Fonte: Corsia dei Servi – Tradução: Gederson Falcometa
Muitas declarações e ações da hierarquia católica que se sucedem a um ritmo cada vez maior são cada vez menos explicáveis como desvios marginais da reta doutrina.
Parece mais a emersão de uma versão humanitária da nossa Santa Religião, a qual gradualmente, com os aplausos dos teólogos e dos operadores da comunicação, conquistou o centro da cena, a ponto de ser pregada abertamente como a doutrina atual da Igreja.
As ideias vetoriais do modernismo inoculadas no catolicismo na sequência da revolução joanina atuaram nestes anos conciliares, provocando uma transmutação alquímica do catolicismo, de uma religião revelada tendo por finalidade a salvação das almas para um humanismo filantrópico que apoia o poder mundano.
Nesta versão diluída do cristianismo ad usum delphini dois aspectos se destacam principalmente, o historicismo e o naturalismo.
Historicismo
Com o historicismo se abandona as categorias verdadeiro-falso e bom-mau a favor de uma concepção evolucionista em que cada expressão e ação deve ser julgada de acordo com o momento histórico em que aconteceu: o verdadeiro e o bom são prisioneiros do tempo.
E dado que a História tende naturalmente para o progresso (outro axioma ideológico) segue-se que para não correr o risco de recorrer a ideias ultrapassadas é sempre necessário distanciar-nos do passado para não perdermos o ritmo do hoje e da sua tensão em relação aos estados do ser cada vez mais avançados.
Diante de uma História que avança rumo à luz eterna, não há doutrina, norma ou estrutura religiosa que possa reivindicar qualquer salvo-conduto[2]. “Os modernistas não admitem verdades supra-históricas, eternas e imutáveis; para eles a verdade é filia temporis, só está no hoje, no moderno. Os conceitos mudam. A natureza humana e a lei moral mudam”[1]. A verdade é a história e, especificamente, a história de hoje, porque no hoje as contradições encontram resoluções.
Mesmo o que o próprio Jesus Cristo disse e fez pode ser relativizado para eles aos tempos em que ele viveu, jamais, o rabino de Nazaré, lançou alguma pretensão de eternidade [3]. Segundo os teólogos da neo-religião, a Revelação está sujeita à evolução. Nenhum dogma é irreformável, sendo filho do seu tempo [4]. O próprio conceito de dogma, produto de uma concepção “fixista” de fé, deve ser rejeitado na sua totalidade, substituído pela referência ao Espírito (Santo?), que sopra onde quer e impulsiona a mudança. A tensão em direção ao futuro (a mudança mítica) deve ser acompanhada pelo movimento de sair de si mesmo para entrar em harmonia e comunhão com os outros sujeitos da História, incluindo cismáticos, hereges, judeus, muçulmanos, pagãos e não-crentes (e, por que não, Luciferianos e Satanistas).
A ética também deve ter em conta a situação (por exemplo, revendo as posições sobre a homossexualidade), enquanto as estruturas e os papéis da Igreja devem mudar para responder aos desafios e sinais dos tempos (colegialidade, abertura ao sacerdócio feminino, missas diaconais, etc. ).
A cronolatria tem dois efeitos imediatos:
-a primeira é lançar a Igreja numa busca frenética de compromissos com o mundo e os seus valores, sem então ter qualquer possibilidade de sucesso, pois só decretando o seu próprio suicídio a Igreja obteria a paz humana. A Igreja Católica corre o risco de cair no mesmo erro das comunidades Ortodoxas, Episcopais e Reformadas, o de se tornar uma extensão do poder político.
-o segundo efeito é o de ter que resolver um problema de autoridade/legitimidade, ou seja, definir em que fundamento se baseiam as variações gradualmente decretadas. A solução de Bento XVI foi apoiar a continuidade com a Revelação, enquanto o sujeito docente permanece sempre a Igreja. O “Magistério vivente” traduz a fé vivida na comunidade originária dos discípulos para os novos tempos [5].
Passamos assim da objetividade de uma Igreja guardiã do depositum fidei, à subjetividade de um Magistério que se coloca acima da tradição.
Uma vez desvinculado do objeto que é a sua razão de ser, o Magistério fica prejudicado na sua credibilidade, acabando por assentar num autoritarismo autorreferencial. Em um deslizamento progressivo em direção a uma forma de centralismo papal, cada ato de poder eclesial torna-se ipso facto um complemento da Revelação, sem sequer se preocupar em documentar a sua compatibilidade com o pregresso. O ato magisterial é verdadeiro para além do seu conteúdo, pois é colocado no plano da efetividade: é um ato de poder que representa a continuidade eclesial e, portanto, exige obediência obsequiosa [6].
A autoridade, a eficácia e a seriedade da Igreja Católica são substituídas por um Magistério informal e narrativo no campo doutrinal, enquanto na gestão eclesial se mostra tão misericordioso nas palavras como implacável nos atos.
A folha de figueira do autoritarismo é a demagogia democrática que afirma deduzir a vontade divina a partir de levantamentos das crenças dos homens, na ideia de que estas refletem a luz do deus que deveni na história.
