A NEO PASTORAL DE FRANCISCO – PARTE II

Retorno às palavras escandalosas proferidas pelo Papa Francisco no último dia 13 de setembro.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

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1. As palavras – escandalosas – proferidas pelo Papa Francisco no último dia 13 de setembro(1) podem ser compreendidas no sentido de uma forma sútil de indiferentismo, se as entendermos à luz do Concílio Vaticano II. A constituição Lumen gentiumsobre a Igreja, completada pelo decreto Unitatis redintegratio sobre o ecumenismo e a declaração Nostra ætate sobre as religiões não cristãs recusam, com efeito, o princípio próprio do pluralismo religioso, ou seja, a ideia de igual dignidade, verdade e eficácia em matéria de salvação de todas as religiões. Para admitir o valor salvífico de todas as religiões, os ensinamentos do Vaticano II pretendem entendê-lo de modo diferenciado, em referência ao primado da Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja católica.

2. A ideia do pluralismo religioso entendida no sentido estrito foi, além do mais, objeto de uma avaliação crítica pela Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger, em uma Notificação publicada pelo Osservatore Romano de 26 de fevereiro de 2001. Naquela época, a Santa Sé aproveitou o lançamento do livro do padre jesuíta Jacques Dupuis, Vers une théologie chrétienne du pluralisme religieux(2), disponível nas livrarias em 1997, para reagir e indicar o verdadeiro sentido dos textos do Concílio que supostamente autorizavam o diálogo inter-religioso(3). A religião católica, e somente ela, representa a plenitude, ou o estado perfeito, da economia salutar, enquanto as religiões não cristãs e as confissões cristãs não católicas representam apenas um estado parcial, certamente em graus diversos, mas, não obstante, reais. Em outras palavras, e se servindo do exemplo utilizado pelo Papa Francisco em seu bate-papo com os jovens de Singapura, a religião católica, e somente ela, representa a língua mais completa para alcançar a Deus, enquanto as outras religiões não teriam a mesma precisão. Todavia, resta dizer que todas as religiões são caminhos iguais que conduzem a Deus. Para ser mitigado, o pluralismo religioso permanece o que é: uma forma nova do mesmo erro, ou uma variante.

3. O pensamento do Papa Francisco corresponde a essa variante, na continuidade do Vaticano II? A continuação de sua fala, é necessário dizê-lo, permitiria duvidar disso. “Mas o meu Deus é mais importante que o seu!”, objeta ele. “É verdade? Há apenas um único Deus, e nós, nossas religiões são línguas, caminhos para alcançar a Deus”. Se nenhuma religião pode pretender conduzir a um Deus mais importante que aquele das outras, onde está a mitigação do pluralismo? E onde está a continuidade?

4. Muito oportunamente, nesta terça-feira, 17 de setembro, o Sumo Pontífice reinante acaba de voltar a essas palavras proferidas em Singapura, para esclarecer sua extensão. O Papa Francisco declarou, com efeito, a um grupo ecumênico de jovens, que a diversidade de suas identidades religiosas “é um dom de Deus”. Em uma mensagem de vídeo divulgada em 17 de setembro, ele se dirigiu aos jovens reunidos em Tirana para o encontro “Med24”, que tem como tema “Peregrinos da esperança, construtores de paz”. Dirigindo-se à assembleia em seu vídeo, Francisco declarou: “Deus ama cada homem, ele não faz distinção entre nós”. Apelando a um crescimento da “unidade”, Francisco descreveu a diversidade das origens religiosas dos participantes como um “dom de Deus”. Ele acrescentou: “Convido-vos a aprendermos juntos a discernir os sinais dos tempos. Contemplem a diferença de vossas tradições como uma riqueza, uma riqueza que Deus quer ser. A unidade não é a uniformidade, e a diversidade de vossas identidades culturais e religiosas é um dom de Deus. A unidade na diversidade. Que a estima mútua cresça entre vós, conforme o testemunho de vossos ancestrais”.

5. Falar mais o quê? Se a unidade não é a uniformidade, e se ela deve acontecer na diversidade, a mitigação do pluralismo não deveria se encontrar, singularmente,… mitigada? E a continuidade com o Vaticano II se torna ainda mais problemática.

6. Mitigado ou não, o pluralismo – ou o indiferentismo – religioso representa, em qualquer caso, uma heresia contrária aos ensinamentos divinamente revelados, tais como propôs constantemente ao assentimento de nossa fé o Magistério da Igreja. Este afirma constantemente a necessidade da Igreja para a salvação, recorrendo a uma expressão muito precisa, que sugere que essa necessidade é absoluta: fora da Igreja, ou seja, devido a ineficácia de uma religião não católica, ninguém pode ser salvo. Tal é a Profissão de fé prescrita aos Valdenses sob o Papa Inocêncio III, em 1208 (DS 792). Tal é a Profissão de fé do Quarto Concílio de Latrão, em 1215 (DS 802). Tal é o ensinamento da Bula Unam sanctam do Papa Bonifácio VIII, em 1302, o da Carta do Papa Clemente VI aos católicos dos armênios Mekhitar, em 1351 (1051), e ainda do Decreto para os Jacobitas, na Bula Cantate Domino do Papa Eugênio IV, em 1442 (DS 1351). Tal é a verdade recordada pelo Papa Pio IX, na Alocução Singulari quadam, em 1854 (1647), em sua Encíclica Quanta conficiamur mærore, em 1863 (onde o Papa diz que essa verdade é um dogma, e dos mais conhecidos), e, enfim, no Syllabus, em 1864, sob a forma das duas proposições condenadas nº 16 (DS 2916) e nº 17 (DS 2917). Também o Papa Leão XIII recorda essa verdade em sua Encíclica Satis cognitum, em 1896 (DS 3304), e o Papa Pio XII a recorda outra vez em três momentos, na Encíclica Mystici corporis, em 1943 (DS 3821), na Carta do Santo Ofício dirigida, em 1949, a Dom Cushing, arcebispo de Boston (DS 3868), e na Encíclica Humani generis, em 1950 (DS 3891). Certamente, sim, as almas de boa vontade que permanecem na ignorância invencível podem receber graças salutares aonde estiverem. Contudo, trata-se aqui de uma situação totalmente diferente. A graça da salvação é sempre recebida pela Igreja, mesmo quando, de modo extraordinário, não se está na Igreja. E até mesmo quando alguns se salvam em uma religião diferente da religião católica, ninguém se salva por uma religião diferente da religião católica. O que equivale a dizer que, com exceção da religião católica, nenhuma outra religião pode representar um caminho ou uma linguagem que conduz a Deus.

