Não, caro leitor, não creio que possamos convenientemente definir e caracterizar as graves perturbações do mundo católico com as expressões condoídas que você usou em sua carta, tais como “lamentáveis divisões”, “dolorosas divergências”, “dissenções e polêmicas entre católicos”. Tentarei expor aqui meu pensamento com a mesma objetividade e isenção de ânimo que sempre pus nas minhas obras de engenheiro: receptores de ondas curtas, amplificadores de freqüências acústicas, sistemas eletrônicos de ondas portadoras etc. etc. Essas pequenas obras que deixei esparsas e que me sobreviverão por algum tempo, como ainda sobrevivem, em funcionamento, aparelhos que construí para a Companhia Telefônica Brasileira em 1937, são meu obscuro testemunho de uma docilidade ao real com que quero viver e morrer. O título com que dou aulas de religião aos que para isto ainda me procuram é também uma docilidade ao que aprendi com os apóstolos e seus descendentes. Melhor coisa não possuo senão esta capacidade de bem identificar o evangelho deixado pelos evangelistas e difundido por Paulo.
Não tinham grau de doutor em teologia os gálatas humildes a quem o apóstolo Paulo escrevia: “Mas ainda que nós mesmos ou até um anjo do céu vos anuncie um outro evangelho (…), anátema seja. Já vos disse antes e agora repito: se alguém pregar outro evangelho, diferente do que recebestes, seja anátema.” (Gal. 1, 8-9.)
Nesta singela e severa passagem se condensa toda a praticabilidade do cristianismo. Se os mais humildes fiéis não fossem capazes desse discernimento inicial e fundamental, ou se outro evangelho se pudesse inculcar como o mesmo já anunciado, vão teria sido o Sangue derramado na Cruz, vãos os ensinamentos de Jesus, vão o testemunho dos mártires, dos doutores, dos heróis da santidade: O cristianismo seria uma tertúlia de intelectuais e, por conseguinte, não seria o cristianismo.
Baseado neste diploma universal, que tem o sinete dos primeiros princípios e o escudo do senso comum, ouso dizer uma coisa ensurdecedoramente visível e ofuscantemente audível: não há apenas divisões dentro da Igreja (se com esses termos queremos designar os escândalos provocados por religiosos, padres e bispos), não há dissensões e polêmicas. O que há, a entrar pelos olhos adentro, é outra “igreja” a anunciar estridulamente outro evangelho. Não há duas alas, a dos conservadores e a dos progressistas; há duas coisas distintas: a Igreja de Cristo, de Pedro e de Paulo e a outra Coisa. Posso admirar-me e entristecer-me pelo fato de não ouvir o Papa dizer a palavra liberadora — anátema seja aos falsificadores, aos fabricantes de um novo super-protestantismo feito com os vômitos do que já envelheceu e apodreceu; mas não posso, sem desrespeito e paranóia, pretender suprir com minha voz o silêncio do Papa.
Já recebi carta de um inimigo leitor que me chamou de Papa de “Laranjeiras, 540, fundos”. Tem certa graça o epigrama, e talvez tenha sido este rasgo o último alento de um espírito em agonia. Não. Não sou Papa. Não me inculco nem como coadjutor do vigário. Não sou nada, absolutamente nada mais do que um pobre gálata que aprendeu uma lição posta ao alcance de todos: se alguém anuncia outra religião, anátema seja. Não estou usurpando autoridade, não estou condenando ninguém, estou apenas dando um testemunho e transmitindo ao amigo leitor, de irmão para irmão, o incentivo de fazer o mesmo. “Sereis minhas testemunhas…” (At 1), disse-nos o próprio Senhor no dia de sua Ascensão. Obedeçamos. E clamemos: o que anda por aí com nomes de progressismos e de aggiornamento não é uma ala avançada ou nova da Igreja. Basta ver como se movem, ouvir o que dizem, atentar aos santos que veneram, para se tornar evidentíssimo (se me permitem tal exagero) o fato de anunciarem outra religião.
