Pelo Pe. Álvaro Calderón, FSSPX
Introdução
O demônio é o príncipe desse mundo que, antes da chegada de Jesus Cristo, conquistara até mesmo o povo escolhido; e, como homem armado, guardava seu reino.
Jesus Cristo, mais forte do que ele, expulsou-o da verdadeira Israel, ou seja, da Igreja Católica – Igreja que ergueu no meio das trevas como Torre de Ouro e de Marfim, escada de Jacó fortificada que leva até o céu; para que acudissem a ela os indivíduos, as famílias e as nações, se desejam sua salvação.
A Igreja possui as virtudes de Jesus Cristo, o Ouro de sua Divindade e o Marfim de sua humanidade, o Ouro de sua caridade e o Marfim de sua pureza, com os quais é capaz de confirmar as almas, as famílias e os povos.
A Igreja chegou a receber uma família de povos que se chamou Cristandade, forte em graça e em sabedoria. Mas após um ataque de sete séculos, acabou caindo e foi invadida pelos maus espíritos, sua ruína pior do que a princípio. O que foi a Cristandade, a Cidade de Deus, a Cidade do Amor a Deus até a entrega de si, voltou a ser Babel, a Cidade de Caim, a Cidade do Amor-próprio até o desprezo de Deus.
Os escombros da Cristandade terminam de cair quando o Concílio Vaticano II envenena de liberalismo a hierarquia católica, que deixa de confirmar os governos.
Nessa Cristandade invadida ainda se luta nas ruas: perderam-se os povos, mas permanecem famílias católicas, que sustentam certa guerra civil. Queridos jovens: parece-lhes que suas famílias estão firmes neste combate? Feliz do que pode dizer “sim”, pois geralmente é evidente que não. Há feridas, há tristíssimas quedas, as colunas dos lares tremem e as paredes sacodem.
De onde, então, tiramos as forças? Como fortalecer as famílias nesta batalha? É importante saber: vou falar das “virtudes da família católica” em sentido propriíssimo e formalíssimo. As virtudes são disposições espirituais semelhantes às capacidades corporais, como as exibidas nas Olimpíadas. São potências ou forças devidamente dirigidas. Mas não vou falar das virtudes da família do ponto de vista ético ou natural (moral, econômica), e sim das virtudes da família “católica”, ou seja, do suplemento de virtude que a família tem por ser parte da Igreja. Em uma comparação não muito bonita: assim como às vezes os esportistas são tentados e usam drogas anabolizantes que lhes dão poderes não naturais, e um coxo ganha a corrida de 100 metros, assim também há suplementos de potências espirituais dadas pela Igreja, que faz com que nós, paralíticos como somos, não paremos no meio do caminho. A isso nos referimos quando falamos que a Igreja confirma as almas, as famílias e os povos. Dá-lhes uma firmeza que não têm como própria, mas como que comunicada pela Igreja, que faz dos povos, das famílias e das almas uma partezinha viva da própria Igreja, participantes da fortaleza da própria Igreja.
Esse suplemento de fortaleza vem-lhes por meio do Sacerdócio de Jesus Cristo, que se exerce por meio da hierarquia da Igreja. Assim, podemos dizer que o Papa confirma a Cristandade, os bispos confirmam os povos, as paróquias confirmam as famílias e os sacerdotes confirmam as almas. Isso é patente, de modo muito claro, no Ritual do sacramento do matrimônio. Os ministros são os esposos, mas o matrimônio é inválido sem a confirmação do pároco: “E eu, da parte de Deus Todo-Poderoso e dos Bem-aventurados Apóstolos São Pedro e São Paulo, e da Santa Igreja, os desposo, e este Sacramento confirmo, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”.
Vamos articular três coisas neste artigo: diremos quais são essas virtudes, indicaremos como provém do exercício do sacerdócio e mostraremos como se contrapõem às disposições da família liberal. Atenção: vou falar da família católica ideal e da família liberal ideal, a modo de ideias platônicas; mas todos sabemos que cada uma das nossas queridas famílias têm doses de uma e da outra: algo de trigo e algo de joio. Feliz a família que tem o grão bom em abundância!
É fácil enumerar as virtudes que a Igreja comunica à família, porque são as mesmas da Igreja: a família católica é una, santa, católica e apostólica. Quatro pontos para nossa exposição.
Unidade
A unidade da Igreja tem seu fundamento na unidade da Fé, sustentada pelo exercício do Magistério infalível da Igreja. Digamos, de passagem, que o Concílio Vaticano II foi causa de divisão porque, muito estranhamente, não quis exercer esse magistério infalível.
