A PSICOLOGIA DO AMOR

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Dom Lourenço Fleichman OSB

No mundo em que vivemos é moeda corrente as pessoas só quererem fazer o que lhes agrada. Que seja por prazer do corpo, ou pelo prazer de ter dinheiro, ou pelo prazer de se sentir influente, livre e independente, somos formados, à nossa revelia, a detestar as coisas árduas, maçantes, rotineiras, obrigatórias. Que elas tenham um quê de dificuldade ninguém discute. Que a nossa tendência seja a de diminuir a dureza das suas realizações, é compreensível. O que não pode ser é a revolta tomar conta do nosso coração sempre que temos alguma coisa obrigatória a fazer. No fim das contas, tudo o que é de nosso dever é feito com pressa, de qualquer maneira, sem a atenção necessária ou pelo dinheiro que vamos receber. A revolta a que me refiro não é necessariamente uma revolta barulhenta e explosiva. Pode ser apenas o sentimento surdo e escondido de um ódio acumulado.

Se examinarmos com atenção o ambiente cultural em que vivemos, constatamos, por exemplo, que os homens do nosso tempo passam a semana em função da sexta-feira, aguardando o fim do serviço do último dia útil para, enfim, voltar a ser “normal”. O que significa ser “normal”? Para uns, passar o tempo numa festa, numa discoteca, na porta de um botequim assando uma carninha na brasa e tocando um som com os amigos. Para outros, o sofá e a televisão, umas latinhas de cerveja. Muitos preferem passar duas horas num engarrafamento para ir à praia. Tudo isso, é claro, regado com algum sexo, muita alegria, e a sensação de que não há entrave para nada, que somos poderosos para fazer tudo, ao menos durante algumas horas, até que o monstro da segunda-feira volte a rosnar nos obrigando a retomar a vida maçante do trabalho. Vejam que não trato aqui do descanso merecido e legítimo, mas da busca de uma liberdade total que é mais um posicionamento cultural – melhor seria dizer espiritual: não enquanto coisa religiosa propriamente, mas enquanto coisa do espírito humano.

Quando se trata das crianças, já de há muito que é assim. Não se pode mais imaginar um adolescente que ame o seu estudo, como aquela obrigação amorosa que o eleva e o forma no saber. Nem se pode dizer que é culpa deles, pois há décadas que o estudo é sinônimo de dinheiro. Eles se arrastam até uma faculdade e são precipitados no liquidificador do que se chama “mercado de trabalho” onde brilha a purpurina de um futuro paradisíaco do dinheiro que tudo compra. Eles também, pobres crianças, só pensam na sexta-feira e nas férias. Depois, é a praia, as festinhas, a liberdade. Daí a grande revolta típica do nosso mundo “evoluido” quando os pais procuram orientar seus filhos em alguma atividade formadora, cultural ou religiosa. Eles encaram esta tentativa como o grande obstáculo à sua liberdade e já não temem mais enfrentar os pais e lhes jogar em rosto uma série de insultos.

Amor ou amor

No entanto, ainda hoje, sabemos que certos fatos ocorrem, na vida das pessoas, que contrariam essa cruel orientação subliminar que recebemos da sociedade moderna. Falo, por exemplo, da mãe que passa a noite cuidando do filho doente ou do bebê que chora. Igualmente, o soldado. Antigamente os soldados eram formados para dar a vida pela Pátria. Hoje, movidos pelo espírito do “funcionário público”, nossos soldados são requisitados para combater a dengue, enquanto os marginais assassinos nos devoram e riem-se das autoridades. Mas antigamente havia soldados que davam suas vidas pela Pátria. Os próprios governantes, quando não são movidos pela propina fácil ou por um sonho ideológico, se abstêm de muitas coisas para trabalhar pelo bem-comum.

E eu pergunto: o que os move a renunciar a tudo por uma obra que lhes é imposta de fora, que não corresponde ao que eles gostariam de estar fazendo, mas que fazem assim mesmo? O que pode ser tão forte a ponto de tornar o homem infeliz caso não fizesse aquilo? A resposta é simples:  eles são movidos pelo Amor. Já sabia disso Camões:

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

Mas se é o Amor que os move, então o que move os homens na busca desenfreada pelos prazeres e pela liberdade, como constatamos no início? E eu respondo: o que move os homens a fazer somente o que lhes agrada é o amor sentimental. Chamo assim a esta paixão da alma que nos move em busca do bem deleitável, do bem que nos agrada. Nem sempre ele é mau, pois alguns objetos são dignos do nosso amor sentimental. O que vai determinar a retidão desse amor é justamente a sua afinidade com o Amor espiritual, de modo a não contrariá-lo. Esse amor sentimental, que escrevo com letra minúscula, distingue-se, por outro lado, do Amor maiúsculo porque este último é espiritual, ato da nossa vontade espiritual e livre, que nos move segundo a razão, mesmo quando vai contra aquilo que nossas paixões nos mostram como agradável e prazeiroso.

