicária designa a satisfação que o Salvador ofereceu à justiça divina em nosso lugar.
[44] Cardeal Ratzinger, La foi chrétienne hier et aujourd’hui, op. cit., p.197 sq.
[45] Ver também: I Pe 1, 18-18; 2, 24; Ef 2, 14-18; 5, 25; Mt 20, 28; Mc 10, 45; Jo 11, 50; Col 1, 14-22; Hb 2, 17-18; 7, 24-27; 9, 15; 9, 24-28; 10, 9-14; Is 53; I Cor 5, 7; 6, 20; 7, 23; 15, 3; Rom 4, 25; 5, 6-10; Gal 2, 20; Tit 2, 14.
[46] Notar-se-á, com efeito, o parentesco entre as teses do cardeal e aquelas dos protestantes.
[47] Ver R. Guénon, Le symbolisme de la Croix, op. cit.
[48] J. Daniélou, Essai sur le Mystère de l’Histoire, Éd. du Seuil, 1953, p.329.
[49] Cardinal Razinger, La foi chrétienne hier et aujourd’hui, op. cit., p. 201 sq.
[50] Concílio de Trento, 5º sessão, c. 3. DS 1513.
[51] Ver DTC, artigo Redenção.
[52] Concílio de Trento, 14º sessão, c. 8 e 9. Cânon sobre o santíssimo sacramento da penitência, nº 13. DS 1689 sq e 1713.
[53] ST, III, q.48, a.2. DS 539.
[54] Conviria estudar as ligações entre o pensamento de Abelardo e o do cardeal. Cf. DS 722 sq.
[55] P. Garrigou-Lagrange, L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, op. cit., p.526 sq.
[56] Santa Teresa d’Ávila, Le château de l’âme, VII demeures, c.4. Tradução do Padre Marcel Bouix, s.j.
[57] Ibid.
[58] Louis Bouuer, Le mystère pascal, op. cit., p.187 e 190 sq.
[59] Enquanto que o Senhor não rezou pelo mundo.
[60] Cardeal Ratzinger, La foi catholique hier et aujourd’hui, op. cit., p.159.
[61] Cf Dz. 256 (concílio de Éfeso).
[62] Cardeal Raztinger, La foi catholique hier et aujourd’hui, op. cit., p.153.
[63] René Guénon, Initiation et réalisation spirituelle, op. cit., p.160 sq.
[64] Ver em particular os esclarecedores estudos do abbé Jean-Michel Gleize, em La religion de Vatican II, Études théologiques, Premier symposium de Paris, 4-5-6 octobre 2002, Éditions des Cercles de Tradition de Paris, 2003, p.206 sq et 218 sq.
[65] Pio XII, Mediator Dei.
[66] Hb 5, 1. Ver também DS 1764.
[67] Pio XII, Mediator Dei.
[68] Karol Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p.227.
[69] Ibid., p.97.
[70] Vaticano II, Gaudium et spes, 14.
[71] Institutio generalis, 2003, nº 16.
[72]
[73] Karol Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p.227.
[74] Cardeal Wojtyla, Le signe de contradiction, op. cit., p. 165.
[75] Ibid., p.173.