7. Tudo isso é perfeitamente claro e evidente. A tal ponto que, neste dia da graça de 16 de setembro de 2024, o cardeal Burke, em uma mensagem no X, avalia que parece que estamos “nos fins do tempo”(3). Francisco seria, portanto, o Anticristo? Para além dessas reações muito compreensíveis, confessamos, ainda assim, nossa perplexidade. Até aqui, com efeito, a Fraternidade São Pio X se entendia repreendida por negar a indefectibilidade da Igreja, sob o pretexto de que ela considerava o Concílio Vaticano II e o Magistério pós-conciliar como viciados de erros graves. Tal é, em substância, o argumento desenvolvido e enfatizado nestes últimos meses pelos apologetas do movimento Ecclesia Dei, que encorajam os prelados conservadores da envergadura de um cardeal Burke, e, sobre os quais retornaremos mais tarde: Mathieu Lavagna, por exemplo, em seu canal no Youtube(4), ou o padre Hilaire Vernier, no site da Fraternidade São Pedro(5). Como, desde então, eles podem se posicionar diante destas recentes declarações do Papa Francisco? Se afirmarem – a exemplo da Fraternidade São Pio X – que elas são gravemente errôneas, não negariam, eles também, a indefectibilidade da Igreja? E se eles afirmarem que elas não o são, como não afirmariam que os ensinamentos de Inocêncio III, de Bonifácio VIII, de Clemente VI, de Eugênio IV, de Pio IX, de Leão XIII e de Pio XII são gravemente errôneos? E, por conseguinte, não negariam também, ainda que de outro modo, a indefectibilidade da Igreja? Sem dúvida, deveria haver aqui uma matéria de grave reflexão entre os teólogos do movimento Ecclesia Dei.

8. Por sua vez, a Fraternidade São Pio X sempre se apoiou na Declaração de 21 de novembro de 1974, onde Dom Lefebvre estabelecia, desde o princípio, as distinções fundamentais, herdadas da Tradição da Igreja(6). A Igreja não é o Papa. A indefectibilidade da sociedade visível fundada por Jesus Cristo é aquela do tríplice vínculo de profissão de fé, culto e submissão ao governo dos pastores divinamente instituídos. Distintos são os atos destes pastores, dos quais alguns podem constituir graves problemas à consciência dos católicos, sem que, todavia, a Igreja deixe de permanecer o que ela deve ser na unidade desse tríplice vínculo, que a define como tal(7). A história está aí para testemunhar isso. E a vivacidade da Tradição católica, sob todas as suas formas hoje, está aí para atestar a indefectibilidade deste tríplice vínculo. A permanência da verdadeira missa católica, celebrada de acordo com o rito de São Pio V, não obstante as recriminações de Traditionis custodes, é uma das expressões mais sensíveis desta indefectibilidade da Igreja.

9. O arcebispo emérito da Filadélfia, o capuchino Charles Chaput, declarou que os comentários do Papa Francisco sobre o pluralismo religioso eram “extraordinariamente errôneos” e “esvaziavam o martírio de seu sentido”(8). Quem, entre os católicos do movimento Eclessia Dei, ousaria acusar este santo homem de negar a indefectibilidade da Igreja? Alegremo-nos, dizia em seu tempo Dom Lefebvre, por vermos se levantar bons sacerdotes e bons bispos decididos a resistir aos erros para a salvação das almas.

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas:

(1) “A neo pastoral de Francisco”, na página de 16 de setembro de 2024 da La Porte Latine.

(2) Ndt.: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso.

(3) Ver o artigo “O sinal de contradição”, na edição de maio de 2024 do Courrier de Rome.

(4) https://www.lifesitenews.com/news/cardinal-burke-are-these-the-last-times-it-certainly-seems-that-way/?utm_source=featured-news&utm_campaign=usa

(5) https://www.youtube.com/watch?v=muhZ0qLfiQA

(6) https://claves.org/peut-on-etre-sedevacantiste-sans-le-dire/  https://claves.org/peut-on-etre-prudentiellement-ecclesiovacantiste‑2–2/

(7) Ver o artigo “21 de novembro 1974-024” na edição de setembro de 2024 do Courrier de Rome.

(8) Ver o artigo, “A Igreja é indefectível” na edição de setembro de 2024 do Courrier de Rome.

(9) https://www.lifesitenews.com/news/archbishop-chaput-slams-popes-extraordinarily-flawed-comment-that-every-religion-is-a-path-to-god/?utm_source=most_recent&utm_campaign=usa