Não é difícil ver quão é confirmada a unidade da família pelo pertencimento à Igreja. O próprio do homem é ser racional, animal racional, e por isso o bem humano por excelência é a verdade. O homem deve reger sua conduta por certa sabedoria, para conhecer os fins últimos pelos quais vive, e que lhe permitam discernir o bem do mal. A Igreja comunica ao pai e à mãe essa sabedoria de maneira altíssima, certíssima e pedagógica, como nenhum filósofo conseguiu fazer. Pai e mãe têm soluções para todos os assuntos que podem influenciar na direção da vida: religiosos, morais, sociais, etc. É pouco, e secundário, o que pode entrar em discussão. De maneira que a família, à luz dessa Sabedoria católica, tem notabilíssima unidade de ação.
Mas a iluminação da família católica não advém apenas pelo exterior. Assim como o sacramento da Ordem estabelece a sociedade eclesiástica, o sacramento do Matrimônio estabelece a sociedade doméstica. E assim como o primeiro dom que o sacramento da Ordem confere – à hierarquia sacerdotal – é o carisma do magistério, assim também as primeiras graças que o sacramento do matrimônio confere à hierarquia doméstica – ao pai e à mãe – são luzes de sabedoria e prudência. Assim como o Papa e os bispos são assistidos pela sabedoria de Jesus Cristo, assim também o pai e a mãe são assistidos por um carisma especial além da própria graça e virtude: é suplemento de luz sacramental.
A família liberal, ao contrário, contra a própria natureza humana, coloca como fundamento não a verdade, mas a liberdade, contra o que diz Nosso Senhor: “A verdade” e somente a verdade “os fará livres”. E a liberdade principal é a liberdade de opinião. À esposa liberal soa como anular a personalidade se pensa o mesmo que o esposo: se ele é são-paulino, ela será corintiana. E assim entre todos com todos.
Desse modo, somente há unidade nas coisas que se impõem de fora: deve-se mandar os filhos para a escola, ir ao médico; mas há pluralismo nas questões mais fundamentais, que parecem ser questão de opinião. E a ação, mesmo a individual, sempre será débil, porque em nada se tem certeza. O ápice do espírito liberal é levar à liberdade religiosa até o casamento de um muçulmano com uma católica, e o melhor que pode acontecer com os filhos é ser budistas.
A unidade firmíssima da família católica, então, se funda nessa Sabedoria que recebe da Igreja e que é participação na unidade da Igreja. Ora, é evidente que ela depende, essencialmente, do sacerdócio católico. Primeiramente, como dissemos, porque a Sabedoria católica foi exposta com a autoridade do próprio Cristo, pelo Magistério dos Papas e dos Concílios. Mas não só isso, por que acaso há algum pai que seja tão instruído, que nessa matéria não precise do conselho do sacerdote? Sacerdote cuja ciência própria é a sabedoria católica, ou seja, a Teologia… Os pais devem se instruir na Sabedoria Católica, devem alcançar um sentir católico, mas suas ocupações e profissões lhes impedem dedicar-se plenamente à Teologia. A isso se dedica o sacerdote, com dedicação especial, com estudos, com graças especiais. Assim como para a saúde corporal, os pais devem ser suficientemente instruídos para o cuidado de seus filhos, mas necessitam constantemente do conselho dos médicos; assim também, para a saúde espiritual, necessitam dos sacerdotes, que confirmam a unidade da família.
Uma última, e importantíssima, advertência. Na Cristandade, havia três ordens subordinadas: a família, o Estado e a Igreja. A família está subordinada ao Estado pela ordem natural, o Estado está subordinado à Igreja pela elevação à ordem sobrenatural. Tal subordinação presume, em primeiro lugar, uma subordinação dos critérios sapienciais ou, mais claramente, presume que o Estado sabe mais do que a família e a Igreja sabe mais do que o Estado. Para a criança católica, é natural e espontâneo pensar que os professores da escola sabem mais do que os pais e que os párocos sabem mais do que os professores.
Atenção: a família católica vive, hoje em dia, num Estado liberal. Há pais que creem que, como os filhos amam mais a eles do que aos professores da escola, vão acreditar mais nos pais. E é um erro tremendo. Basta a criança sair do lar e entrar na escola para que lhe seja aberto o mundo social, e imediatamente se dá conta que esse mundo tem mais autoridade do que os pais; o pai não é livre para enviá-lo ou não para a escola, de exigir que seja dada esta ou outra matéria, e os demais reconhecem essa nova autoridade. Não, a criancinha percebe imediatamente que está perante critérios superiores, e o espontâneo e natural é que confie mais na escola do que no pai.
