AS RAÍZES PURITANAS DO ESPÍRITO AMERICANISTA

Bernard Gribble: Mayflower

Fonte: Sì Sì No No, ano XXXIV, n. 15 – Tradução: Dominus Est

Protestantismo moderado e protestantismo radical

havíamos dito que, para poder considerar a civilização americana e europeia como um unicum, os “neoconservadores” fazem silêncio sobre a profunda ruptura marcada na história da Europa pelo protestantismo, no qual o espírito americanista tem suas “raízes”.

No século XVI, a cristandade europeia passou por uma grave crise com o protestantismo, que rompeu sua unidade político-religiosa sob o papado romano e o Sacro Império Romano-Germânico. A Igreja Romana conhecia as heresias desde seu nascimento, mas havia triunfado sobre elas. A virada herética de Martinho Lutero (†1546), por outro lado, não pôde ser detida e se estabeleceu no norte da Europa (especialmente na Alemanha), onde os hereges se tornaram a maioria, organizados em igrejas autônomas oficialmente apoiadas pelos príncipes alemães. Todo o norte da Europa foi subtraído do papado. O protestantismo, com efeito, rejeita a Igreja de Roma (seu Credo, Sacramentos e Lei) e o papado, negando as origens apostólicas e petrinas da Esposa de Cristo.

Os Países Baixos[1] e os países escandinavos (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia) seguiram e até ultrapassaram a Alemanha, acusando Lutero de excessiva moderação. Na Alemanha, entretanto, o extremismo já havia tido suas manifestações na forma do movimento dos camponeses (anabatismo, que considerava o batismo válido apenas para adultos). Essas correntes levariam o luteranismo ao extremo, chegando até à negação da Santíssima Trindade e da divindade de Jesus Cristo. Na Suíça, João Calvino (†1564) exasperou a doutrina predestinacionista luterana e apontou o sucesso terreno e mundano como sinal da eleição divina. Na Inglaterra, o calvinismo foi chamado de puritanismo, porque queria “limpar” a igreja nacional anglicana de qualquer resíduo de papismo; ele desempenhou um papel importante no nascimento da América e no espírito americanista, principalmente por meio de seus dois pilares principais: sucesso econômico mundano e antitrinitarismo.

O paraíso na terra

A América do Norte “sempre buscou as razões mais profundas de sua identidade” na fé dos puritanos radicais ou “regenerados”. O conceito puritano de vocação, “segundo o qual o cristão prova ser um instrumento de Deus não nos heroísmos da vida monástica, mas aceitando sua posição no mundo…, operando com sucesso no reino do demônio” (T. Bonazzi, Dizionario di politica, N. Bobbio [editado por], Turim, Utet, 1983, verbete Puritanismo, p. 921), entrou no sangue dos EUA; a “vocação ou ascese terrena e mundana”, da qual fala o professor Tiziano Bonazzi, é típica do calvinismo puritano, do americanismo e, hoje, do neoconservadorismo cristão.

O puritanismo é caracterizado – escreve Monsenhor Leone Cristiani – como “um partido e uma atitude psicológica dentro das diferentes denominações [protestantes]… com o objetivo de purificar a Igreja de toda mancha papista […], o puritano é o homem da sola Bíblia [especialmente do Antigo Testamento]… as imagens grandiosas da literatura hebraica deram um estranho acento ao entusiasmo sóbrio do puritano, que se tornou sentencioso, dogmático e apocalíptico. […]. Entre as importantes consequências do puritanismo [está] a origem das colônias americanas. Os famosos Pais Peregrinos que emigraram em 1620 para a América, no Mayflower, eram puritanos. […] também se deve ao puritanismo a criação da nobreza e da burguesia de comerciantes ingleses, austeros, ávidos por ganhos, que consideravam a riqueza como uma bênção do céu e a pobreza como efeito do vício[2].

