Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
Fonte: Courrier de Rome n° 687 – Tradução: Dominus Est
DA ENDOXA À CIÊNCIA.
1. A endoxa(1) equivale somente a uma probabilidade, que normalmente fornece a presunção necessária em favor da verdade declarada. O fato é que ela não passa, nem mais nem menos, de uma opinião seriamente fundamentada. Ela difere, como tal, da ciência, que sozinha pode fornecer uma verdadeira certeza. Essa certeza da ciência se baseia na evidência fornecida por argumentos verdadeiramente demonstrativos, que diferem, como tal, do simples sinal que advém da adesão quase unânime da grande maioria das pessoas à verdade em questão. Para ir além da endoxa, é necessário, portanto, recorrer a uma demonstração científica e, neste caso, em matéria teológica, esta nasce no argumento de autoridade que representa o ensinamento do Magistério.
2. A compreensão adequada disso requer certo domínio. E isso deve ser alcançado particularmente em uma matéria como a eclesiologia, cujos dados essenciais estão diretamente envolvidos na solução das graves dificuldades da atualidade. O autor do panfleto publicado na edição de 27 de março de 2025 do site da revista La Nef reconhece isso, afinal: “Alguns defensores da FSSPX sustentam que D. Lefebvre não cometeu um ato cismático, pois, de acordo com eles, a prerrogativa de escolher os bispos não seria uma prerrogativa que pertence ao Papa por direito divino, mas apenas por direito eclesiástico. No entanto, o direito eclesiástico pode reconhecer exceções em casos de estado de necessidade, o que permite a justificação das sagrações. O Pe. Gleize, teólogo oficial da FSSPX, resume bem essa posição em seus escritos. No entanto, ele reconhece que, se sagrar um bispo contra a vontade do Papa for proibido por direito divino, logo, as sagrações de 1988 seriam cismáticas. Portanto, essa é única premissa que deve ser examinada. E isso se dá por meio de uma leitura diligente do Magistério”.
3. Uma leitura diligente do Magistério: eis o que é dito e reflete exatamente o que queremos dizer aqui. Todavia, na opinião do autor destas linhas, existe o receio de que essa dedicação em questão não se oriente no sentido da profundidade — e da verdadeira compreensão do ensinamento dos Papas. É inútil, de fato, acumular diversas citações do Magistério que são inapropriadas à questão a ser resolvida. Com muita frequência, os apologistas do La Nefe de outros lugares, quando se propõem a contrariar as posições da Fraternidade e citações, deixam claro que lhes falta uma verdadeira compreensão sobre elas, bem como as apresentam aos leitores de maneira superficial, sem oferecer o devido entendimento.
4. Receia-se que esse modo de proceder produza algum efeito sobre os infelizes leitores da obediência Ecclesia Dei, que ingenuamente acreditam ter motivos para se confortar em sua rejeição ao suposto “cisma” de D. Lefebvre. As longas e repetidas citações do Magistério podem impressioná-los, em vista de uma erudição tranquilizadora e de um aparente recurso ao argumento principal e decisivo, que é o da autoridade do Magistério. Mas, em última análise, tudo depende mais da credibilidade que os leitores atribuem ao autor das citações. E citar Pio XII, sem oferecer a devida compreensão de seus textos, é racional? A fé deve buscar a inteligência, e essa busca cabe a uma ciência com métodos devidamente comprovados: estes não são improvisados. Aqui, como em outros lugares, a “tradição” não é apenas a transmissão de um depósito, é também a formação das inteligências.
Os textos de Pio XII.
5. O site La Nef busca se basear na Carta Encíclica do Papa Pio XII, Ad apostolorum principis,de 29 de junho de 1958. “Pio XII também ensinou”, escreve o apologista eclesiástico, “que as sagrações episcopais sem mandato pontifício são: “graves ataques à disciplina e à unidade da Igreja, e (que) é nosso dever expresso lembrar a todos que a doutrina e os princípios que regem a constituição da sociedade divinamente fundada por Jesus Cristo são inteiramente diferentes.””
