De resto, devemos confessá-lo, os nossos afectos, mesmo quando são rectos e como a Deus apraz, pertencem a esta vida, não à vida futura que esperamos, e muitas vezes cedemos-lhe contra vontade. Às vezes uma emoção, apesar de não devida a um culpável desejo mas a louvável caridade, faz-nos chorar mesmo que não queiramos. Temo-los, devido à debilidade da condição humana. Mas não é assim o Senhor Jesus; a sua própria fraqueza resultou da sua potestade. Mas enquanto somos portadores da debilidade desta vida, se não tivéssemos nenhum deles seria caso para dizermos que a nossa vida era defeituosa. Por isso o Apóstolo vituperava e detestava certos homens que dizia serem desprovidos de afetos. Também o salmo sagrado incrimina aqueles de quem diz:
Esperei por alguém que partilhasse a minha tristeza e ninguém apareceu [1]
Não experimentar a dor enquanto estamos neste lugar de miséria, obtém-se, como sentiu e disse um escritor deste século:
Obtém-se muito caro – pelo preço da crueldade da alma e da insensibilidade do corpo. [2]
Por isso o que os gregos chamavam ἀπάθεια (que, se pudesse ser, em latim se chamaria impassibilitas = impassibilidade) – com a condição de termos de a considerar (na alma e não no corpo) como uma vida livre de todo o sentimento oposto à razão e perturbador do espírito – é, com certeza, uma coisa boa e desejável, mas não é desta vida. É a voz, não de quaisquer homens mas dos mais eminentes em piedade, em justiça e em santidade que diz:
Se dissermos que estamos sem pecado, iludimo-nos a nós próprios e a verdade não está em nós. [3]
Essa ἀπάθεια só deixará de existir, portanto, quando no homem deixar de haver pecado. Porém, agora já se vive bastante bem, vivendo sem pecado – e quem julgar que está sem pecado consegue, não viver sem pecado, mas viver sem perdão.
Mas se é ao estado de alma sem afecto algum que se chama ἀπάθεια quem não terá esta insensibilidade pelo pior dos vícios? Pode dizer-se com razão que a perfeita beatitude não conhecerá o aguilhão do temor nem o da tristeza. Mas quem ousaria afirmar, sem de todo se afastar da verdade, que o amor e a alegria serão dela banidos? E se a ἀπάθεια é o estado em que nenhum medo apavora e nenhuma dor nos oprime, com certeza que é preciso excluí-los desta vida se quisermos viver rectamente, isto é, como a Deus apraz; mas temos simplesmente que esperar pela vida eterna e bem-aventurada que nos foi prometida.
[…]
Sendo assim, como há que levar uma vida recta para se chegar à vida bem-aventurada, todos estes afectos são rectos numa vida recta e perversos numa vida perversa. Mas a vida bem-aventurada e eterna possuirá um amor e uma alegria, não apenas rectos mas também certos: sem temor e sem dor. Assim já de certo modo aparece o que devem ser, nesta peregrinação, os cidadãos da Cidade de Deus, vivendo como ao espírito apraz, não como apraz ao homem – e o que serão um dia na imortalidade para que caminham.
Mas a cidade, isto é, a sociedade dos ímpios que vivem como aos homens apraz e não como apraz a Deus, que professam doutrinas humanas e demoníacas no próprio culto das falsas divindades com desprezo da verdadeira divindade – essa cidade é atormentada por aqueles afectos como outras tantas doenças e paixões. E se alguns desses cidadãos parecem dominar e regrar, por assim dizer, tais afectos da alma, tornam-se tão soberbos e tão arrogantes na sua impiedade que se incham tanto mais quanto menos sofrem. E se os outros na sua vaidade, tanto mais monstruosa quanto mais rara, se tomam de amores pela sua própria impassibiliade ao ponto de se não deixarem comover nem excitar nem inclinar pelo menor sentimento, perdem toda a humanidade sem atingirem a verdadeira tranquilidade. Efectivamente, porque é duro, nem por isso é correcto, nem, porque é insensível, é por isso sadio.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus
[1] Sustinui qui simul constristaretur, et non fuit. (Sl 98, 21)
[2] Non sine magna mercede contingit imnmanitatis in animo stuporis in corpore. Crantor, citado por Cícero nas Tusculanae Disputationes.
[3] Si dixerimus quoniam peccatum non habemus, ipsi nos seducimus, et veritas in nobis non est. (1 Jo 1, 8)