O próprio Monsenhor Leone Cristiani escreve no Dictionnaire de Théologie Catholique (verbete Puritanisme, col. 1357-1361): “O puritano tem um espírito de rigor e ostentação que beira o farisaísmo […]. Dois elementos caracterizam o puritanismo: a) o culto da sola Scriptura [o espírito revolucionário subjetivista e milenarista, n.d.a.]; […] b) o dogma calvinista do predestinacionismo; o puritano é o homem que se sente predestinado a governar o mundo […]. No campo moral, o puritanismo criou um gosto pela ‘honra’ impecável, que não está isento dos perigos do farisaísmo […] que se expressa na observância exterior e escrupulosa da Lei, e assim acaba favorecendo a hipocrisia que cobre vícios ocultos com belas aparências e identifica falsamente honra e santidade”. Um dos maiores historiadores americanos, Charles Austin Beard (1874-1948), em seu monumental The Rise of American Civilization (1927), explica que os puritanos que se mudaram para a América estavam convencidos de que eram o povo escolhido a quem estava destinada a terra rica e poderosa, uma espécie de paraíso na terra ou de Terra Prometida. Georges Batault, por sua vez, em Judaisme et puritanisme (1921), mostra muito bem a afinidade entre o judaísmo talmúdico e o puritanismo[3]. A pseudo-reforma protestante, explica o autor, era essencialmente anti-romana e descobriu na tradição judaica tanto o espírito de revolta e milenarismo (ver Apocalissi giudaiche no Dizionario Biblico de Mons. F. Spadafora) quanto a mentalidade voltada aos negócios, que é característica do liberalismo anglo-americano. O puritanismo tem origem na união entre anabatismo e calvinismo; ele se baseia no livre-exame luterano, ou seja, na interpretação livre e subjetiva da Bíblia, com o resultado de lê-la de acordo com um sentido exclusivamente literal e material (como os judeus), encontrando assim no Antigo Testamento o espírito farisaico do judaísmo pós-bíblico. De acordo com Batault, pode-se dizer que o puritanismo é uma espécie de judaísmo talmúdico para os gentios.

Ainda de acordo com Batault, os puritanos exerceram uma grande influência na constituição dos Estados Unidos; com efeito, eles são os autênticos criadores do ideal americano. O papel dos judeus e dos puritanos nos Estados Unidos é tão conjunto que é impossível distingui-los. Sob a influência judaico-puritana, os Estados Unidos da América se tornaram a maior potência econômica, política e militar e, por meio da América, o espírito judaico-puritano se espalhou pelo mundo.

Parece-me que, enquanto na Europa o judaísmo não pôde se valer da ajuda da religião-mãe europeia, o catolicismo romano, que também aqui exercia sua função de “aquela que detém” o “Mistério da Iniquidade que opera no mundo” (São Paulo, IIª Carta aos Tessalonicenses), na América, por outro lado, a religião predominante no Novo Mundo, o puritanismo, não só lhe deu tolerância e emancipação assimiladora, mas também total liberdade religiosa, social e política, o que o tornou um só com o americanismo e o tornou o pai cofundador dos Estados Unidos: O puritanismo e o judaísmo sionista são coessenciais e tendem teologicamente à dominação do mundo e à sua transformação em uma espécie de paraíso na terra, graças ao bem-estar material obtido por meio do espírito liberal-mercantilista[4].

Agostino Degli Espinosa escreve: “A Europa, até o final do século XIV, era tudo, ou seja, estava sozinha […]. A Reforma [luterana] é o início do surgimento de um novo mundo ao lado desse antigo […]. O primeiro fato que marcou a separação material do novo mundo do antigo foi a revolta da Holanda contra a Espanha[…]. O protestantismo republicano holandês […] então transmigrou para a Inglaterra, onde (ao contrário do anglicanismo, que manteve um caráter de incompletude, permanecendo monárquico e dogmaticamente não muito distante do catolicismo), chegou à perfeição extrema política (com o republicanismo) e religiosa (com o antitrinitarismo e o antirromanismo). […]. É por isso que é possível […] chamar o movimento inovador de puritano ou protestante e o movimento conservador de católico, na luta que vem ocorrendo desde o século XVI […]. Os anos 1500 marcaram, de fato, uma revolução de natureza econômica na sociedade; a indústria, a partir da Itália, investiu em outras nações…, que antes eram predominantemente agrícolas e guerreiras […]. O que colonizou a América… não foi apenas a religião…, mas também o amor pela liberdade universal […]. Os homens que deixaram seus lares na Inglaterra […], para ir viver no inóspito novo mundo, eram na verdade os rebeldes contra as leis reinantes do velho mundo europeu […], tais homens eram principalmente puritanos […] que lutaram contra a incompletude da reforma religiosa anglicana e contra a prisão dela ao campo religioso […]. Seus adeptos haviam atravessado o oceano […] em busca de uma terra virgem onde pudessem criar o Estado ideal, antimonárquico e anticatólico”[5].

