O Evangelho de Jesus Cristo produz o mesmo efeito onde quer que seja pregado: configura almas ao Cristo primogênito. Certamente, o cristianismo que nasce dessa pregação conhece diferentes cores e variedades de acordo com os povos que a recebem. Mas seu espírito é imediatamente reconhecível quando é autêntico, em todos os lugares e em todos os tempos.
Fonte: DICI – Tradução: Dominus Est
O texto a seguir foi escrito por um médico japonês, Paul Nagai, um convertido do xintoísmo e batizado em 9 de junho de 1934, aos 26 anos. Vivendo em Nagasaki, ele testemunharia o fogo nuclear derreter a cidade em 9 de agosto de 1945, atingindo o Japão pela segunda vez – depois de Hiroshima, que tinha sido irradiada no dia 6 de agosto precedente.
Sua esposa, situada perto do epicentro da explosão, seria reduzida a alguns fragmentos de ossos cercados por seu rosário. Ele próprio, então em um hospital relativamente longe da explosão, seria severamente irradiado. Ele morreria em 1º de maio de 1951, de leucemia.
Em 23 de novembro de 1945, um funeral foi realizado para as vítimas no local da catedral semidestruída. Vários testemunhos de membros do clero foram lidos, mas Paul Nagai foi convidado para representar os leigos. O texto que preparou nesta ocasião é o seguinte, um texto impregnado de fé e do mais belo espírito cristão.
“Em 9 de agosto de 1945, às dez e meia da manhã, o Conselho Supremo de Guerra se reuniu no Quartel-General Imperial para decidir se se renderia ou não.
Foi, precisamente, no momento desta decisão pela paz ou pelo prosseguimento da guerra que explodiu a bomba atómica, às 11h02, em nosso bairro de Urakami. [O distrito católico de Nagasaki]
Em um instante, 8.000 almas católicas foram enviadas ao tribunal de seu Criador, e um incêndio devastador reduziu esta cidade cristã a cinzas em questão de horas. Nesse mesmo dia, à meia-noite, a catedral incendiou-se e foi destruída.
Em 15 de agosto, o Édito Imperial que pôs fim aos combates foi promulgado e a paz voltou a brilhar sobre o mundo. Neste dia, a Igreja celebrou a Assunção da Virgem Maria, a quem a nossa Catedral foi dedicada.
Todas essas coincidências podem ser acidentais? Não podemos antes ver nela a delicada obra da vontade de Deus?
Ouvimos dizer que esta segunda bomba atômica, preparada para desferir um golpe fatal no poder combativo do Japão, depois da de Hiroshima, estava destinada a outra cidade. Mas uma densa cobertura de nuvens tornou esse alvo impossível, pelo que a tripulação americana mudou seu plano no último momento e dirigiu-se ao seu alvo secundário.
Foi assim que Nagasaki, um “alvo reserva” até então, foi finalmente escolhida. Soube que quando a bomba foi lançada, o vento a soprou para o norte das fábricas de munição que eram o alvo real, para explodir sobre a catedral. Assim, Urakami, em nenhum momento, foi alvo dos pilotos americanos. Mas é a Providência de Deus que dirigiu o dispositivo.
Não haveria uma conexão misteriosa entre o fim da guerra e a destruição de Urakami? Urakami, o único setor católico e santificado em todo o Japão, não havia sido escolhida como uma vítima adequada para ser sacrificada e queimada no altar da expiação, pelos crimes cometidos pela humanidade nesta guerra mundial?
Pela nossa humanidade, herdeira do pecado de Adão e do sangue de Caim, pela nossa humanidade que se voltou para os ídolos esquecendo de sua filiação divina, por essa humanidade que ignora e odeia a Caridade, ferindo-se a si mesma … para que todos esses horrores e ódios acabassem e para que as bênçãos da paz voltassem a florescer, pois para esta grande redenção não bastava o arrependimento, era necessário haver um sacrifício adequado para obter o perdão de Deus.
Embora cidades inteiras já tivessem sido arrasadas, isso não foi suficiente. Deus não aceitou essas ofertas indignas. Mas quando Urakami foi destruída, Deus finalmente aceitou esse sacrifício, perdoou os homens e inspirou o imperador a encerrar a guerra.
Nossa igreja em Urakami manteve sua fé intacta por 400 anos em um Japão que a proscreveu. Ela suportou muitas e longas perseguições. E durante toda essa guerra ela não parou de rezar pelo retorno da paz.
Não era esta igreja digna de ser escolhida como holocausto no altar de Deus, para que dezenas de milhões de homens não perecessem mais como vítimas da devastação da guerra?
Pensemos na grandeza, no esplendor do holocausto que, nesse dia 9 de agosto, acendeu as chamas diante da catedral, enquanto as trevas da guerra desapareciam e já se erguiam as primeiras luzes da paz. Olhamos então, e mesmo em nossa dor pensamos: Que lindo, puro e sublime!
Oito mil católicos, incluindo os sacerdotes da catedral, foram sacrificados. Todos generosos e fiéis em sua fé, cada uma das quais suscita o nosso pesar. Como estão felizes por terem deixado a vida, como uma alma pura, sem conhecerem a derrota!
Quão alegremente regressaram as almas imaculadas ao Senhor! Comparado com o deles, nosso destino é miserável. O país está derrotado, nossa cidade destruída. Um deserto de cinzas e escombros se estende até onde os olhos não podem mais ver. Não temos casa, nem roupa ou comida.
Nossos campos estão devastados, os sobreviventes são apenas alguns punhados. Ficamos em grupos de dois ou três entre as ruínas, olhando vagamente para o céu. Por que não morremos naquele dia?
Por que temos que continuar uma existência de sofrimento? É porque pecamos. Agora podemos ver a enormidade de nossas faltas e compreendemos que se continuamos vivos hoje é porque ainda não havíamos expiado o suficiente. Restaram apenas aqueles que ainda estavam muito envolvidos em seus crimes para constituir uma oferta digna.
Um futuro cheio de dor e sofrimento está diante de nós, habitantes de um país derrotado. As reparações impostas pela Declaração de Potsdam constituem um fardo pesado. No entanto, a difícil estrada na qual devemos carregar nosso fardo é a única esperança que nos resta. Proporciona-nos a oportunidade de expiar nossos pecados.
Bem-aventurados os que choram pois serão consolados. É com fidelidade que devemos seguir nosso doloroso caminho, até o fim. Seguindo-o com fome, com sede, desprezados, flagelados, suados, certamente seremos ajudados por Aquele que carregou a sua Cruz ao cume do Calvário: Jesus Cristo.
O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o Nome do Senhor. Agradeçamos-Lhe que Urakami foi escolhido para o sacrifício. Sejamos gratos a Ele porque, por meio desse sacrifício, a paz foi restaurada ao mundo e a liberdade de crença no Japão.
Que as almas dos fiéis defuntos descansem em paz através misericórdia de Deus. Que assim seja.”
Paul Nagai, The Bells of Nagasaki, Casterman, 3ª edição, 1953, Paris, págs. 152-156.