Nosso Senhor nos deixou o preceito de perdoar nossos inimigos. Mas a importância do insulto ou da incômoda memória que dele guardamos muitas vezes nos bloqueia: medo de ser considerado ingênuo, sentir-se incapaz de dar seu perdão. Como aprender a perdoar?
Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
São Paulo, repetidas vezes, convida o cristão a se “revestir de sentimentos de misericórdia, de benignidade, de humildade, de mansidão, de paciência,” (Col. 3, 12). Essas virtudes, por sua dimensão social, geram paz nas famílias, paz nas comunidades. Com efeito, São Paulo conclui: “Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, a qual fostes chamados, para (formar) um só corpo.” (Col. 3, 15). Mas, infelizmente, essa paz com os outros é sempre frágil aqui embaixo, muitas vezes ferida. Assim, São Paulo nos pede que “perdoando-vos mutuamente, se algum tem razão de queixa contra o outro.” (Col. 3, 13). Este ponto é tão importante quanto delicado.
“Algumas pessoas ficam anos com o coração fechado por feridas e rancores. Como se apresentarão diante de Deus?”
É importante, porque do perdão que concedemos aos outros depende do perdão que Deus nos concede. É o Pai Nosso: “Perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos os nossos devedores”. Recuperar a paz com Deus, a paz profunda da alma, não é possível enquanto não tivermos, por mais que dependa de nós, recuperado a paz com os nossos irmãos (cf. Rom 12,18). E alguns, infelizmente, permanecem anos com o coração fechado, fechado por feridas e ressentimentos. Pior ainda, alguns morrem sem terem se reconciliado. Como eles se apresentarão diante de Deus? Lá não haverá mais fingimento, nem poderemos mais dizer a Deus, com mais ou menos hipocrisia: “Perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos os nossos devedores” (Mt 6,12). A medida do perdão que não demos será a medida do perdão que não receberemos! Este ponto de perdão é, portanto, importante.
“Em nome do perdão, devemos dar carta branca àqueles que cometem o mal?”
Também é complicado, porque há muitas ilusões a esse respeito. Às vezes, parece-nos que perdoar nosso inimigo seria dar-lhe carta branca para recomeçar seus delitos contra nós. Em outras ocasiões, acreditamos que perdoamos, enquanto permanecemos ressentidos; ou, inversamente, acreditamos que esse perdão é falso, porque a memória da ofensa volta à nossa memória para nos assombrar por um tempo. Resumindo, não sabemos quando e como perdoar. É por isso que São Paulo nos dá um critério: “Assim como o Senhor vos perdoou, também vós perdoais (uns aos outros).” (Col 3, 13). Mas Cristo nem sempre perdoa! Na verdade, ele estabelece ali a condição indispensável de arrependimento por nossos pecados. Além disso, para aprender a perdoar, é importante distinguir três etapas:
- Quando a ofensa é cometida, e o ofensor não dá sinal de arrependimento, ou mesmo parece perseverar em seu mau caminho;
- Quando o culpado pede perdão;
- Uma vez que o perdão for concedido.
Cada um desses momentos correspondem três significados diferentes da palavra “perdão”, três formas diferentes de agir.
A primeira fase do perdão
Vejamos o primeiro caso mencionado: quando alguém o ofendeu gravemente e, longe de mostrar qualquer arrependimento, pelo contrário, parece perseverar no seu mau caminho. Somos então confrontados com o que chamamos de inimigo. É claro que você não pode perdoá-lo em sentido estrito. O próprio Deus não faz isso, exigindo que nos arrependamos de nossos pecados a fim de perdoá-los. Para ser concreto, se um ladrão rouba sua bolsa na rua, você não vai convidá-lo para um café em sua casa sob o pretexto do perdão: essa seria a melhor maneira de fazê-lo descobrir tudo o que ainda pode roubar, isso seria o empurrá-lo para o mal. Não, àquele que o ofendeu gravemente, você não pode perdoá-lo em sentido estrito, desde que ele não se arrependa de sua ofensa.
Será então que a palavra perdão não tem significado neste caso? Sim. Voltemos à sua origem etimológica. A palavra “perdão” significa “dar além”, continuar a dar o bem além do mal que nos foi feito. É o que São Paulo nos convida a fazer: “Não te deixes vencer do mal [tornando-te mau, para retribuir o mal com o mal], mas vence o mal com o bem.” (Rom 12, 21) Retribuir o mal com o bem é simplesmente o que Jesus nos pede no Evangelho: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Deste modo sereis filhos do vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o sol sobre maus e bons, e manda a chuva sobre os justos e injustos.”(Mt 5, 44-45). Ao fazer isso, levaremos o culpado ao arrependimento e, em seguida, a pedir perdão. Vejamos mais de perto em que consiste esse amor aos inimigos, o primeiro estágio do perdão.