É assim que nossas obrigações são obras de um Amor mais profundo e verdadeiro. Mesmo se não quiséramos fazer aquilo, temos uma determinação total e certeira de que devemos fazer, e esta determinação é que caracteriza o verdadeiro querer, o verdadeiro Amor. E este Amor é tão determinante que deixa longe para trás todos os prazeres que gostaríamos de ter: a mãe esquece o seu sono, o pai esquece o seu cansaço, o soldado esquece a sua vida, porque a Pátria o chama, conta com ele, para que ele realize o seu Amor total, como um dia, ainda moço, ele sonhou poder realizar. O fato é que o Amor de obrigação nos determina até a morte.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Virtudes e vícios

Uma vez estabelecida a existência dos dois amores em nós, um baixo e sentimental, outro elevado e espiritual, procuremos estabelecer suas características próprias: Enquanto o amor sentimental é todo centralizado em si mesmo, sendo fonte de egoísmo, já o Amor espiritual projeta-se para fora de si, em busca de um objeto mais elevado. Deus e o próximo. É amor de Caridade.

Enquanto o amor sentimental tem a tendência de nos inclinar à irritação diante dos impecilhos para a nossa liberdade, já o Amor espiritual nos inclina à resignação, à paciência.

Enquanto o amor sentimental é passageiro e volúvel, mudando toda hora, levando-nos de um lado a outro, sem repouso, o Amor espiritual é constante, firme, repousante e pacificador.

Enquanto o amor sentimental é fonte de muitas mentiras, traições e discórdias, o Amor espiritual é fonte de verdade, de fidelidade e de amizade. E diante de realidade tão rica e fantástica, gritará mais uma vez o Poeta:

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O amor de sentimentos é, então,  fonte de vícios; o outro, de todas as virtudes. Este é o drama do nosso tempo. Sabemos que os homens são empurrados desgraçadamente a viver de vícios horríveis que os impedem, cada dia mais, de ver o abismo do inferno que se aproxima a passos largos. Com um mundo movido pelo lazer, pelos esportes, pelo tempo livre, torna-se difícil explicar aos homens, já desatentos, que erraram o caminho de casa, que estão se embrenhando no caminho de uma perdição eterna. Até algumas décadas atrás, quando a influência da Igreja ainda se fazia sentir, o mundo girava em torno dessas obrigações geradoras de virtude. Todos tinham suas ocupações, todos tinham seus trabalhos caseiros, todos viviam para cumprir seu dever. E isso gerava um mundo de honestidades, de retidão que, se não impedia o pecado, tornava-o uma coisa feia e vergonhosa para quem o praticava e para quem assistia.

Alegrias ou angústias

Falta ainda considerar que o fim da vida de prazeres sentimentais é a náusea, a depressão, reações estranhas sem explicações claras. Assim ensinava São Francisco de Sales, bispo e príncipe de Genebra, doutor da Igreja:

O amor é suave quando se aplica a um objeto digno de ser escolhido entre mil. Já o amor baixo e caduco, que se prende à criatura em detrimento da honra devida ao amor do Criador, em vez de ser doce e suave, é desagradável ao extremo, pois enche o coração de perturbações, de precipitações e de angústias. (Sermão para o 17º domingo depois de Pentecostes – 1618)

Ou seja, uma vez passado o prazer, o amor sentimental gera na alma uma melancolia torpe. Esta acaba projetando a alma a buscar novamente os prazeres, e cada vez mais fortes, para evitar esses momentos de tristeza. Os sentimentos funcionam na alma como uma droga. Pior até do que as drogas, pois são geradas e alimentadas dentro de si. Uma usina de entorpecentes psíquicos, é a alma mergulhada nos amores sentimentais e fazendo deles a sua vida. Usina que termina numa super-produção a tempo integral e que destrói por dentro todos os recursos naturais e sobrenaturais acumulados nos primeiros anos de vida, nos dias de inocência e castidade. A alma que se abriu à satisfação de sua vontade, contamina-se, fecha-se sobre si mesma e definha até a morte do pecado.