O autor supracitado também explica que a América era agitada por duas correntes diversificadas do mesmo protestantismo: a “inglesa, conservadora e tradicional [anglicana e não excessivamente anti-romana, do ponto de vista do dogma]” e a “holandesa, nitidamente inovadora [republicana e anticatólica, do ponto de vista do dogma]”[6]. Essas correntes eram dois ramos da mesma árvore, mas enquanto “a Inglaterra [estava] emperrada, desviada, tornada incompleta em suas realizações, pela educação autoritária e hierárquica ainda viva”, a Holanda era “livre e determinada até as consequências lógicas extremas as quais tendia”[7]. Ambas as correntes podiam ser encontradas na América, onde, no entanto, a holandesa mais radical prevaleceu. De fato, “é preciso estar intimamente convencido […] de que a vida das colônias americanas não é a continuação e a perfeição da vida inglesa”, mas que “a única nação europeia que pode ser conectada à nação americana (…) é a Holanda”[8], republicana, democrática e anticatólica, onde se entende por catolicismo: Unidade e Trindade de Deus; Encarnação, Paixão e Morte de Jesus Cristo, Verbo Encarnado, consubstancial com o Pai e o Espírito Santo.

A lua no poço

Antitrinitarianos são todos aqueles que “professam algum erro com relação ao mistério da Santíssima Trindade, quer afirmem que há três naturezas nela (triteístas), quer afirmem que há apenas uma pessoa (monarquianos), quer neguem a divindade de qualquer uma das três pessoas divinas” (Enciclopedia Cattolica, verbete antitrinitari).

A corrente antitrinitariana moderna surgiu na Holanda com o anabatismo no século XVI, combinado com o milenarismo (o retorno iminente de Cristo a esta terra); em seguida, mudou-se para os EUA (onde continuou até 1945)[9]. Depois, no século XVIII, na América do Norte, o Batismo adotou a cristologia neo-ariana e, em 1719, levou oficialmente à rejeição do dogma da Santíssima Trindade e, no final do século 18, à formação do unitarismo[10]. Este caracteriza-se pela rejeição da Trindade, qualificada por eles como idolatria; na antiguidade (séculos II e III) foi representado pelo Modalismo, Monarquianismo, Sabelianismo e Arianismo, e no século XVI pelo Socinianismo[11]. A Reforma Protestante originalmente (Lutero, Melanchthon e Calvino) permaneceu fiel ao dogma trinitário, mas preparou o cenário para sua negação ao substituir a autoridade da Revelação escrita/oral e magisterial pelo subjetivismo individualista (“parece-nos que”). Ele então desencadeou as reações humanistas antitrinitárias que, começando com a Academia florentina de medicina, com os talmudistas e cabalistas da Renascença e Erasmo de Roterdã, espalharam-se pela Holanda, Polônia, Inglaterra e depois pelos EUA[12].

O socinianismo, escreve Mario Bendiscoli, “é devedor do humanismo estoicista, pelagiano (e especialmente cabalista), segundo o qual as capacidades éticas naturais do homem, que não são feridas pelo pecado original, são suficientes para fazê-lo observar os mandamentos, sem a necessidade da graça divina”[13]. O socianianismo retoma a cristologia ariana, segundo a qual Cristo não é Deus, mas apenas um grande homem, desemboca na apocatástase origeniana (que nega a eternidade do inferno), no indiferentismo liberal dogmático, na tolerância absoluta como princípio e, por fim, lança-se no liberalismo inglês[14]. Mons. Leone Cristiani escreve que o arianismo, nos séculos XVII e XVIII, revisitou a Polônia, a Holanda e a Inglaterra e finalmente se estabeleceu nos EUA, onde experimentou uma expansão maior do que na Europa. Os antitrinitarianos eram Newton, Clarke, Milton e Locke. Em 1794, os “cristãos liberais” se estabeleceram nos EUA (Liberal Christians), onde fundaram cerca de 500 igrejas, com 500 ministros e 60.000 fiéis (até 1925)[15]. Lelio Socini (†1562), um acadêmico de direito em Pádua, natural de Siena, seguiu a corrente do ceticismo humanista (cabalístico e pagão). Ele viajou por toda a Europa para atuar como intermediário entre os vários heresiarcas protestantes. Calvino o recomendou ao príncipe Nicolau Radziwill na Polônia (1556, 1558), onde o espírito de inovação religiosa e o irenismo protestante, ou seja, a livre difusão e coexistência de todas as seitas reformistas, mesmo as mais diferentes e contrárias umas às outras, estava em ebulição. Seu sobrinho Fausto Socini (†1604), de ascendência materna Piccolomini (uma família que deu à Igreja dois papas: Pio II e III), seguiu os passos do tio e foi para a Polônia, para a “Irmandade Polonesa”, uma seita antitrinitariana em Luclawice, perto de Cracóvia. Lá, ele se casou com uma jovem nobre local e conseguiu (graças à ajuda da nobreza liberal polonesa, que havia fundado várias igrejas antitrinitarianas em vários castelos, onde se reuniam conventos de estudiosos humanistas e bíblicos) evitar a expulsão, decretada pelo rei Estêvão Báthory em 1583, porém – meio século depois – em 1638 a sede principal dos socinianos em Rakow, perto de Cracóvia (Gymnasium bonarum artium) foi fechada e eles emigraram para os EUA, que se tornou a sede principal do “antitrinitarismo cristão”[16]; uma verdadeira contradictio in terminis, já que os dois principais mistérios do cristianismo são a Encarnação do Verbo divino e a Unidade/Trindade de Deus.

