O SUICÍDIO DE LUTERO

Étienne Couvert

Em 20 de maio de 1505, Lutero iniciara seus estudos de Direito na Universidade de Erfurt. Pouco tempo depois, porém, uma desgraça ocorreu. Tendo encontrado seu amigo Jerônimo Buntz, desentenderam-se, travaram um duelo e Lutero acabou por matar seu companheiro. Em junho daquele mesmo ano, preocupado com as consequências da morte, Martinho buscou seu protetor e amigo, João Braun, vigário colegial em Eisenach, para lhe pedir conselho. Este o estimulou a tornar-se religioso, a fim de evitar as consequências judiciais do caso. Lutero acatou a sugestão e em 17 de julho de 1505 entrou para o convento dos Eremitas de Santo Agostinho, em Erfurt. Beneficiou-se assim do direito de asilo, então reconhecido pela justiça civil. Seu primeiro tratado, redigido por ele mesmo, intitula-se: “Sobre aqueles que se refugiam nas igrejas, muito útil para os juízes seculares e para os reitores de uma igreja e os prelados de mosteiros”. (“De his qui ad ecclesiam confugiunt tam judicibus secularibus quam Ecclesiae Rectoribus et Monasterioum Praelatis perutilis”). A obra foi publicada anonimamente em 1517, e depois em 1520 com o nome de Lutero. Nela, é lembrado que quem mata sem ter sido inimigo, por erro ou sem premeditação, não é culpado segundo a lei de Moisés.

Em seu mosteiro, porém, Lutero não encontrou paz de espírito. Sua vocação, bastante questionável, foi resultado mais de medo que de um chamado divino ou amor à oração e à solidão.

Devido a seu temperamento hereditário, em acréscimo à sua educação familiar, Martinho era dotado de um caráter violento e explosivo, de tipo primário, que no primeiro impulso age sem refletir, além de uma alma escrupulosa que depois de ter agido, rumina bastante sobre o erro ou a falta cometida desnecessariamente e que podia ter sido evitada com um pouco de reflexão. É um tipo de humanidade bastante comum neste mundo e que não deveria, de modo algum, provocar uma angústia suicida.

Uma morte cometida durante uma rixa, certamente mais acidental que premeditada, não deveria jamais provocar essa crise, que não fez senão acentuar-se ao longo de sua existência, até o suicídio final. A isso é preciso acrescentar outro fator.

Roland Dalbiez, psicanalista freudiano, recentemente publicou um estudo sobre “A angústia de Lutero”, no qual defende uma tese bastante estranha. Ele atribui a Lutero “uma neurose de angústia gravíssima, tão grave que é razoável questionar se não foi a do estado limite entre a fronteira da neurose de uma parte, e o raptus suicida ou o automatismo teleológico anti-suicida de outra parte. Ele não escolheu nem uma nem outra dessas soluções; a solução à qual foi conduzido, sai de seu inconsciente e impõe-se a ele de modo necessitante…”. Destacamos as expressões que tendem a negar a liberdade humana nesse texto de um psicanalista, o que está plenamente de acordo com o pensamento de Freud.

Para escapar da voz de sua consciência, para abafar a angústia que ali nascia, Lutero retomou uma tese, atribuída falsamente a Santo Agostinho, sobre a justificação somente pela fé, sem as obras, graças ao sacrifício do Cristo que tomou para si os pecados dos homens. Eis o texto de Lutero:

“É preciso olhar o Cristo em quem, quando vires que teus pecados estão ligados, estarás seguro em face dos pecados, da morte e do inferno. Com efeito, dirás: meus pecados não são meus, porque não estão em mim, mas em outro, a saber, no Cristo, portanto não poderão me prejudicar. É preciso, de fato, um esforço extremo para poder compreender essas coisas pela fé e nelas crer a ponto de dizer: pequei e não pequei, a fim de que a consciência seja vencida, essa dominadora poderosíssima que amiúde conduziu os homens ao desespero, à faca ou à corda. (Est autem maximus labor posse haec ita fide apprehendere et credere ut dicas: peccavi et non peccavi, ut sic vincatur conscientia, potentissima domina quae saepe ad desperationem, ad glaudium et ad laqueum homines adigit). É conhecido o exemplo do homem, que, tentado por sua consciência, dizia: não pequei. Com efeito, a consciência só pode estar tranquila quando afasta os pecados da sua vista. É mister, assim, que tua vista os afaste, de tal modo que vejas não o que fizeste, não a tua vida, não a tua consciência, mas o Cristo…” (In Esaiam prophetam scholia, cap. 53.)

