A BATALHA DE CAPORETTO DOS CATÓLICOS – O TRIUNFO DO CONCILIARISMO

Concílio Vaticano II precisa ser mais conhecido também pelos leigos -  Vatican News
Fonte: EreticaMente –  Tradução: Gederson Falcometa

É a fé dos católicos como a ave fênix: todos dizem que existe, onde está ninguém sabe. Conseguimos com a perífrase de um verso de Pietro Metastasio, tomando nota de uma ampla pesquisa realizada entre os italianos que se declaram católicos pela revista mensal Il Timone. A minoria que ainda vai à missa quase nunca se confessa, ignora o que é a Eucaristia e o pecado, aprova o aborto, a contracepção e o casamento homossexual. O caos reina sobre os fundamentos: assim conclui a desanimada capa do jornal.

Realmente preocupante mesmo para quem é um simples crente observador das coisas da Igreja. A Caporetto* da fé e dos passados “princípios inegociáveis” é impressionante, tendo em conta que as ideias levantadas não dizem respeito os simples batizados, mas aos praticantes, aqueles que participam dos ritos, recebem os sacramentos, pertencem a galáxia associativa e cultural chamada mundo católico. Cujos membros – mas talvez sejam aqueles a quem o cardeal Biffi chamou de “não crentes praticantes” – pensam mais ou menos como a cultura anti-religiosa dominante. A separação entre a doutrina de sempre e a conduta concreta é impressionante. A comparação com o que Jesus disse aos seus discípulos faz-nos sorrir: vós não sois do mundo, mas eu escolhi-vos do mundo. A cidade do homem já não se parece com a cidade de Deus. A própria referência a um criador parece afastar-se da sensibilidade dos “fiéis” – a quê coisa? – e Jesus Cristo é muitas vezes uma desculpa para falar de outra coisa.

As recentes Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa foram um exemplo disso. Grandes palavras, canções, ambientalismo, eco-ansiedade: o catolicismo reduzido a uma corrente verde que reflete sobre a Mãe Terra, mas não sobre o Pai Eterno. O prelado português organizador garante que não “quer fazer proselitismo”; quando acreditavam em Deus, chamavam-lhe apostolado, mas assim soa também o sino fúnebre para a organização, o edifício concreto e mundano da Igreja. Sem prosélitos, a loja fecha, salta a “persistência dos agregados” (V. Pareto), a tendência humana de preservar as organizações.

Sinais dos tempos; vem da vontade de fecha-la aí: façam eles. Mas não, pelo espírito italiano, pelas ideias, pelos costumes, pelo jeito de ser do nosso povo, o catolicismo tem sido o maior inspirador, no bem ou no mal. O colapso é vertical, mas nada surpreendente. Em Lisboa, as hóstias consagradas à Eucaristia foram abandonadas em caixas de plástico. Para quem não conhece os fundamentos da doutrina, aquelas hóstias, consagradas pelo sacerdote, são o corpo e o sangue de Jesus Cristo. Ou, pelo menos, seriam se os praticantes soubessem seu significado. Segundo a pesquisa, metade dos católicos acredita que se trata apenas de um símbolo e outros quinze por cento os consideram “uma particular hóstia que recorda o pão da última ceia”. Menos de um terço está convencido de que são “o verdadeiro corpo de Cristo”.

Fica difícil entender em que acreditam os católicos italianos, no ano do Senhor de 2023, se eles não sabem o que é a Eucaristia e se dez por cento pensam que Jesus foi apenas um homem inspirado por Deus ou mesmo um mito. Pensam em quase tudo como quer o pensamento irreligioso dominante, tanto que é difícil definir a própria noção de católico. Il Timone interroga numerosos padres e teólogos, cujas respostas são decepcionantes, complicadas, incompreensíveis para aqueles que não estão familiarizados com o “clericalês”, a linguagem rígida dos padres. Um pede para “recomeçar do encontro”, outro, resignado, propõe não se preocupar com a fé dos outros, mas com a própria, tocando, sem saber, o nervo exposto, indizível: a crise real, o drama é a perda da fé. A traição dos clérigos, dos quais apenas um põe o dedo na ferida: “precisamos de uma Igreja que vá contra o pensamento dominante sem temer que os privilégios nos sejam tirados, porque eles vão ser tirados de qualquer maneira”.