Naturalmente o “cristianismo” puritano americano não é totalmente e por sua natureza antitrinitariano, mas tendencialmente e em grande escala tende a minimizar, silenciar, senão negar, a divindade de Cristo e a Trindade das Pessoas divinas. Entretanto, essencialmente ele permanece vetero-testamentário e o Evangelho é quase incidental a ele. Por isso, o puritanismo americano está mais próximo do talmudismo judaico do que do cristianismo, do protestantismo de Lutero, Melanchthon, Calvino e, acima de tudo, é diametralmente oposto ao catolicismo romano. Portanto, procurar nos EUA as raízes do cristianismo europeu é como procurar “a lua no poço”.

Um testemunho insuspeito

O padre Luigi Giussani escreveu (em 1967) um interessante livro (Teologia protestante americana), reeditado em 2003 pela Marietti (Gênova-Milão). Nele, o fundador do Comunhão e Libertação, com intenções ecumênicas, disseca e elogia a doutrina protestante americana. Tentarei resumir os principais pontos de sua obra.

Os colonos que fugiram para a América eram principalmente “anglicanos, calvinistas, luteranos, e ‘sectários’ de várias orientações, especialmente batistas”[17]. Dom Giussani explica que, enquanto na Europa o anglicanismo, o luteranismo e o calvinismo permaneciam em minoria, nos Estados Unidos o calvinismo puritano tornou-se amplamente majoritário e deu aos Estados Unidos “um caráter mais de Antigo Testamento do que cristão[18]. A igreja protestante americana organizou-se no “congregacionalismo”, ou seja, como independente (não totalmente separada) da igreja anglicana[19]. A primeira geração calvinista americana (John Cotton †1652) era uma “teocracia feroz… de um ‘papa’ sem mitra, de uma comunidade que odiava o papa”[20]. Para ele, somente os membros da igreja congregacional americana eram cidadãos plenos, embora devesse haver uma relação de total separação entre a igreja e o estado[21]. Com John Wise (†1725), o congregacionalismo conheceria sua fase democrática, superando a incongruente teocracia – dada a separação entre poder espiritual e temporal – de Cotton e motivando a luta pela independência americana[22]. A segunda geração calvinista americana (Sínodo de Boston, 1662) expandiu o conceito de “igreja”, afirmando que o batismo poderia ser administrado não apenas pela igreja congregacional perfeita ou santa, mas por qualquer um de seus adeptos, mesmo que não fosse santo ou perfeito[23]. Além disso, Jacó Armínio (†1609), um teólogo holandês que emigrou para os EUA, desafiou a rigidez do predestinacionismo calvinista e congregacionalista, afirmando que a liberdade do homem não pode ser determinada pela vontade de Deus. Isso significou a destruição do cerne da doutrina calvinista.