Vá e não peques mais! Para perdoar, Cristo estabelece a condição indispensável de arrependimento por nossos pecados
Antes de mais nada, está claro que esse amor proíbe o ódio à outra pessoa. Porque é igualmente claro que temos o direito e o dever de odiar tanto seus atos perniciosos e maldosos, como possivelmente o vício que nele habita, e de nos proteger dele. Mas para que este bom ódio ao mal não se transforme em mau ódio à própria pessoa, consideremos que, por suas más ações e vícios, o outro não somente nos prejudica, mas acima de tudo, prejudica a si próprio. É assim que se considera sua miséria, um olhar de misericórdia para com ele, e não de ódio, nascerá em nós.
O amor aos inimigos ainda proíbe a vingança. Por quê? Porque a vingança é sempre uma injustiça. Para nos vingarmos, nos colocamos como juiz e parte interessada: não estamos acima de nosso irmão para puni-lo. Fazer isso seria agir injustamente e, portanto, agir mal. Não, diz São Paulo, não tome o lugar de Deus, mas deixe-o pagar por isso quando chegar o dia. “Porque está escrito: A mim pertence a vingança, eu, retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12,19, citando Dt 32:35). “Vede que nenhum retribua a outro mal por mal, mas procurai sempre fazer bem entre vos e para com todos”, repete São Paulo (1Ts 5,15).
“O amor aos inimigos consiste precisamente nisso: querer o seu bem. À exemplo de Cristo na cruz, rezemos por sua conversão.”
“Procurem o bem de todos”: o amor aos inimigos consiste precisamente nisso, querer o seu bem, procurar o seu bem. Seguindo o exemplo de Cristo na cruz, rezemos por eles, pela conversão deles: “Senhor, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Observe que Cristo não os perdoa: o Cristo-homem pede a Deus que mude o coração de seus algozes, para que então os perdoe. Existe uma nuance. Faça o mesmo, reze por seus inimigos, por sua conversão. Reze por aqueles que o fizeram mal, porque é assim que você fará o bem a eles. E se você os encontrar – você tem o direito de evitá-los, especialmente se eles continuarem a lhe fazer mal! – mas se você se deparar com eles, ou se não puder evitá-los, faça boas ações para com eles: “se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber; fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça (Prov. 25,21-22). Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.” (Rm 12,21). Foi assim que Santa Rita converteu seu marido, que a maltratava, e no entanto, continuou sempre a servi-lo e a rezar por ele. Não reservemos tais condutas aos grandes santos. Lembro-me de uma família que tinha um filho deficiente. Enquanto a mãe ainda estava grávida, os jovens pais sofreram – por parte do médico – um verdadeiro assédio para que fizesse um aborto, e isto até ao último momento. Furioso, o pai inicialmente queria vingança. Preferindo seguir o conselho de Cristo em vez de sua raiva, ele escreveu ao médico agradecendo-lhe por dar à luz seu filho, e depois lhe enviou regularmente uma foto e notícias da criança. Finalmente, o médico escreveu a ele, por sua vez, para implorar perdão pelo que havia dito antes do nascimento. Este jovem pai se comportou de maneira cristã. Enquanto o médico permanecia trancado em sua lógica eugenista e mortal, este pai procurava fazer o bem, mostrando-lhe por meio do filho a beleza da vida humana, de toda a vida humana, ainda mais quando ela é cristã. Em vez de retribuir o mal com o mal por vingança, ele retribuiu o mal com o bem e, assim, venceu o mal com o bem (Rm 12, 21).
Esta primeira fase do perdão, que diz respeito àqueles que ainda são nossos inimigos, e é, certamente, a mais difícil de praticar; mas a mais importante. Com a prática, as próximas duas fases do perdão serão mais fáceis.
“É importante que cada um se examine para saber se, de sua parte, fez o necessário para estar em paz com o próximo.”
Antes de prosseguir, é importante que cada um se examine para saber se, de sua parte, fez o que era necessário para estar em paz com o próximo, ou se, ao contrário, nutre ressentimentos para com eles. alguns. Verifiquemos também se não ofendemos gravemente nosso irmão no passado, sem pedir seu perdão e procurando fazer as pazes. Sim, examinemo-nos: não poderemos entrar no Céu com tudo isto na consciência. Vamos nos examinar e nos julgar hoje, para que Deus não tenha que nos examinar e nos condenar amanhã.
