Os acontecimentos desses últimos dias marcados de violência levaram-me a pensar que têm muita razão os que já apontaram o predominante papel do medo na cultura moderna.
No princípio deste século – quando a morte era vencida nas cidades pelo arco-voltaico, quando os recantos mais secretos da vida e do mundo eram vasculhados pela luz da ciência, e quando os fantasmas, os lobisomens e as assombrações, expulsos de seus últimos redutos, eram relegados às anedotas e ao folclore – muita gente certamente pensava que esta civilização científica e arejada iria progredindo de claridade em claridade, de descoberta em descoberta, até o dia confortável em que o Medo, esse anacrônico personagem, fosse definitivamente dominado pela Razão.
Era assim que pensava o cidadão otimista e comodista que se extasiava diante dos pavilhões iluminados na Exposição Universal em Paris, em 1900.
Ora, no meio-dia deste mesmo século desce uma sombra sobre o mundo. O prestígio da Razão, ainda alto no domínio das ciências e das técnicas, nunca esteve tão baixo na vida cotidiana. O racionalismo deu lugar ao instintivismo. A alma humana já não é procurada na linha da razão e sim na dos instintos. O homem tem como seu, propriamente seu, não o que vê e conhece, mas o que dele mesmo se esconde nos porões da memória trancada. E o comodismo tranquilo deu lugar a um comodismo inquieto; e o grande Medo expulso voltou sob a forma do medo do Terror.
Houve tempo em que o homem tinha um terrível medo religioso de perder sua alma; depois, no apogeu da moral leiga, o homem teve um medo supersticioso de perder sua honra; mas hoje ele tem medo do abismo que, de certo modo, advinha no itinerário de um mundo liberal que quer marchar para o socialismo.
Houve tempo, em nossa vida, em que tínhamos medo de almas do outro mundo e nos abrigávamos desse temor no regaço materno; depois tivemos medo de ladrões e púnhamos embaixo do travesseiro um apito para chamar a polícia; mas hoje há teorias que nos induzem a ter medo do regaço materno, campanhas de “slogans” que nos querem levar a ter medo dos policiais e não dos assassinos.
E de todos os temores dispersos e difusos que hoje nos assaltam, filhos do comodismo otimista, o menor e mais numeroso, o básico, medo atômico fundamental, que supera os restos de amor pela justiça e pela verdade, é o medo de mudar de vida.
Agora chegados neste ponto, detenhamo-nos e procuremos adivinhar, prever, deduzir o que acontecerá nessa sociedade amolecida em que o santo temor de Deus foi substituído por esses medos pequenos, de meio quilo, de meio metro, que formam o traço mais característico desta civilização.
É fácil prever: uns poucos, por uma série de circunstâncias, vão se encontrar em posição de paralisar essa sociedade de timoratos e vão agir simultaneamente em dois sentidos, prometendo segurança e espicaçando os pontos sensíveis da pusilanimidade, tranquilizando e metendo medo. E esses mesmos, cuja maior volúpia consiste em meter medo, esses mesmos viverão constantemente com medo. E então começa aí, nessa raiz de covardia, nesse germe de abdicações, o reino da violência procurado pelos terroristas.
Vejam bem que a lógica do erro é a contradição, e que não é de admirar que seja a violência a sucessora do comodismo. Examinem bem a precisão de nosso raciocínio quando anunciamos que numa sociedade em que todos têm medo de guerra haverá guerras atrozes. Se todos têm medo de incômodos haverá bombardeios atômicos e tiranias inauditas. Se todos têm medo da pobreza haverá miséria. E houve. Aconteceu isto nos países que se entregaram a formas totalitárias, por comodismo. E continua acontecendo um pouco em todo o mundo. A violência é a filha mal-educada do comodismo. O instintivismo é o único filho que se poderia esperar do racionalismo.
Estamos sob o império da violência. Mas por favor não comparem esses tumultos com o retinir de armas que encheu a Idade Média. Há violência e violência. Há violência que se organiza em cruzadas, há violência que toma de assalto o próprio Reino de Deus; mas há também essa outra convulsão telúrica, semi-voluntária: a violência dos mornos que só se traduz em pânico, em salve-se quem puder, em massacres de reféns inocentes e em gavetas onde se trancam, com o ódio dos fracos, a verdade e a justiça.
Andei ouvindo nesses dias o belíssimo livro, o último que Bernanos escreveu, Dialogues des Carmelites, e logo no frontispício o trecho transcrito de La Joie, do mesmo autor, que reza assim: “En un sens, voyes-vous, la Peur est tout de même fille de Dieu, rachetée la nuit de Vendredi-Saint. Elle n´est pas belle à voir – non! – tantôt raillée, tantôt maudite, renoncée par tous… Et cependant, ne vous y trompez pas: elle est au chevet de chaque agonie, elle intercède pour l´homme”.
Bernanos nos fala aqui do Medo, desta terrível paixão que abala os alicerces da alma, e no-la apresenta ora escarnecida, ora maldita e sempre repelida, mas também filha de Deus, resgatada na noite de Sexta-Feira Santa, essa mesma paixão que se debruça nos leitos de agonia e intercede pelos moribundos.
Deus quer de nós a inteligência e a vontade, mas quer também as paixões porque o homem, sem paixões, é menos homem. Quer o nosso amor, quer a nossa alegria, quer as nossas tristezas. Quer também o nosso temor.
Do amor, que Deus espera todo de nós, rendido, incondicional, Ele mesmo decretou que essa grande oferta seja profusamente espalhada por tudo e por todos. E assim, dispersa, solta aos quatro ventos que a grande paixão do amor obedece melhor à Caridade que é o Santo Amor, jovem capitão de um exército inumerável de afeições.
Da alegria, que Deus manda servir à Esperança (como às vezes também a tristeza a serve do seu modo) Deus espera d enós a mesma generosa profusão, porque “un saint triste est un triste saint”, e ele mesmo nos legou palavras de agradecimento para todas as criaturas de sua gloriosa mão.
Mas o caso do temor é diferente. Ainda se refrata nas criaturas, sendo bom que exista e condicione certas relações, mas eu diria que se refrata em ângulo apertado, sem muita dispersão, porque depende disso, dessa concentração, dessa economia, o equilíbrio do homem entre os homens. A Deus dizemos: “sanctum et terribile nomem ejus. Initium sapientiae timor Domini”. Santo e terrível é o seu nome. O início da sabedoria é o temor de Deus.
E depois de termos assim temperada a nossa alma, nós podemos cantar o hino de nossa coragem perfeita, como na oitava da Ascensão a Igreja canta em seu intróito: “Dominus illuminatio mea, a quo trepidabo?” Senhor, luz minha e minha salvação, a quem temerei? Senhor, protetor de minha vida, o que me fará estremecer?
Eis aí, ó leitor, o segredo dessa paixão de nossa alma, que parece feia (elle n´est pas belle à voir…) que parece desprezível, que parece maldita, e que, entretanto, não duvide, ó leitor, está na cabeceira de cada agonia, intercedendo pelo homem. Eis aí, ó amigo, a antiga receita dos bravos, como Santa Joana D´Arc, como S. Luís de França, que só tinham medo de uma coisa: pecar contra Deus.
E eia aí também a triste explicação das nossas fraquezas. Onde morre o temor de Deus pululam os vermes de todos os medos.