Por esse texto, Dalbiez pretende demonstrar que Lutero tentou fugir de sua angústia graças ao que ele chama um “automatismo teleológico anti-suicida“. Apesar de termos relido esse texto, nele não encontramos nada de automático, mas um raciocínio muito ardiloso; uma recusa da verdade que, todavia, salta aos olhos: eu pequei, mas não quero reconhecê-lo. É preciso um esforço extremo, um “maximus labor” para afirmar o contrário do que sabemos muito bem ser verdadeiro. É uma maneira de atolar-se na mentira, e, apesar da autossugestão para considerar-se puro de toda falta ou erro, a consciência permanece a mesma, tal como o olho que Caim enxergava no fundo do túmulo que ele mesmo havia cavado. Fixada em nosso espírito, essa consciência não é outra coisa senão a voz do bom senso e da razão. Ademais, Dalbiez reconhece que “sua adesão à doutrina da justificação somente pela fé não o tranquilizou totalmente; em certo sentido, pode-se dizer que ele nunca conseguiu aderir a ela completamente”. Destacamos os advérbios “totalmente” e “completamente”. Eles mostram bem as dificuldades da tese freudiana.

Se Lutero fabricou seu próprio sistema religioso e moral, ele sabia bem que é uma mentira, e que não poderia aderir inteiramente a ele. É a atitude de um menino que, corado, diz à mãe: “Não fui eu!”, preocupadíssimo em saber se sua mentira irá “colar”.

Esse ódio contra a consciência não pode ser de origem divina nem humana; supõe uma tentação demoníaca. Satã sabe muito bem que erguendo uma alma contra a voz racional de sua consciência, torna-se mestre dela. Dalbiez prossegue: “É preciso lutar incessantemente contra ela (a consciência), pois ela ameaça sempre encurralar ao desespero, empurrar o homem a cortar sua garganta ou se enforcar”. A ameaça não vem da consciência, mas de uma atitude de recusa contra o seu ditame: “A todo pecado misericórdia. Uma falta confessada está já perdoada”. A paz de consciência se segue ao reconhecimento da falta. Mas quem se nega a ser culpado deixa-se cair num orgulho absurdo. De modo que a falta não confessada, portanto não perdoada, persegue-nos implacavelmente, torna-se uma ideia fixa, depois uma fonte de neurose, não restando senão o suicídio para escapar à visão da consciência, isto é, escapar de Deus. Chama-se isso uma fuga antecipada.

Examinemos essa descida ao abismo que foi a vida de Lutero. Sobre suas crises de angústia temos o testemunho de Melanchton: “Com frequência, quando refletia atentamente na ira de Deus ou nos impressionantes exemplos dos castigos divinos, era ele tomado por um terror tão grande que quase perdia a consciência (Subito tanti terrores concutiebant, ut paene exanimaretur). Eu mesmo o vi tomar parte numa discussão doutrinal, consternado com a sua aplicação, deitar-se em uma cama num quarto vizinho onde entremeava a uma invocação este verso, amiúde repetido: ‘Deus encerrou todos os homens no pecado para fazer misericórdia a todos’ (Conclusit omnes sub peccatum ut omnium misereatur)’”. Lutero se esforça aqui para lançar sobre Deus a responsabilidade de suas faltas. Ora, os homens não estão encerrados no pecado; eles têm a liberdade de recusar as tentações; eles não são prisioneiros de um “arbítrio pessoal”, como afirmou Lutero. Cochlaeus nos conta sobre uma crise pela qual Lutero passara quando era monge. Assistindo ao coro, na leitura do evangelho do possesso, em São Marcos, ele prostrou-se ao chão clamando: “Esse não sou eu, não sou eu!”

Em um fragmento de Conversas à mesa, conta-se sobre um diálogo de Lutero com Léonardt, pastor de Guben, em 1551: “Ele nos contou-nos que, enquanto fora prisioneiro, o diabo o havia cruelmente atormentado e riu prazeroso quando ele havia pegado uma faca em sua mão, pois dissera: ‘Pois bem! Mata-te!’ Foi-lhe também preciso muitas vezes jogar a faca para longe de si. Igualmente, quando viu uma linha no chão, ele a recolheu e a havia unido de tal modo que poderia fazer uma corda para enforcar-se. O diabo o havia perturbado tanto que ele não era mais capaz de recitar o Pai Nosso nem ler os Salmos que, habitualmente, eram-lhe bem conhecidos. Então o Doutor Lutero respondia-lhe: Aconteceu-me também muitas vezes de, quando tinha uma faca na mão, meu espírito ser tomado de pensamentos tão negativos que frequentemente não pude rezar e o diabo então expulsou-me de meu quarto…”

“É impossível, conclui Dalbiez, contestar que Lutero foi torturado pela ideia de suicidar-se… Uma vez submergido o livre-arbítrio, não se trata mais de uma tentação, mas de uma impulsão mórbida…” Afirmar que o livre-arbítrio foi submergido equivale a dizer que a graça de Deus não pode salvar o pecador, pois essa graça se dirige sempre à nossa liberdade. É, portanto, uma blasfêmia contra Deus.

