Enganam-se, pois, os pecadores. Ao se privarem da luz da fé, tornam-se cegos e caminham tateando, agarrando-se a tudo que encontram. Com o olhar obscurecido, afeiçoam-se aos bens materiais e passageiros, iludem-se como tolos que vêem o ouro e não o veneno.
Deves saber que as realidades materiais, com seus prazeres e deleites, quando conseguidas e conservadas sem mim, só por egoísmo desordenado, não passam de escorpiões enganadores. Na tua juventude, depois da visão da árvore (14.8), eu te fiz ver escorpiões com cabeça de ouro e cauda de veneno. O ouro e o veneno confundiam-se, mas o aspecto que primeiro se via era do ouro. Apenas conseguiam escapar do veneno aqueles que estavam iluminados pela fé. Como te disse naquela ocasião, tais pessoas eram as que eliminavam o veneno da própria sensualidade. Os que preferiam possuir bens materiais, eram os que usavam sua inteligência na aquisição, posse e uso do “ouro” deste mundo. As almas desejosas de grande perfeição, desprezavam o ouro, afetiva e efetivamente.
Como te afirmei aquela vez, estes últimos são os que seguem os conselhos (evangélicos) quanto ao desejo e quanto à prática, conforme o legado de Cristo. Outros, na posse de bens, seguem os conselhos somente pelo desejo, não na vida prática.
Como os conselhos estão ligados aos mandamentos, ninguém vive estes últimos se não segue os conselhos, senão efetivamente, pelo menos quanto ao desejo. Em outras palavras, o cristão que possui bens, deve fazê-lo na humildade, sem orgulho, como coisa emprestada, não própria. Dou-vos os bens para o uso. Tanto possuís, quanto concedo; tanto conservais, quanto permito; e tanto permito, quanto julgo útil à vossa salvação. Tal há de ser a vossa atitude quanto ao uso dos bens materiais. Assim fazendo, o cristão obedece aos mandamentos – amando-me sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo – e conserva o coração desapegado das riquezas, afetivamente, como nada possuindo. Não se apega aos bens, não os possui em oposição aos meus desígnios.
Possui externamente, ao passo que seu íntimo é pobre. Tais pessoas, como disse (14.11), eliminam o veneno do egoísmo. São os cristãos da “caridade comum”.
Os cristãos da “caridade perfeita” já obedecem aos mandamentos e seguem os conselhos afetiva e efetivamente. Com simplicidade, praticam quanto o meu Filho aconselhou na passagem do jovem rico (Mt 19,16ss). Quando este lhe perguntou: “Que poderia eu fazer, Mestre, para alcançar a vida eterna?”, Ele respondeu: “Observa os mandamentos da lei”. Então o jovem prosseguiu: “Eu já os observo”. Jesus retomou:”Bem, se tu queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres”. O jovem ficou triste, porque amava exageradamente os bens que possuía. Os perfeitos não se comportam assim, ou seja, após ter praticado os mandamentos, deixam o mundo com seus prazeres, mortificam o corpo com penitência, fazem vigílias e preces contínuas e humildes.
Os cristãos da “caridade comum”, embora possuam bens, vão também eles para o céu. Não são obrigados a possuir; se querem tê-los, devem comportar-se na maneira explicada. Não é pecado ter bens. Todas as coisas são boas e foram criadas por mim para utilidade dos homens. Mas tais cristãos não devem virar escravos dos prazeres sensíveis. Se querem ter posses, façam-no; mas como dominadores delas, não como dominados. O afeto do coração deve estar em mim, não nas coisas externas; elas não pertencem aos homens, são dadas em empréstimo. Não tenho preferências por pessoas ou posições sociais; somente pelos desejos do coração. Todo homem, qualquer que seja sua condição social, tem possibilidade de agradar-me, caso possua uma vontade reta e santa.
Quem possui bens materiais dessa forma? Os que anularam o “veneno” das riquezas, desprezando a sensualidade e amando a virtude. Quem afastar de si o apego desregrado e se orientar para mim na caridade e no santo temor, tal pessoa poderá escolher o estado de vida que quiser. Em qualquer um deles alcançará a vida eterna. Suponhamos que seja mais perfeito e agradável a mim que o homem viva interior e exteriormente despojado dos bens materiais. Se uma pessoa não sentir a coragem de abraçar tal perfeição devido a alguma fraqueza pessoal, que permaneça na “caridade comum” qualquer que seja seu estado de vida. Em minha bondade dispus que assim fosse, para que nenhuma pessoa viesse a desculpar-se por pecados cometidos em determinadas situações. Ninguém poderá dar desculpas. Sou condescendente com as tendências e fraquezas humanas.
Se as pessoas desejam viver no mundo, possuir bens, ocupar altas posições sociais, casar-se, ter filhos, trabalhar por eles, façam-no. É lícito viver em qualquer posição social; contanto que se evite o veneno da sensualidade, o qual pode conduzir à morte perpétua.
Não sendo “vomitada” 55 e medicada qual veneno, a sensualidade prejudica e mata. É ela o “escorpião” do amor mundano (v. 14.11). Os bens materiais, como disse antes, são bons em si mesmos; foram criados por mim, Bondade infinita. Os homens hão de usá-los como lhes aprouver, mas no temor e no amor autênticos. O perigo está na vontade pervertida do homem. É ela que envenena e mata a alma, quando não se purifica pela penitência e caridade. Embora pareça um remédio amargo, a confissão é eficaz para curar o veneno da sensualidade.
Vê onde está o engano dos pecadores; sendo-lhes possível possuir-me, fugir da angústia, viver alegres e consolados, preferem o mal de um bem aparente, correm atrás do “ouro” (v. 14.11) com desordenado amor. Cegos em grande infidelidade, não percebem a ilusão.
Envenenam-se, sem medicar-se. Carregam-se com a cruz do diabo e vivem na certeza do inferno.
O Diálogo – Santa Catarina de Sena
55 – A palavra “vomitar” quer indicar a acusação dos pecados mortais no sacramento da penitência.