“Uma espécie de teósofo me disse: “O bem e o mal, a verdade e a mentira, a loucura e a sanidade, são apenas aspectos do mesmo movimento ascendente do Universo”. Já nessa época me ocorreu perguntar: “Supondo que não exista diferença entre o bem e o mal, ou entre a verdade e a mentira, qual é a diferença entre ascendente e descendente?”
G.K.Chesterton
Para encontrar esse incomparável fenômeno, o indiferente da cruz, não é preciso nenhum empreendimento particularmente audaz. Não se trata de exemplar precioso, de coisa rara como um eclipse do sol que leva o astrônomo entusiasta a climas exóticos com seus óculos e sua tábua de logaritmos. Nenhum colecionador se deterá um minuto só diante dessa coisa que julgamos incomparável e incompreensível, porque o indiferente, o homem para quem o sim e o não tanto fazem, que se equilibra onde parecia impossível o equilíbrio, esse assombro enfim, tornou-se a coisa mais banal do universo. Está em todos os lugares e seu nome é legião. Para encontrá-lo basta abrir uma porta, atravessar uma rua, debruçar-se numa janela, atender um telefone.
Apesar disto, porém, ainda paramos muitas vezes, espantados diante da indiferença. Com todas as explicações clássicas sobre o assunto, tiradas da história dos últimos séculos, esclarecidas pela laicisação progressiva de todos os países cristãos, apesar da maçonaria, da economia política, do industrialismo, das guerras, da renascença e das revoluções, apesar de tudo o que se diz, seria sempre razoável esperar que os homens se dividissem e tomassem posição diante de Deus. Seria compreensível, digamos romanticamente, insensatamente, (como quem não pode compreender o contrário) que uma agitação se perpetuasse, que ao menos houvesse sempre um furor de negar lutando contra a loucura de crer. Os descendentes de Caim continuariam a assassinar os descendentes de Abel, mas a luta teria lugar em torno de um ofertório. Sob esse ponto de vista nada é mais compreensível do que essas boas e nítidas perseguições que Deus consente para que num plebiscito urgente, nervoso, os homens se separem ficando uns à direita e outros à esquerda. Tudo é compreensível, menos o indiferente.
Esse problema aflige-nos todos os dias e em todos os lugares, produzindo um estado de espírito muito mais propenso às conferências do que às orações. Um escrúpulo contínuo que se espalha numa gradação insensível desde as raias do respeito humano até os limites do ativismo frenético, se insinua em nossas ações. Cada um tem um programa, cada oportunidade que parece surgir logo se demonstra perdida. Quem cala é individualista e quem fala é energúmeno.
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Então, quando estamos suficientemente aturdidos, aparecem-nos sugestões singulares propondo, como um remédio para nossos escrúpulos, uma técnica especial para agitar as indiferenças, para propagar a notícia da Salvação, pelas esquinas, com os recursos da física e da química, com os sons dos alto falantes e as cores das anilinas nos cartazes vistosos.
As últimas experiências humanas, nos cadinhos das políticas efervescentes, trouxeram contribuições preciosas na arte de convencer. Todo mundo sabe que meia dúzia de especialistas, dispondo de certos aparelhos, tendo um orçamento folgado e contando com o apoio da polícia, pode forçar o sincronismo de cinqüenta milhões de encéfalos complacentes. A técnica marxista baseou-se nesse fato elementar, a nazista também. São táticas de vida, no sentido spengleriano, fáceis, primárias, a serviço de certas ambições, baseadas na fome e no medo. Então, parece que o caminho está aberto para nós, os aflitos da indiferença, com esses processos de tão comprovada eficiência.
Dêem-nos uma rede de estações de rádio, dois ou três jornais, uma brigada de choque para responder às objeções, e faremos o país inteiro crer. O mesmo processo que foi utilizado para que os homens fugissem dos altares poderá servir para fazê-los voltar cabisbaixos e mansos. Desde já adivinhamos o rápido desenvolvimento desse apostolado técnico. Teremos especialistas, escritórios, datilógrafas, agentes em todos os Estados, aparelhos, laboratórios, amplificadores, retortas, e por cima de tudo isso uma técnica para as técnicas, destilação de recursos psicológicos, formando um quintacolunismo infiltrante, com o Cristo a socapa, disfarçado com óculos escuros, para não escandalizar o descrente, para que o interessante e sensitivo indiferente não abotoe o casaco num gesto de resguardo!