Prossigamos nessa investigação. Lutero permaneceu até sua morte professor de Sagrada Escritura em Wittenberg. Entre seus alunos, o jovem Jerônimo Weller era seu discípulo predileto. Ele também era dado à melancolia, mergulhado em uma tristeza mórbida da qual tinha dificuldade de sair. Lutero enviou-lhe seus conselhos:

“Todas as vezes em que o demônio te atormentar com esses pensamentos de tristeza, procura logo a sociedade dos teus semelhantes, ou põe-te a beber ou jogar, faz gracejos, procura divertir-te. Às vezes é preciso até cometer um pecado por ódio e desprezo pelo diabo, a fim de não lhe dar a ocasião de criar-nos escrúpulos por nada…”

“E acreditas que tenho outra razão para beber cada vez menos água, ter cada vez menos recato em minhas palavras e amar cada vez mais as boas refeições? Por aí, eu também, quero zombar do diabo e atormentá-lo, ele que se preparava para me atormentar e zombar de mim! Oh! Se eu pudesse encontrar enfim alguns bons pecados para ludibriar o diabo, para fazê-lo compreender que não reconheço nenhum pecado e que minha consciência não me acusa nenhum! Devemos afastar, absolutamente, o decálogo inteiro de nossos olhos e de nosso espírito, nós a quem o diabo ataca e atormenta assim…”

Em um comentário de 1535 à Epístola aos Gálatas, Lutero se pergunta como a lei foi revogada. Trata-se, sabemo-lo bem, da lei mosaica. Eis o que ele responde:

“Ela foi inteiramente revogada, sem reserva, de modo que não pode mais nem acusar, nem atormentar o fiel, doutrina da mais alta importância, que se deve pregar sobre os telhados, pois traz consolação às consciências, sobretudo nos momentos em que o terror nos oprime. Disse-o várias vezes e repito ainda, porque disso nunca se fala o suficiente, o cristão que reter pela fé o benefício do Cristo está absolutamente acima de toda lei. Está liberto de todas as obrigações quanto à lei… Quando Tomás (Santo Tomás de Aquino) e os outros teólogos da Escola falam sobre a lei de Moisés, dizem que as leis judiciárias e cerimoniais dos judeus foram revogadas, mas que isso não ocorreu às leis morais (isto é, o Decálogo). Eles não sabem o que dizem…”

Há em Lutero, portanto, duas afirmações que parecem contraditórias, mas que de fato se complementam. Ele começa afirmando que o homem está encerrado no pecado, que não pode escapar de sua consciência senão transmitindo o pecado para o Cristo. Confissão de impotência humana para com o Bem, negação do livre-arbítrio. Em um segundo momento, reivindica uma libertação a respeito das leis morais. Opõe, portanto, uma recusa a uma ordem natural pensada por Deus e inscrita em nossa natureza, uma recusa a todo ditame da razão expresso pela consciência. Ele deseja poder deixar-se conduzir pelas paixões irracionais e violentas e abafar, ao mesmo tempo, as repreensões da sua consciência, com mentiras e sofismas que não saberiam enganá-lo. É a quadratura do círculo. O que resta é um desespero definitivo do qual não se pode mais escapar.

Certo dia, pouco tempo antes de morrer, Lutero estava sentado para um boa noite de verão num banco solitário, ao fundo do seu jardim em Wittenberg. Sua esposa, Catarina Bora, veio acompanhá-lo. Ele estava imerso num silêncio lúgubre; seu pensamento havia tomado a direção do céu. De repente exclamou: “Ó belo céu, jamais ver-te-ei!” A infeliz Catarina Bora, aterrorizada com o que acabara de ouvir, levantou-se e se aproximou dele: “Mas e se voltássemos atrás?, disse ela com voz trêmula — Não, respondeu Lutero, inútil pensar nisso — Por quê, então? — Porque a charrete adentrou demais na lama”. E o infeliz, para fugir da vista desse céu que excitava em sua alma tantos remorsos, levantou-se e foi se fechar em sua residência. A graça de Deus havia, no entanto, passado naquele momento por uma reflexão de sua esposa. Uma pena!