A segunda fase do perdão
Como dissemos, o perdão em sentido estrito só pode ser concedido quando o outro se arrepende de sua falta. Não se pede mais a nós do que a Deus, que age dessa forma para conosco. Comecemos, entretanto, observando que, quando se trata de delitos menores (sem gravidade), esse arrependimento deve ser assumido em outros, mesmo que não seja manifestado de forma alguma. Nesse caso, nosso perdão deve ser, por assim dizer, imediato. É o que acontece, por exemplo, quando nos insultam. É uma questão de grandeza de alma saber como ignorá-lo. Cícero diz que Júlio César costumava esquecer apenas os insultos. É porque o homem sábio, diz Sêneca, está acima de qualquer insulto. De fato, é mais digno de um grande coração perdoar um insulto do que permanecer vitorioso em uma disputa. Se apenas aplicássemos esta primeira regra, muitas disputas seriam evitadas. Infelizmente, reagimos tantas vezes por suscetibilidade, pelo amor-próprio ferido … Muito mais do que a ofensa dos outros, é esse amor-próprio que está na origem das divisões.
“Ser receptivo quando o outro reconhecer seus erros, à imagem de Deus que aceita a confissão imperfeita de Adão.”
No entanto, quando se trata de ofensas mais graves, tanto em si mesmas quanto em suas consequências, é evidente que a reconciliação só pode ser feita se o culpado expressar seu arrependimento de alguma forma. É o caso, por exemplo, quando alguém lhe causou um dano grave, seja por injustiça ou por faltando com sua palavra. Ele deve admitir seus erros, para que possa haver reconciliação. No entanto, para perdoá-lo efetivamente, não espere até que seu pedido de desculpas seja perfeito, completo, tão mais humilde quanto sua injustiça. Ao contrário, seja receptivo nesse assunto, saiba se contentar com os primeiros gestos, as primeiras palavras. O homem, infelizmente, é muito orgulhoso, custa-lhe humilhar-se. Não exija muito dele. Tomemos o exemplo de Deus, no que se pode chamar de primeira confissão, a do pecador Adão. Deus, antes de tudo, vai em busca dele, e facilita a confissão de sua culpa:
“Mas quem te fez conhecer que estavas nú, senão o ter comido da arvore, de que eu te tinha ordenado que não comesses?” Gn 3, 11). Você reconhece aí a primeira fase do perdão. A resposta de Adão é terrível, quando pensamos: “A mulher, que me deste por companheira, deu-me (do fruto) da arvore, e comi.” (Gn 3, 12). Sua admissão é quase um insulto! Mesmo assim, há uma confissão e Deus está satisfeito com ela. Sorte para nós, por que com que frequência em nossas confissões buscamos falsas desculpas para nossos pecados? Portanto, saibamos ser receptivos na concessão do perdão.
“O que foi perdoado está perdoado. O fato é que um pedido de reparação é legítimo, tendo significância no ato do perdão.”
O que significa perdoar? Não se apegar mais ao mal causado. Portanto, seria injusto fazer o outro sentir que, por nos ter ofendido no passado, continua sendo nosso devedor. O que foi perdoado está perdoado. Isso significa que devemos perdoar o outro não só pela falta cometida, mas também pela punição incorrida? Se permanecemos sempre livres – e às vezes é muito meritório – para perdoar uma dívida em juízo, parece que às vezes pedir reparação é, ao contrário, uma questão de caridade. Se seu filho, apesar de sua proibição formal, pegou seu carro e o quebrou, parece bom para a educação que ele repare um mínimo! Essa exigência de reparação deve então significar a concessão do perdão, como Deus faz conosco durante a confissão. Afirmar isso apenas mais tarde seria provar que não perdoamos nada, mas apenas remoemos isso.
O perdão, portanto, está relacionado ao ato maligno do qual somos vítimas. Deixar de aplicar este ato não significa, eventualmente, ignorar a fraqueza alheia, nem mesmo o vício que está na sua raiz. Se alguém traiu seriamente um segredo que você lhe confiou, perdoar sua traição não significa devolver-lhe toda a confiança, como se fosse incorruptível! Se você não fizer mais caso dessa traição e de suas consequências, você, contudo, inicialmente manterá uma certa reserva em relação a ele, e isso é sabedoria; mas essa mesma sabedoria também o manterá alerta quanto ao progresso que ele fará em virtude anteriormente ferida.