Do arminianismo surgiu uma corrente racionalista e iluminista, que suplantou o calvinismo tradicional na liderança americana, questionando o domínio absoluto de Deus sobre a liberdade do homem. Mas com Jonathan Edwards (†1758) veio a reação do puritanismo ortodoxo e antirracionalista, que reafirmou a supremacia absoluta da vontade divina sobre a iniciativa humana. De Edwards surgiu uma corrente religiosa chamada de “Grande Despertar”, que defendia um “reavivamento” (revival) da vida religiosa baseado na emoção sentimental. O inimigo era o deísmo arminiano. No final do século XVIII, o racionalismo deísta-liberal contra-atacou e, rejeitando a doutrina “revivalista” de Edwards, também negou a Santíssima Trindade e a divindade de Cristo.

Com razão, Dom Giussani observa que essa luta foi apenas o resultado natural do puritanismo americano, que continha em si os germes das duas correntes: a predestinacionista e a racionalista antitrinitária. Portanto, “esse resultado do puritanismo da Nova Inglaterra não é uma surpresa abrupta: ele exalta um dos polos de uma tensão dualista que o caracterizou desde suas origens. Por um lado […] uma forte percepção do mistério do divino […]; por outro […] uma necessidade de racionalização”[24]. O protestantismo calvinista americano sempre foi caracterizado por essa dupla tendência do sobrenaturalismo exagerado e fideísta contra o deísmo racionalista e iluminista, de predestinacionismo contra liberalismo humanista e ativista, de fundamentalismo exegético antievolucionista contra secularismo antropocêntrico. Na moralidade, as consequências dessa dicotomia são o rigorismo farisaico-puritano versus a permissividade e o laxismo hedonista. Com efeito, os Estados Unidos são – com razão – descritos como “o país mais religioso e mais secularizado”.

Isso não é uma piada; é a realidade, que se baseia no dualismo e na contradição inerentes ao calvinismo, que, enquanto por um lado é predestinacionista e interpreta o Gênesis literalmente (fundamentalismo exegético), por outro lado possui uma carga de livre iniciativa e ativismo consequente do “dogma” predestinacionista, segundo o qual a bênção de Deus é vista no sucesso econômico-mundano do homem, que assim se sente impelido a agir livre e liberalmente para se sentir salvo do Deus tirano. Portanto, ao insistir no rigor e na quase tirania da vontade divina, a pessoa é levada a “formar a própria personalidade – ou caráter – como a quintessência de toda a moralidade”[25]. Se alguém se concentrar em apenas um elemento do protestantismo americano, não conseguirá entender o espírito aparentemente contraditório do americanismo e correrá o risco de elevá-lo a um ideal, como fazem os conservadores europeus[26][nota do blog: e também como o fazem os conservadores brasileiros].

As correntes teológicas americanas posteriores oscilam entre o teocentrismo tirânico e predestinacionista e o antropocentrismo liberal e imanentista-panteísta, que são os dois lados da mesma moeda do puritanismo americano. Essa tensão teológica explica politicamente a transição da teocracia calvinista para a democracia puritana-americana.

A religião protestante americana, continua Dom Giussani, “é fortemente caracterizada pelo conceito de ‘experiência religiosa’ do divino”, que é um substituto sensista-empirista e pragmatista do voluntarismo: assim, Deus não é um objeto de fé como adesão intelectual a dogmas revelados e definidos, e nem é (kantianamente) um produto da vontade humana, mas apenas um objeto de experiência sensível. Nessa visão, a existência de Deus não é racionalmente demonstrável, mas experimentável: Deus é “sentido”. Fora da experiência não há nada: a metafísica está morta, o idealismo clássico está ultrapassado, somente a experiência sensível é uma fonte de “conhecimento” e ação (de acordo com o Iluminismo filosófico britânico, o sensismo e o empirismo). “O temperamento e a cultura dos americanos, continua Giussani, rejeitam a rigidez e o contraste […]. O pensamento americano busca ansiosamente pontos de contato entre os dois polos do natural e do transcendente”, de modo que Deus, embora seja um “tirano” absoluto, se o “sentirmos” ou o vivenciarmos sentimentalmente dentro de nós, torna-nos tão autoconfiantes que nos leva a um ativismo exasperado.

Essa é a religiosidade americanista tão próxima do modernismo, mas tão exaltada pelo Comunhão e Libertação, pelos conservadores e por Bento XVI em sua viagem (abril de 2008) aos EUA, definida como um “modelo ideal” de relações entre Igreja e Estado: separação absoluta e liberdade para todas as religiões, verdadeiras e falsas!