Mas, por outro lado, o Amor de Caridade, o Amor mais profundo, que nos move ao sacrifício, à penitência, à tarefa árdua e necessária, dever que precisa ser cumprido, gera na alma a alegria simples e pacífica de quem sabe que cumpriu o seu dever. Qual a mãe que não se alegra quando vê que seu filho ficou curado? ou o pai que não se alegra ao ver que seu trabalho é bem reconhecido e recompensado? Qual o aluno que não se alegra com uma boa nota na prova? Ah! vá, soldado, alegra-te também quando tiver a oportunidade de dar tua vida pelos teus irmãos. Alegra-te em morrer na paz de Deus, porque cumpriste o maior de todos os deveres: “Não há maior ato de amor do que dar a vida por aqueles que amamos“.

Amar a Deus sobre todos os amores

Ora, esta belíssima verdade dos dois amores de nossa alma explica de modo impressionante uma série de dúvidas acerca do Amor e restabelece a ordem das peças desarrumadas da sociedade em que vivemos. Quantas vezes ouvimos alguém dizer que é muito difícil cumprir o primeiro mandamento da Lei de Deus: Amar a Deus sobre todas as coisas. As pessoas dizem isso porque confundem os dois amores. Acham que temos de ter para com Deus o amor de sentimentos que temos, junto com o Amor espiritual, pelas pessoas que nos são caras, os pais, os esposos, os filhos. E acham difícil colocar Deus, que não vemos, na frente desses amores naturais, que são nobres e belos porque iluminados pelo Amor mais elevado. Pois basta entender isso: quando vivemos em função do Amor espiritual, sabemos que, em muitas ocasiões, renunciaremos a nós mesmos por uma causa mais elevada, mais importante do que nós. E essa renúncia de si mesmo já pode ser toda ela canalizada ao Amor de Deus. Os homens deveriam compreender que é por amor de Deus que a mãe abandona o sono pelo filho, que é pelo Amor de Deus que o pai trabalha, que a criança estuda, que o soldado dá a sua vida. E esse Amor de Deus se manifesta em nós, pelo menos, pelo dever cumprido com prontidão e perfeição. E a luz da verdade ilumina também a alegria de que falávamos acima, pois antes de se alegrar pelos bons resultados dos seus deveres, os homens se alegram pelo simples fato de cumprir seu dever e agradar a Deus. E essa alegria brota da paz que nos vem na consciência. Veja, caro leitor, que beleza esta passagem da Epístola de São Paulo aos Colossenses que ilustra e fundamenta esta verdade:

Não cessamos de orar por vós e de pedir que sejais cheios do conhecimento da vontade de Deus, em toda sabedoria e inteligência espiritual, para que andeis de um modo digno de Deus, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra e crescendo na ciência de Deus, confortados com toda fortaleza pelo seu poder glorioso, para suportar tudo com paciência, longanimidade e alegria, dando graças a Deus Pai, que nos fez dignos de participar da sorte dos santos, na luz, o Qual nos livrou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do Filho do seu Amor, no qual, pelo seu Sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados“.

Fica assim claro que a grande doença da nossa sociedade é a falta do Primeiro Mandamento. Os homens não querem mais amar a Deus porque não querem mais cumprir suas mínimas obrigações, porque não entendem mais que essas obrigações são objeto de nosso amor, o qual, quando bem orientado, nos une a Deus no cumprimento do Mandamento do Amor. Por isso podemos dizer que seria preciso restaurar a civilização cristã lançando bombas do verdadeiro Amor, do Amor de Deus, no meio dos homens esquecidos Dele. E estas bombas explodiriam em atos que nada mais seriam do que o dever cumprido, com tudo que nele se concentra. E diante do terrível quadro do mundo moderno que Nossa Senhora veio mostrar a três criancinhas em Fátima, disse ela a Lúcia que, nos últimos tempos, a maior penitência seria o simples cumprimento de suas obrigações. E nisso se resume toda a Lei e os Profetas. Nisso se resume o Evangelho de Jesus Cristo. E diríamos, para terminar, com o salmista: Initium sapientiae timor Domini – O santo temor de Deus é o início da Sabedoria.