Isso mesmo: a mentalidade moderna não faz prisioneiros, é um vírus letal que infectou a nave de Pedro e seus regentes. Paulo VI intuiu isso quando disse – em 1972 – que “por alguma fissura penetrou a fumaça de Satanás na Igreja”. Não se tratava de fissuras, mas de portas escancaradas, como experimentou na duríssima acolhida de muitos setores eclesiais à Humanae Vitae, a encíclica que reafirmava a doutrina – o depósito da fé – relativa à ética familiar e à procriação depois do Concílio.

As posições dos teólogos, padres e intelectuais da época amadureceram. Os católicos – e seus pastores – adotaram o pensamento materialista e relativista. Perseguir o mundo em seu próprio terreno não leva a lugar nenhum, exceto a esvaziar igrejas e seminários e chamar proselitismo a transmissão da fé e da doutrina duas vezes milenária. As pessoas sempre escolherão o original em vez da cópia (rascunho), fazendo a pergunta fatídica: se eles não acreditam, por que eu deveria? Ou seguirá a corrente, arrastar-se-á à igreja aos domingos sem acreditar numa palavra das homilias cansativas em que a palavra Deus está ausente e viverá como lhe é mais confortável.

Bergoglio fala de uma Igreja em saída: é verdade, ela sai de si mesma para se esgueirar para o beco sem saída em busca de um papel, de um assento na última fila do grande espetáculo da pós-modernidade. Thomas Stearns Eliot tinha razão nos Coros de A Rocha ao se perguntar se foi o povo que abandonou a Igreja ou é a Igreja que abandonou o seu povo? Precisamos de menos igrejas e mais tabernas, exclama um de seus personagens: o objetivo foi alcançado. A pandemia viu templos fechados com tábuas e desinfetante em vez de água benta. Por que devo viver como dizem os padres, se os exemplos que eles dão, na ética pessoal, na vida íntima, na busca dos bens mundanos, são aqueles que a crônica mostra com desconcertante frequência?

Não podemos nos surpreender se os católicos pensam como ateus e indiferentes: 44% acreditam que o aborto é um direito – não uma escolha ou uma possibilidade, propriamente um direito – 42% aprovam os casamentos homossexuais e 18% são indiferentes. Mesmo a prática da barriga de aluguel tem cerca de um quarto de apoiadores católicos, juntamente com robustos quinze por cento que se mantêm em silêncio. O divórcio e a contracepção são aceitos por uma grande maioria. Os princípios inegociáveis defendidos pelo Papa Bento XVI saltaram no coração daqueles que se declaram católicos. Uma derrota ética, prova da dramática crise da fé, mitigada, em parte, pelo fato de os crentes continuarem acreditando na existência do diabo (mal) e do inferno. Pergunta-se em que consiste a catolicidade hoje, esvaziada de conteúdo ético e o que é, para os crentes, o “kerigma”, o cerne da fé que afirmam praticar.

Uma prova do eclipse da fé foram as recentes Jornadas Mundiais da Juventude. O título do Vatican News, órgão de imprensa oficial, é ridículo: não há menção ao valor espiritual do evento, uma ênfase no fato de que Bergoglio teria chegado a Lisboa em um avião de “emissão zero de CO2″. Falso em quanto impossível. Eles falaram sobre meio ambiente e proteção do planeta, nada sobre família e abertura para receber crianças. A impressão é que para muitos participantes a JMJ foi antes de tudo um bom feriado, uma forma de conhecer pessoas e adquirir experiências. Certo, mas qual é a diferença com outros encontros juvenis, como a especificidade católica, como os princípios veiculados, para além de um humanitarismo genérico ou do pedido ingênuo de um “mundo melhor”, talvez por ser menos poluído?