Torquato Pezzella

Nota de Dominus Est: Conforme observado já na primeira linha do original (“Já havíamos dito que”), este texto é uma continuação natural (embora de um autor diferente) do texto (NEO)CONSERVADORISMO – UMA IDEOLOGIA ATEU-REVOLUCIONÁRIA CAPAZ DE SEDUZIR OS CATÓLICOS. O anterior explica um fenômeno atual e este explica suas origens e raízes.

Notas

1. Os Países Baixos consistiam nas províncias do sul (atual Bélgica), que eram católicas e falavam francês, e nas províncias do norte (atual Holanda), que falavam flamengo e eram protestantes. Eram terras muito ricas, dedicadas ao comércio marítimo. O rei da Espanha não tolerava que os holandeses (seus súditos) fossem protestantes; por isso, Flandres se revoltou contra Filipe II em 1576, sob a liderança do holandês Guilherme de Orange.

Enquanto isso, na Inglaterra, Elizabeth I (desejosa de fortalecer a igreja nacional anglicana) perseguiu os puritanos (que emigraram para a América do Norte) e seguiu não apenas uma política de expansionismo colonial na América do Norte, mas também uma guerra agressiva contra a marinha espanhola (que trazia para casa os tesouros das colônias americanas), por meio dos corsários ou piratas marítimos liderados por Francis Drake. A Espanha de Filipe II atingiu então seu apogeu, mas também começou seu declínio (1588, derrota da Invencível Armada); Juntamente com a Espanha (pouco inclinada à nova mentalidade mercantilista e empresarial puritana), os outros países católicos também começaram a declinar diante dos países protestantes que, em vez disso, começaram a emergir e a assumir a liderança político-econômica, até que os EUA aperfeiçoaram o domínio do puritanismo holandês e dos Pilgrim Fathers ingleses, que haviam fugido da pátria, sobre o anglicanismo da coroa britânica.

2. L. Cristiani, verbete Puritanesimo, in “Enciclopedia Cattolica”, Cidade do Vaticano, 1953, vol. X, coll. 351-354.

Observe que o puritanismo transferiu o dia da festa do domingo (a ressurreição de Cristo) para o sábado judaico (o descanso de Javé no Antigo Testamento), de acordo com a numeração calvinista e anglicana. Cf. J Y. La Coste (dirigido por), Dizionario critico di Teologia, Roma, Borla Città Nuova, 2005, verbete Puritanesimo, pp. 1097-1098.

3. Sobre a questão do judaísmo na Holanda, na Inglaterra e na América, pode-se consultar o verbete Ebrei na Enciclopédia Italiana, editada por Giorgio Levi Della Vida, que escreve: “Após a concessão feita por Carlos V em 1536 aos marranos para residirem na Holanda, muitos deles se estabeleceram lá. […] Depois da União de Utrecht […], os marranos começaram a […] exercer considerável influência na nova república, de modo que pouco a pouco retornaram abertamente ao judaísmo […]. O rabinato da comunidade de Amsterdã […] trabalhou para a readmissão dos judeus na Inglaterra. […] A transformação do espírito religioso na Inglaterra, após a prevalência do protestantismo e as guerras com a Espanha, fez com que as pessoas pensassem sobre a conveniência de readmitir judeus. […] Olivier Cromwell, em 1657, permitiu que alguns judeus se estabelecessem em Londres. Em 1685, um decreto do rei Jaime II declarou livre a prática do culto judaico. […] Os judeus se estabeleceram em várias colônias na América do Norte a partir do século XVII: eram especialmente judeus de origem portuguesa da Holanda” (pp. 351-352).

4. Com relação à heresia modernista, chamada de “americanismo” e condenada por Leão XIII em Testem benevolentiae (1895), leia Mons. H. Delassus, L’Américanisme et la conjuration antichrétienne, Lille-Paris, Desclée-Brouwer, 1899. O autor mostra que na origem do americanismo doutrinário e ascético está a Aliança Israelita Universal. Uma excelente refutação do americanismo ascético é A Alma de todo apostolado, do Padre J.B. Chautard. Sobre Monsenhor Delassus, leia: Medler, Mgr. Delassus (1836-1921). Face à la Conjuration antichrétienne, un maitre contre-révolutionnaire. Avrillé, Le Sel, 2005.