Mais adiante, ele lembra que “ninguém pode conferir legitimamente a consagração episcopal sem a certeza prévia do mandato pontifício. Uma sagração assim conferida contra o direito divino e humano, que constitui um gravíssimo ataque à própria unidade da Igreja, é punível com excomunhão.” […] Assim, o Magistério ensina claramente que somente o Papa tem o privilégio do direito divino de escolher os membros do Colégio Episcopal em virtude de sua primazia. Da mesma forma que somente Cristo envia seus discípulos por todo o mundo, somente o Vigário de Cristo envia (expressa ou tacitamente) os bispos por todo o mundo. Isso implica que ninguém jamais pode se tornar membro do Colégio Episcopal contra a vontade do chefe do Colégio. A sagração de bispos contra a vontade expressa do Papa é, portanto, necessariamente de natureza cismática”.
6. Pio XII é invocado ao mesmo tempo que Santo Inocêncio I(2), São Leão Magno(3) e Pio IX(4). Mas é legítimo questionar se o autor da matéria publicada pelo La Nefcompreendeu todo o significado de seus escritos. Pois essas três passagens aludem claramente ao poder de jurisdição, que é comunicado não pela sagração episcopal, mas pelo ato da vontade do Papa que confere a missão canônica ao bispo eleito, esteja ele já sagrado ou não. É preciso repetir essas evidências (5)? O poder episcopal é especificamente duplo: bispo é aquele que possui e exerce o poder episcopal de ordem, ou seja, o poder de administrar o sacramento da ordem e o da confirmação; por outro lado, bispo é aquele que possui e exerce o poder episcopal de jurisdição, ou seja, o poder de governar uma parte da Igreja, sob a jurisdição suprema e universal do Romano Pontífice. Os dois poderes são distintos e separáveis; um pode ser encontrado sem o outro em um determinado sujeito, embora, na maioria das vezes, os dois estejam unidos no mesmo, que será chamado de “bispo” nos dois sentidos do termo. E, o que importa aqui, os dois poderes não são comunicados da mesma maneira: o poder episcopal de ordem é comunicado por qualquer bispo (mesmo que não seja o Papa) validamente sagrado e usando o rito da Igreja; o poder episcopal de jurisdição é comunicado pelo ato da vontade do Bispo de Roma somente, e de nenhum outro. Os textos citados por Santo Inocêncio I, São Leão Magno, Pio IX e finalmente Pio XII falam precisamente da comunicação do poder de jurisdição, que, como dizem esses Papas, compete exclusivamente ao sucessor de Pedro. Porém não se pode falar aqui do poder de ordem; ou, se se trata dele, deve-se reconhecer que, junto à comunicação deste poder pela consagração, existe também a comunicação de um poder de jurisdição. Os textos invocados ou não cogitam de forma alguma o poder de ordem, ou se referem a ele por acaso ou… de outra forma. E é por isso que usar esses textos a respeito do poder de ordem episcopal seria cometer o sofisma do acaso (6). Ou simplesmente cometer o erro escolar de responder algo totalmente fora do assunto.
7. Em particular, é claro que quando Pio XII fala de uma sagração episcopal realizada “sem a confirmação prévia do mandato pontifício”, trata-se precisamente (como todo o contexto indica) de uma sagração à qual está associada a atribuição de jurisdição. Portanto, Pio XII não considera a sagração episcopal como tal. Ele fala formalmente da atribuição ilícita do poder de jurisdição, cometida por ocasião de uma sagração episcopal. O texto fala, de fato, de “hujusmodi consecratio” (7), referindo-se, portanto, aos esclarecimentos dados na frase anterior. Esta frase fala precisamente da “instituição canônica dada a um bispo“, para reafirmar que esta é reservada somente ao Romano Pontífice: “Do que vos explicamos, segue-se que nenhuma outra autoridade além da do Pastor Supremo pode invalidar a instituição canônica dada a um bispo; nenhuma pessoa ou assembleia, de sacerdotes ou leigos, pode arrogar-se o direito de nomear bispos; ninguém pode legitimamente conferir a consagração episcopal sem a prévia certeza de um mandato pontifício.” (8). Se a sagração episcopal não é legítima sem a certeza de um mandato pontifício, é na medida em que esta sagração é combinada com a atribuição de jurisdição. De fato, o texto diz: “uma sagração assim conferida…”, ou seja, conferida ao mesmo tempo que a atribuição de um poder de jurisdição, que somente o Papa pode conceder.