É possível que a Igreja não tenha nada a dizer sobre questões como a disponibilidade da vida humana, sobre a ciência e a tecnologia “sobre-humana”, pensada como domínio e controle total sobre massas de indivíduos reduzidos a cobaias” (E. Capozzi), sobre o biopoder que é a negação radical da ideia cristã da sacralidade do ser humano? O fato é que devemos acreditar nisso e os crentes ficam desorientados a ponto de tomar o caminho do inimigo. Sem o auxílio da doutrina, a fé torna-se rala, diáfana. Os “novos católicos” dizem com sorriso estereotipado e otimismo insensato que é preciso privilegiar a “profecia” sobre o depósito da fé, ou seja, perseguir o mundo. Meio século de derrotas levaram à irrelevância e à transferência para princípios alheios, como mostra a pesquisa do Timone.

Um terço dos católicos nem mesmo se opõe à adoção por casais homossexuais e um quarto não vê problemas em úteros alugados, combinados com os incríveis quinze por cento que não se interessam por essas questões. É preciso ortodoxos como os dois Alexsandr, Dugin e Solzhenitsyn, para reconhecer que a contemporaneidade ocidental é inimiga de Deus e do espírito.

A única voz verdadeiramente poderosa para comentar a pesquisa perturbadora é a do bispo Giampaolo Crepaldi, que fala da “fé líquida”, da aceitação da secularização, da remoção da lei natural do horizonte católico, em harmonia com Bento XVI, que denunciou o “colapso da teologia moral católica”. Essa remoção eliminou a noção de direito natural e lei moral natural, perdendo a ideia de que é possível conhecer a natureza e a ordem dos princípios éticos. À objeção de que a fé não é uma ética, Crepaldi responde que o cristianismo “tem” uma ética. O problema – imenso – é que ela não é mais transmitida, ensinada, reivindicada, com as consequências que vemos. Para julgar a realidade, são necessários critérios, mas a Igreja não é mais capaz de fornecê-los.

Nossa conclusão – que Crepaldi não pode compartilhar por dever de ofício – é que os pastores não acreditam mais na ética e nos princípios católicos. Perdidos os critérios de julgamento, as pessoas ficam privadas de discernimento e acabam aceitando o inaceitável. Além disso, legiões de “inovadores” imprudentes, “em vez de confirmar os fiéis na verdade, semeiam dúvidas, criam incerteza e desorientação”. O chamado ao diálogo torna-se um álibi para justificar a inércia, o silêncio ou a aquiescência. Diante de leis injustas, princípios morais invertidos, não se pode limitar à discussão, pois “a moral não se baseia no resultado de um debate público”.

A religião apela ao eterno, não ao contingente: não pode mudar de opinião sobre tudo ou contradizer o ensinamento de sempre. Desorientar significa lançar o povo de Deus nos braços de seus inimigos. O inferno, disse Bergoglio certa vez, está vazio, pela misericórdia de Deus.Se assim fosse, não faria sentido distinguir o bem do mal. É o que está acontecendo com os crentes, por causa dos pastores que abandonam aos lobos ou subestimam a dimensão gigantesca dos desafios antropológicos, existenciais, éticos e espirituais em curso.

Cumpriram, há meio século, a escolha antropológica”. Portanto, que eles defendam o homem: dos maus professores, do mal transformado em bem, de si mesmo. Caso contrário, a pergunta do próprio Jesus no Evangelho de Lucas terá sido respondida: “mas quando vier o Filho do homem, porventura encontrará fé na terra? É a noite de San Lorenzo dos católicos, aquela das estrelas cadentes.

* Referência a batalha de Kobarid (Caporetto em italiano) na primeira guerra mundial, onde os exércitos do Reino da Itália, sofreram uma grande derrota para o Império Austro-Húngaro e seus aliados alemães. Após essa derrota, o termo “Caporetto” se tornou sinônimo de derrota e desastre na língua italiana.

 Roberto Pecchioli