Insisto. Dessa outra religião que, em vez de ser uma adoração de Deus é, como muito bem diz John Eppstein, “The worship of that will-ó-the-wisp Modern Man”, é impróprio e insuficiente dizer que é a paixão da Igreja de Cristo e que devemos ver esse fenômeno com otimismo e confiança em Deus etc. etc. De início quero registrar a chocante impropriedade dessa mistura de confiança em Deus com otimismo. O termo otimismo não tem lugar, a não ser em serviços muito subalternos, no léxico cristão. É em nome da divina Esperança que repilo o otimismo, e que não posso ser otimista diante do tal Homem Moderno. Esse termo foi inventado e posto em circulação para designar uma espécie de bobagem muito humana, humana demais, e não para substituir os termos com que há dois mil anos sabemos exprimir nossa confiança em Deus.
Dizer que isso que aí está é a Igreja, com justos e pecadores, é o mesmo que dizer, por exemplo, que continuavam a ser Igreja peregrina e aflita os verdugos protestantes que há quatro séculos e meio, na data festivamente comemorada pelos novos protestantes de hoje, perseguiam o rebanho de Cristo na Alemanha, na Dinamarca de Frederico de Holstein, na Noruega e na Suécia de Cristiano III, na Suíça de Calvino etc.
Se os católicos do século XVI tivessem tido a compreensão ecumênica que hoje ostentam, aquilo que existia na Alemanha, na Dinamarca etc. etc., continuaria a ser Igreja. E então tudo seria igreja; ou então nada seria Igreja.
Divisões, dissenções dentro da Igreja sempre haverá. Houve na polêmica de auxiliis entre jesuítas e dominicanos. Mais grave divisão houve no grande cisma, quando até os santos, como Vicente Ferrer se enganavam de obediência. Havia dúvida sobre a legitimidade deste ou daquele Papa. Os fiéis iam à mesma missa, comungavam no mesmo Corpo de Deus, mas muitos não sabiam se o Papa era Urbano VI ou Clemente VII. Ninguém, entretanto, pensava do papado o que pensam hoje os democratizantes que admiram o Cardeal Suhenens ou seguem o catolicismo holandês. Hoje a disputa não se faz em torno da legitimidade de um Urbano e um Clemente. Hoje a rivalidade se estabelece entre Deus e o tal bizarro ídolo que John Eppstein no seu provocante e sensato livro “Has the Catholic Church Gone Mad?” chama de “will-ó-the-wisp Modern Man”.
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Nossa mesma e eterna Igreja, nascida do lado do Cristo, adormecida na dor da Cruz, guarda e resguarda o tesouro da Revelação de Deus. A outra coisa, como se viu no artigo publicado em Grande Sinal, exibe e vende a Revelação do Homem que é, como já disse atrás, o vômito requentado da Reforma e do humanismo renascentista.
Mas não é nessa outra coisa que reside a paixão da Igreja; é antes naqueles que, no seu próprio seio, não se levantam, nem dão sinais de detestar a falsificação e o brinquedo com as coisas santas. Catarina de Sena ensinava a odiar o mal com os dentes, e a Igreja, até poucos anos atrás, dizia dela, no intróito da missa: “dilexisti justitiam et odisti iniquitatem”
A paixão da Igreja está naqueles que só acordam e só se levantam para reclamar contra os clamores dos que combatem. A paixão da Igreja não está nos progressistas que já não pertencem à Igreja; está nos comodistas que só se queixam de nossos epítetos e não dos escândalos do tropel que, aos borbotões se precipita fora da Igreja. As religiosas podem inventar doutrinas fantasiosas, os padres podem perverter a juventude, os bispos podem pregar a subversão — mas o cronista católico não pode designar esses fenômenos com estes adjetivos ou aqueles advérbios. Para os omissos e sonolentos, sou eu, entre outros, quem faz o escândalo.
(O Globo, 11 de abril de 1974)
Fonte: Permanencia