5. A. Degli espinosa, Imperialismo Usa, Roma, Augustea, 1932, pp. 10-38.

6. Ibid., p. 39.

7. Ibidem.

8. Ibid., p. 42.

9. O mais ativo dos antitrinitarianos foi Miguel Serveto, sobre quem Monsenhor Leone Cristiani escreve: “Miguel Serveto, nascido em 29 de setembro de 1511 em Tudela, Navarra […] pretendia restaurar o cristianismo das origens, indo além da metafísica, que – segundo ele – havia destruído a fé primitiva. […] Jesus não é um ser transcendente, mas um homem entre os homens. Ele não é Deus por natureza, mas foi santificado pelo Pai […]. Ele também afirmou o antitrinitarianismo, chamando a Santíssima Trindade de ‘cérebro de três cabeças’”. (D. Th. C., verbete Servet, col. 1967-1972). Serveto aderiu à Reforma Protestante e também ultrapassou Calvino, adotando o anabatismo, que, combinado com o tradicional “puritanismo inglês”, deu origem à concepção mais inovadora e radical chamada “puritano-americana”, que é uma mistura de puritanismo e anabatismo; tendendo, portanto, e em alguns casos até formalmente, a ser antitrinitário e a negar a divindade de Cristo (pode-se entender, então, como o judaísmo talmúdico pôde triunfar na América puritana-anabatista). Na Enciclopedia Cattolica, Mons. L. Cristiani escreve que Serveto era “um herege antitrinitário […]. Um católico externamente impecável, compôs sua principal obra, que apareceu sob o título Christianismi restitutio (Viena, 1553)… Jesus é o Filho do Deus eterno e não o Filho eterno de Deus […]. Ele, portanto, rejeitou a doutrina trinitária do Concílio de Nicéia e a doutrina cristológica do Concílio de Calcedônia, […] afirmando, além disso, uma espécie de milenarismo” (verbete Serveto, vol. XI, 407-410).

10. J. Y. La Coste (dirigido por), Dizionario critico di Teologia, Roma, Borla/Città Nuova, 2005, verbete Anabattismo, pp. 82-83.

11. Ibid., verbete Battisti, pp. 206-207.

12. Ibid., verbete Unitarismo, pp. 1428-1430. Além dos Socini, Giorgio Biandrata (†1588), que difundiu o unitarismo no norte da Itália e na Suíça, e Miguel Serveto (†1553), que tentou difundi-lo em Genebra, mas foi condenado à morte por Calvino, também eram unitaristas. Em tempos mais recentes, houve algum desenvolvimento de igrejas unitaristas na Inglaterra, com Theophilus Lindsey († 1808), que fundou a Igreja Unitarista da Inglaterra em 1778. Enquanto Joseph Priestley (†1804) emigrou para os EUA em 1794 e se juntou aos Congregacionalistas Unitários Americanos, que professavam a rejeição de qualquer fórmula dogmática (substituída pela experiência religiosa), um vago sentimentalismo moral ou moralismo sentimental e filantropismo liberal-maçônico (Ibid.). Os seguidores poloneses de Socino foram: Valentinus Schlalz (†1622), John Volkel (†1618), Christopher Ostorodt (†1615), Jerônimo Moskorowski (†1625), Adam Goslaw, Andrew Woidowskj, John Crell (†1631), Martin Ruarus (†1657). Seria muito interessante estudar suas relações com os cabalistas e talmudistas da Academia médica em Florença e com o meio judaizante polonês, referindo-se a Sabbatai Zevi (1626-1676) e, mais tarde, Jacob Frank (1726-1791). Cf. A. Rotondò, Studi di storia ereticale del Cinquecento, Florença, Leo Opschki, 2 vols., 2008.

13. Ibid., verbete Trinità, p. 1395.

14. Enciclopedia Cattolica, verbete Socini, vol. XI, coll. 874-876..

15. Ibidem.

16. D.Th.C., verbete Unitariens, coll. 2162-2172, passim.

17. Ibid., verbete Socinianisme, col. 2326-2334.

18. L. Giussani, Teologia protestante americana, Genova-Milano, Marietti 1820, p. 9.

19. Ibid., p. 10.

20. Ibidem.

21. Ibid., p. 13.

22. Ibid., p. 17.

23. Ibid., p. 18.

24. Ibid., p. 23.

25. Ibid., p. 53

26. L. Copertino, Spagetticon, Rimini, Il Cerchio, 2008.