8. O que podemos, e devemos dizer, com base nos textos citados do Magistério, é que a sagração de um bispo, à qual está vinculada a atribuição de um poder de jurisdição, depende, por direito divino, da vontade exclusiva do Papa. Mas nenhum desses textos pode servir como argumento de autoridade para nos obrigar a dizer que a sagração de um bispo, à qual não está vinculada a atribuição de um poder de jurisdição, depende por direito divino da vontade exclusiva do Papa. Deve-se dizer que ela depende dele, por causa da verdade divinamente revelada de que o Papa é a cabeça suprema de toda a Igreja, mas não está de forma alguma provado, pelos textos citados, que depende dele por direito divino. Segundo a opinião de teólogos e canonistas, está provado que ela depende apenas do direito eclesiástico, tal como depende, em última análise, a ordenação de um sacerdote ou de um diácono (9).
A Leitura Sofística do La Nef.
9. O raciocínio de La Nef acumula citações do Magistério sem fornecer uma compreensão precisa delas. É um raciocínio falso, um sofisma, cuja falsidade se baseia na confusão entre a sagração concedida com jurisdição (da qual falam os textos de Pio XII e todos os outros textos citados) e a sagração concedida sem jurisdição (da qual os mesmos textos não falam).
Continua…..
Notas:
(1) Ver o artigo “Une endoxe artificielle?” neste número do Courrier de Rome.
(2) “Da Sé Apostólica provêm o episcopado e toda a sua autoridade” (Carta 29, ao Concílio de Cartago de 417, DS n.º 217); “Pedro é o autor do nome e da dignidade dos bispos” (Carta 30 aos Padres do Sínodo de Mileto, DS n.º 218).
(3) “Tudo o que Jesus Cristo deu aos outros bispos, deu-lhes por meio de Pedro” (Sermão 4, Para o seu Aniversário, Migne, Patrologia Latina, vol. LIV, col. 150).
(4)”Quanto ao nosso direito de escolher um candidato fora dos três propostos, não nos pareceu oportuno omitir, para que no futuro a Sé Apostólica nunca fosse obrigada a recorrer ao exercício desse direito. Além disso, mesmo que não tivéssemos mencionado isso, esse direito e esse dever permaneceriam em toda a sua integridade na cátedra de São Pedro. Com efeito, os direitos e privilégios concedidos a esta cátedra pelo próprio Jesus Cristo podem ser atacados, mas nunca lhe podem ser retirados, e não está no poder de um homem renunciar a um direito divino que ele pode, por vezes, ser obrigado a exercer pela vontade do próprio Deus” (Carta Encíclica Quartus supra sobre o Cisma Armênio, 6 de janeiro de 1873).
(5) Ver os artigos publicados nas edições de setembro de 2019, julho-agosto de 2022 e outubro de 2022 do Courrier de Rome.
(6) Ver o artigo “Do Bem Pensar ao Bem Falar” na edição de maio de 2025 do Courrier de Rome.
(7) “Itaque, si huiusmodi consecratio contra jus fasque impertitur, quo facinore gravissime petitur ipsa unitas Ecclesiae, statuta est excommunicatio specialissimo modo Sedi Apostolicae reservata, in quam ipso facto incurrit qui consagrationem ex arbitrio collatam recipit, atque etiam consecrans ipse” (AAS, t. L (1958), pp. 612-613).
(8) “Ex iis, quae exposuimus, sequitur, ut nulla prorsus auctoritas, praeter eam, quae Supremi Pastoris propria est, Institutionem canonicam alicui Episcopo conces¬sam possit irritam efficere; ut nulla persona nullusve coetus sive sacerdotum sive laicorum jus sibi queat arrogare Episcopos nominandi; ut nemo consecrationem episcopalem valeat legitima conferre, nisi prius de pontificio manda constiterit” (Ibidem).
(9) Ver artigo “As sagrações: continuação… e fim?” na edição de março de 2025 do Courrier de Rome.