Assim acabamos construindo uma religião a partir de baixo, humanamente compreensiva em relação aos comportamentos transgressores [7].
Para justificar as novações, recita-se a jaculação de que o que muda é apenas a prática enquanto a doutrina permanece inalterada. Mas isto não se sustenta, dado que uma mudança na prática só pode derivar de uma mudança correspondente na doutrina. Fazer passar as mudanças feitas por simples medidas pastorais é uma manobra fraudulenta em todos os aspectos.
Naturalismo
Intimamente ligado ao historicismo está o naturalismo, ou seja, a tendência de expurgar do cristianismo tudo o que se refere à transcendência, de “humanizar o divino e naturalizar o sobrenatural” [8].
Na visão imanentista e antimetafísica – típica das teologias liberais derivadas do Iluminismo – a Graça é considerada um ato devido por Deus à natureza humana, o pecado é classificado como erro ou crime social, os milagres (Ressurreição de Cristo, virgindade da Mãe de Deus incluída) são a expressão de uma comunidade ardente e imaginativa. A novidade evangélica é interpretada como fermento para um futuro ideal. Na prática, repropõe-se a heresia ariana, que despoja Jesus Cristo da sua divindade, rebaixando-O a um homem, ainda que excepcional.
Uma forma intermediária entre a fé católica e o cristianismo totalmente dessobrenaturalizado das teologias liberais é o Rahnerismo.
Segundo o jesuíta alemão, a vinda de Cristo foi suficiente para trazer a salvação a todos: todos têm fé (“experiência atemática pré-conceitual”), todos são bem-intencionados (“opção fundamental”) e bem orientados para Deus (“auto- -transcendência”), todos estão na graça (“existencial sobrenatural”) e todos são salvos (“Cristianismo anônimo”)[9].
O pecado não pode afetar o existencial sobrenatural e, portanto, não há necessidade de arrependimento ou renascimento espiritual. O Sacramento da Confissão perde o sentido, a ética esvazia-se de força, o papel do pastor muda, pois já não tem de corrigir o pecador, mas apenas encorajar o errante ou denunciar o criminoso, a vida cristã é reduzida à ação social e a Igreja torna-se a organização sem fins lucrativos de utilidade social do infortúnio, cuja tarefa é confortar os feridos no hospital de campanha.
Doutrina Quenótica
Por fim, à neo-religião não falta referência à doutrina kenótica – um dos elementos primordiais da Nouvelle Théologie – da qual falamos aqui.
Segundo esta interpretação herética de Filipenses II, 7 (Cristo “espoliou-se a si mesmo”), o Verbo, ao encarnar-se em Cristo, teria se despojado de Sua divindade para derramá-la sobre nós. Pio XII na encíclica Sempiternus Rex Christus de 1951 condenou a doutrina kenótica como uma invenção nefasta que, “repreensível como o erro oposto do docetismo, reduz todo o mistério da Encarnação e da Redenção a um nome vão e inconsistente”.
Na versão de Hegel proposta por von Balthasar e Rahner, o próprio Deus gerou originalmente o Verbo e criou o mundo com um processo análogo de auto-esvaziamento (isto é o que a Cabala chama de tzim-tzum). Para os neoteólogos, a Igreja é, por sua vez, chamada a auto-aniquilar-se para dar vida a novas formas religiosas e mundanas.
Uma forma atenuada da doutrina kenótica manifesta-se naqueles que baseiam a descoberta do divino em sair xamânicamente de si mesmos para ir em direção ao próximo (nas periferias existenciais) e aí tornar-se outro.
A doutrina kenótica também serve de justificativa para o ecumenismo latitudinário, segundo o qual a igreja de Cristo é composta por todas as igrejas e congregações eclesiais, hoje separadas e em caminho para uma fusão superior. A missão da Igreja Católica é “sair de si mesma”, ir em direção a outros cultos para gerar uma nova Igreja verdadeiramente universal[10].
Mesmo na forma pós-marxista extrema da Teologia da Libertação, podem-se ver semelhanças com a versão herética da kenosis, por exemplo, quando os oprimidos são exortados a “extrair” (jogar fora de si) a cultura e a ética dominantes, favorecendo o nascimento de um novo homem, internamente livre de qualquer condicionamento. Em essência, a revolução exige a aniquilação do presente, segundo o axioma de Engels: “a tese da racionalidade da realidade se resolve, segundo as regras da dialética, neste outro: tudo o que existe merece morrer”.
Concepção do divino
Pelo que vimos acima, a neo-religião refere-se a um deus imerso na história e uno com ela. Um deus mutável que exige que todo pensamento e concepção se curvem ao devir, renunciando às reivindicações de verdades imutáveis.
Um deus em busca de auto-realização, que se vale do progredir da consciência religiosa geral para se autodeterminar e que nunca deixa de se revelar ao longo do tempo.
Em substância uma divindade
-imperfeita que, no trabalho de um interminável processo histórico-dialético, sempre atinge novos níveis de autoconsciência.
-contraditória, em que o bem e o mal contribuem juntos para uma síntese superior.
-encerrada na imanência, que se revela na experiência religiosa dos homens.