Mas no fim de poucos dias, se a volúpia da atividade pela atividade nos permitir um minuto de reflexão, descobriremos com desânimo que toda essa técnica aplicada às massas não passa de uma imitação. Estaremos imitando o “imitador”, e, como é regra, imitando o mal. Nunca os católicos poderão organizar uma propaganda, um congresso, com o impressionante aparato das cerimônias nazistas. Qualquer parada cívica deixará numa sombra de mediocridade as nossas passeatas de apostolado técnico.
Realmente essa idéia de por ao serviço de Deus os processos da queda está cheia de erros de fácil demonstração. Em primeiro lugar há um equívoco nas palavras, uma espécie de calembourg, quando se diz que uma propaganda faz alguém crer. Equipara-se a Fé com um estado psicológico que pode ser obtido pela hipnose ou pela sugestão.
Em segundo lugar (se ainda é preciso) aquela idéia de utilizar os recursos da queda para a salvação contém o que poderíamos chamar o fundamento de uma teologia algébrica, uma doutrina do menos por menos dá mais, pela qual a queda e a salvação seriam reversíveis. Ora, o plano de Deus (se somos católicos!) nos parece essencialmente, fundamentalmente irreversível por isso que a Encarnação trouxe aos homens a Salvação, não pelo voltar atrás, pelo passar uma esponja em cima da culpa (e não se fale mais nisto), mas ao contrário, pela transição. A salvação exige que atravessemos o Cristo, liberta do pecado sem extinguir o pecado, e volta-se como a ponta duma agulha imantada para o pólo escatológico que contém a consumação de tudo e a chave dos mistérios. A reversibilidade, o algebrismo das essências, parece impossível ao próprio Deus porque contém em si o sentido do nada; o Logos é irreversível pela força do Ser, do Ego-sum
Por isso, e por mais outras dez mil razões, não será uma tática, um truque, que poderá resolver o que Deus só pode fazer com uma crise, com um paradoxo, com a cruz.
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A indiferença é um clima, é o ambiente do admirável “A esfera e a Cruz”, de Chesteton, em que nem se admite o duelo entre o sim e o não. A Inglaterra da época vitoriana estava digerindo um império, tinha tudo, os navios chegavam carregados de todos os produtos do mundo para que as usinas inglesas tocassem a matéria bruta com a vara mágica do seu industrialismo. E os produtos voltavam para os países exóticos, enobrecidos, talismãs do progresso, para que certos baronetes pudessem ter os melhores cavalos do mundo. Mas, mesmo assim, nessa atmosfera parada, quando menos se espera, arma-se uma revolta e no meio do ambiente de ricaços surge o fenômeno Newman e o fenômeno Chesterton.
Hoje o mistério inglês toma um aspecto mais nítido, as toneladas de bombas exigem uma decisão. Na Alemanha nazista também a indiferença é quase impossível. Quando lemos nos jornais as notícias das perseguições contras as Igrejas da Alemanha ou da Rússia, julgamo-nos melhores, mais civilizados, porque resolvemos o problema religioso na inofensiva moleza do indiferença. Os alemães ou os russos, ao menos se definem, se colocam, e muitos deles, na urgência da vocação, levantam-se, acham-se, recebem de Deus a marca oficial, tornam-se documentos vivos selados com o martírio. Aqui, ao contrário, por um insondável mistério, gozamos o ar condicionado das igrejas de Laodicéa. Na tepidez de nosso clima e na amenidade de nossos costumes preferimos oficializar o desejo de um grande prêmio publicando, como um apoftegma nacional, que a vida assim é melhor…
Afinal, que poderemos fazer pelos indiferentes, por esses que enchem as ruas, que não querem ser amolados? Talvez nada. Talvez seja razoável pedir em nossas orações a atenção da cólera divina. Doutro modo não se vê nenhum proveito, porque, em definitivo, procurar convencer os indiferentes equivale a dizer que a mediocridade é melhor do que a indiferença.
Em qualquer caso a decisão última, a transição que atravessa o Cristo, não tem lugar nessa pequena mudança de situação que só poderá servir para estatísticas. Transformar indiferentes em medíocres, que não sejam quentes nem frios, se reduz apenas em afirmar uma questão de gosto, uma distinção sutil, a saber que a recusa é pior do que o vômito.