Loucura obsessiva que não o deixava mais, seu desespero lhe corroía o coração. “O infeliz queria por vezes, escreveu Ed. Drumon, buscar um refúgio na oração, porém não conseguia mais. Sua própria oração era um grito de ódio: ‘Eu não consigo rezar sem maldizer; se digo: Santificado seja o vosso nome, eu recomeço: Maldito, condenado seja o nome de papista! Se digo: Venha a nós o vosso reino! recomeço: Maldito, condenado, aniquilado seja o papado! Se eu digo: Seja feita a vossa vontade, recomeço: Malditos, condenados sejam os intentos dos papistas! Eis a minha oração…’”

A vida do apóstata se tornara um verdadeiro inferno. Ele temia a morte ao lembrar de seus votos. “O mundo está cansado de mim e eu estou cansado dele, declarava. O divórcio logo acontecerá… Ah, se houvesse um turco para me matar!…”

Em suas Conversas à mesa, havia escrito: “O diabo conduz primeiramente os homens à desobediência e à traição, como Judas, em seguida os força ao desespero, de modo a terminarem por se enforcar ou estrangular”. Porque a voz do diabo tem um “som tão terrível que ocorre aos homens, após um colóquio noturno com o Demônio, serem encontrados mortos no dia seguinte; isso, acrescenta ele, quase me aconteceu muitas vezes”. Essas reflexões mostram como esse homem tinha uma visão justa sobre seu próprio itinerário. É bem verdade que o suicídio não é necessariamente e nem sempre um ato de loucura, ele pode ser também um ato de suprema lucidez na possessão demoníaca.

Eis a exposição de sua morte, feita por seu criado, Kudtfeld, narrativa publicada pelo sensato Sedúlius, em 1606:

“Martinho Lutero, na noite que antecedeu a sua morte, deixou-se vencer por sua habitual intemperança, e com tanto excesso, que fomos obrigados a carregá-lo totalmente embriagado e deitá-lo em seu leito… No dia seguinte retornamos ao dormitório de nosso patrão para ajudá-lo a vestir-se, como de costume. Vimos então, ó dor, nosso patrão Martinho pendurado sobre seu leito e miseramente estrangulado. Logo anunciamos aos príncipes, seus convivas da véspera, o execrável fim de Lutero. Estes, tomados de terror como nós, nos encorajaram por mil promessas e pelas mais solenes súplicas, a guardar sobre aquele acontecimento, um profundo e eterno silêncio, a fim de que nada fosse divulgado; em seguida nos pediram para colocar o horrível cadáver de Lutero em seu leito e dizer ao povo que nosso patrão havia subitamente deixado este mundo”.

O doutor de Coster, chamado, constatou a boca torta, o lado direito do rosto escuro, o pescoço roxo e deformado, como se tivesse sido estrangulado. Pode-se verificar esse diagnóstico em uma gravura feita no dia seguinte de sua morte por Lucas Fortnagel e publicada por Jacques Maritain em sua obra Trois réformateurs, na página 49.

Neste livro, Jacques Maritain dá uma lista impressionante dos amigos, companheiros e primeiros discípulos de Lutero que se suicidaram. Foi uma verdadeira epidemia. Georges Besler, por exemplo, um dos primeiros propagadores do luteranismo em Nuremberg, caiu numa melancolia tão profunda que, em 1536, abandonou sua mulher no meio da noite e cravou um punhal no meio do peito…

Há uma ironia amarga no espetáculo desses pregadores luteranos que escrevem obras de consolação contra o medo da morte e da cólera de Deus, contra a tristeza, contra a dúvida sobre a graça de Deus e a Felicidade eterna. Eles não sabem como exaltar a consolação trazida pelo “Novo Evangelho” contra a angústia que, segundo suas palavras, a doutrina católica causaria, e foram assim obrigados a chamar publicamente atenção para o crescimento da tristeza e dos suicídios.

Eles publicam obras como esta: J. Magdeburgius: “Um bom remédio para adoçar as penas e tristezas dos cristãos que sofrem”. (Lübeck, 1555)

É certo que um ensino religioso que pretende negar ao homem seu livre-arbítrio, retira-lhe assim a própria possibilidade de salvação eterna e o entrega ao desespero e suicídio.

[Fonte: Cahiers Barruel nº 21, 1992]

Tradução: Permanência