Em essência, o Deus Eu Sou (ipsum esse subsistens) que se revelou no Sinai e na Encarnação do Verbo é substituído por uma versão atualizada do bezerro de ouro.
O Moloch assim fabricado exige obediência absoluta e, em nome da liberdade de expressão, pretende impor os seus dogmas (relativismo, mudança) e as suas aberrações a todos.
A vontade geral expressa nas consultas populares democráticas e sancionada pela autoridade máxima é avessa a tolerar qualquer desvio: a neo-doutrina e a neo-ética impõem-se sancionando os resistentes e expurgando os refratários. No novo mundo, a acusação indeterminada de não se sentir cum Ecclesia pode custar muito caro.
Mesmo nas relações com o mundo a situação é degenerada.
Como sempre aconteceu na história, a adoração de um simulacro – longe de libertar dos jugos – acaba por entregar o homem à mercê do poder: se de fato o que é – e apenas o que é – é racional, os verdadeiros ídolos adorados são não as abstrações dos filósofos, mas as forças concretas que competem pelo domínio do mundo.
Perguntamo-nos, com estas premissas, o que resta do centro da fé católica, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora, a negação do sobrenatural e a emancipação da Revelação implicam uma cisão na figura do Salvador: esforçamo-nos por separar o Jesus real e histórico do Cristo-Deus, uma construção (imaginária) da fé ardente das primeiras comunidades cristãs. Assistimos, portanto, a uma reedição da heresia ariana, com Jesus Cristo reduzido a Rabino de Nazaré, simples reformador e mestre. As ações doutrinárias do Mestre têm um valor relativo à época em que viveu; portanto, casamento indissolúvel, sacerdócio masculino, primado de Pedro, etc. são todas coisas ligadas à cultura e à situação da época, portanto passíveis de revisão à medida que mudam as condições históricas.
Para manter uma aparência de conexão com o divino, Jesus é criado (sic) como um homem que se sacrificou, dando o exemplo de como se pode amar o próximo até o limite extremo. Não mais Filho de Deus, Redentor e Senhor, rei dos reis, mas ponto ômega da humanidade, manifestação suprema de solidariedade e misericórdia, de auto-esvaziamento em relação ao outro (novamente a versão espúria da kenosis).
Alternativamente, apresenta-se a versão pauperista: Jesus Cristo foi uma pessoa corajosa que lutou contra o poder; consciente do seu exemplo, o povo retomará a luta e finalmente triunfará. Nas secções marxistas da neo-religião, onde Bella ciao substituiu os hinos litúrgicos, o Nazareno é rapidamente considerado como um simples precursor dos revolucionários comunistas. O amor aos pobres passa assim da opção preferencial dos curiais à exaltação da luta de classes, mesmo armada.
Os expoentes de todas estas diversificadas variações naturalistas e esotéricas não hesitam em trazer continuamente aos lábios o nome de Jesus, como que para tranquilizar os presentes da sua continuidade com a religião passada. É um nome explorado que serve de ponto de partida para depois falarem sobre o que lhes interessa e exaltarem as abstrações que o poder tolera ou ama, como: paz, acolhimento, solidariedade, partilha.
Da religião humanitária, pela salvação da alma e pela saúde da mente, mantenhamos uma distância segura!
Oreste Sartore
Notas:
[1] algumas expressões modernistas que impulsionam a mudança: “é preciso recomeçar com uma mentalidade inovadora, introduzindo ar puro, limpando coisas submersas em pó, cobertas de bolor, incrustadas de sedimentos heterogéneos, eliminando enfeites e impurezas, jogando fora o que está morto”.
- Giovanni Cavalcoli OP, O Caso do Cardeal Burke. A panela está pronta, só falta a tampa, 12 de novembro de 2014, Chiesa e post-concili
- para os teólogos de Tübingen as coisas eternas e imutáveis são inconcebíveis, estando em antítese per diametrum ao necessário devir do Espírito.
- naturalmente há progresso benéfico e legítimo. São Vicente de Lerins esclareceu os seus limites em 434: “deve acontecer de tal forma que seja verdadeiramente um progresso da fé e não uma alteração. […] O crescimento da fé só ocorre mantendo a sua própria natureza, isto é, no âmbito do mesmo dogma, no mesmo sentido e na mesma frase” (Commonitorium, 23).
- O Papa Ratzinger contrapunha o Magistério vivente (que evolui e muda ao longo do tempo) as coisas mortas ( e. o Magistério fixista da Tradição Católica).
- aqui: Giovanni Turco, Positivismo giuridico e positivismo teologico, Corrispondenza Romana, 30 de agosto de 2013.
- A nova teologia, por sua vez, centrada no homem para encontrar nele as chaves para penetrar no mistério de Deus, acaba também por fabricar um deus adaptado às fragilidades e paixões humanas.
- don Curzio Nitoglia, La Seconda Scolastica, la Filosofia Politica e l’Ecclesiologia, 7 de novembro de 2014, site do autor
- Cavalcoli OP,Il Caso…, op. cit.
- Kasper, Chiesa cattolica – Essenza, realtà, missione, Brescia 2012