“O heroico perdão de São João Gualberto e a amizade devolvida ao assassino de seu irmão estão na origem de sua santidade”.
Este ponto lança luz sobre outro: devemos devolver toda a nossa amizade à pessoa perdoada, se antes havia um vínculo especial? Nem sempre somos obrigados a fazer isso. No entanto, existem casos em que é importante saber como restaurar toda sua benevolência e consideração, ou seja, quando a amizade prejudicada é de questão natural. Este é, por exemplo, o caso entre um marido e uma esposa, um pai e seu filho, etc. Em outros casos, embora alguém não seja obrigado a restaurar toda a sua amizade, ele nunca deve fazer sentir qualquer inimizade, e sempre continuar querendo o bem do outro, como se desejava antes mesmo de conceder o perdão efetivo. Vejamos, no entanto, o exemplo muito belo e heroico de São João Gualberto. Querendo, a todo custo, vingar a morte de seu irmão, ele conheceu o assassino em uma Sexta-feira Santa. Esse último implorou em nome do Cristo crucificado. João o perdoou e até lhe deu sua amizade. Esta foi a origem da sua santidade, daquele que mais tarde fundou a ordem de Vallombreuse.
A terceira fase do perdão
Eis então a ofensa perdoada. Resta em nós algo que pode ser terrível: a memória! Por mais que tenhamos perdoado, volta à mente todo o mal que o outro nos causou, mal do qual ainda estejamos sofrendo, do qual talvez sempre sofreremos! Imaginemos o pior: um motorista bêbado matou seu filho. Ele veio pedir perdão e, como cristão, você o perdoou. Mas não precisa muito para reviver essa memória: um gesto, uma palavra, um objeto, um lugar. E agora, apesar do seu perdão, com essa memória revivida, às vezes surgem flashes de ressentimento, raiva e até mesmo ódio. Aqui estamos entrando na terceira fase do perdão, o perdão da memória.
Se viveu momentos interiores tão terríveis, deve começar por tranquilizar-se: por si próprios, não põem em questão o valor do perdão concedido. Alguns se culpam com esses movimentos interiores e dizem a si mesmos que seu perdão não foi verdadeiro. Sim, foi. Esses movimentos apenas o lembram do quanto você ainda está sensível. Sem dúvida, você terá de renovar seu perdão interiormente, repetidamente, cada vez que esse movimento da memória for acompanhado por tentações de ressentimento ou revolta. Este é também o “setenta vezes sete” de que Nosso Senhor fala do perdão (Mt 18, 22). E enquanto você renovar o seu perdão interior desta forma, nunca haverá qualquer pecado de raiva, ressentimento ou ódio, quaisquer que sejam os movimentos que você sentir. Pelo contrário, você se dissociará deles, e lentamente esses movimentos se dissociarão dos lembretes de sua memória, eles te abandonarão. E você terá crescido muito em virtude.
“Por meio do perdão, você descobrirá lentamente, além do mal recebido dos homens, o bem infinitamente maior concedido por Deus.”
Pois, quando se trata das grandes feridas do passado que nos marcaram profundamente, perdoar não é esquecer. É aceitar viver em paz com a ofensa. O perdão da memória exige uma lembrança, não um enterro. Uma ferida oculta infecciona, e mais tarde destila seu veneno dez vezes maior. Ao invés disso, é importante trazê-lo para o exterior, na luz. Alí, por força do perdão, descobrirá aos poucos, para além do mal recebido pelos homens, o bem infinitamente maior concedido por Deus, o amor especial com que Ele continua a te amar, o amor que hoje Ele te dá para brilhar, em união com o divino crucificado. Então, suas feridas se tornarão fontes de vida para você.
Se foi necessário falar do perdão dessa forma, é claro que é pela importância do tema. Nosso Senhor é muito claro: “Mas, se não perdoardes aos homens, tão pouco vosso Pai vos perdoará os vossos pecados.” (Mt 6,15); por sua importância, mas também por sua atualidade. A experiência mostra quantas brigas não resolvidas existem em famílias, amigos ou velhos amigos, que muitas vezes se deterioraram ainda mais com o tempo. É necessário – sim, é necessário! – que a caridade de Cristo, que a paz de Cristo seja mais poderosa do que todas essas contendas, que ela seja vitoriosa. Foi este o desejo inicial de São Paulo: “Que triunfe em vossos corações a paz de Cristo, à qual também fostes chamados para (formar) um só corpo.” (Col. 3, 14).