A única maneira de que o jovem católico não se torne liberal é que, tendo uma fé suficientemente viva, veja que na paróquia (no priorado) os sacerdotes estão conforme o pai e não com os professores. Nos sacerdotes, reconhece uma autoridade maior do que a da escola, porque é a autoridade de Deus. É muito, muito frequente entre nossas famílias que os próprios pais desautorizem os sacerdotes, às vezes em tom de brincadeira, socavando as bases de sua própria autoridade, acreditando que basta a própria formação teológica. E depois se surpreendem de que os filhos confiem mais no mundo do que neles: “Como não confia em mim, que sou seu pai, sua mãe?” “Sim, me amas mais do que o médico, mas o médico sabe: o mundo sabe mais e, se fica incomodado, te põe na cadeia.”
A primeira nota da família católica é a unidade, e se fundamenta principalmente na Sabedoria Católica, confirmada pela intervenção sacerdotal. Essa sabedoria é como o marco da prudência católica, pela qual os pais devem guiar o barquinho familiar. Sem prudência, não há virtude verdadeira.
Santidade
A segunda nota da Igreja é a santidade: unam, sanctam. E, na Igreja, a santidade flui dos Sacramentos. A família católica participa dessa nota de santidade justamente pelo sacramento do Matrimônio, que não somente santifica a união dos esposos, mas que faz do matrimônio um “Este mistério é grande – magnum sacramentum” ao inseri-lo no mistério da Igreja, como diz São Paulo: “mas eu o digo em relação a Cristo e à Igreja”.
Mas olhemos com um pouco mais de atenção. O fim para o qual se constitui a família católica, o bem comum que buscam os esposos ao unir-se, é certa e efetivamente a santidade. Não falo de esposos particularmente piedosos, mas suficientemente católicos. Saberão que o fim do matrimônio é duplo: o fim principal é a procriação e o fim secundário é o auxílio mútuo. Pois bem, os esposos católicos sabem claramente que o fim é levar sua prole ao céu: é a santidade dos filhos. Esse é o propósito principal. E o fim secundário, o auxílio mútuo, é auxílio na mútua santificação, porque é claro que não há nada a mais a se fazer nessa vida. O fim certo, claro, efetivo, da família católica é a santidade, embora nela esteja toda a incoerência posta ali pela debilidade das pessoas.
E uma virtude que aparece como a flor mais bela desse propósito, que é adorno e vestimenta principal da família católica, é a castidade. É belo percebê-lo, e pode parecer surpreendente que o seja, mas é fácil entender que seja assim. A atração sexual é, certamente, a paixão humana mais forte, pois Deus a associou à função mais importante, transmitir a vida; mas por ser a mais forte, é nela que se manifesta mais do que nas outras a desordem do pecado original. Contudo, ao elevar o amor conjugal, o matrimônio católico dignifica e eleva o próprio ato conjugal: torna-se patente que é meio de um fim santo. A sexualidade fica dignificada e santificada. A isso contribui especialmente a graça do sacramento. E por isso, na família católica, o relativo à sexualidade se conserva no melhor equilíbrio, pois se combate o desenfreio libertino, mas não se cai no ocultamento puritano. Ademais, a convivência católica de muitos filhos e filhas faz com que a relação entre homens e mulheres seja levada com normalidade, sem má curiosidade.
Na família liberal, por sua vez, acontece o contrário. Para o liberal, o bem supremo é a liberdade, e o vínculo conjugal, como a palavra mesma o diz, é um jugo mútuo que se colocam os esposos, justificado apenas pela sexualidade. O fim principal não é a prole, mas ajuda mútua – ajuda mútua em quê? Somente no sexual. O resto é pessoal, cada um por si. A esposa trabalha porque precisa de liberdade econômica. O espiritual é o mais pessoal e, portanto, individual, e seria lamentável que tivessem a mesma opinião religiosa, pois – como dissemos – se suspeitaria que um influenciou ao outro. O fim do matrimônio liberal é a sexualidade. Isso supondo que a sociedade conserve certo impulso católico, pois enquanto socialmente se aceita a liberdade sexual, a família desaparece, como vemos com horror hoje em dia.
Posto um fim último em certo âmbito, tudo se ordena a ele e tudo se valora por ele. Essa finalidade, real e efetiva – quem não sabe? – tende a, digamos, prostituir a família liberal. Prostituir vem de pro statuere, colocar diante, expor. Para os latinos, significa profanar. É colocar à venda, oferecer em intercâmbio algo sagrado, o que implica uma inversão de finalidades. A Bíblia usa essa palavra para os que deixam a Deus por dinheiro, por ídolos de interesses terrenos. E isso é feito pela família liberal: inverte o fim da santificação para o fim da impureza – pois a sexualidade se torna impureza, prostituição, ao inverter-se sua finalidade. Pode soar feio, mas tende a ser assim: a mulher tende a ser prostituta do marido, e o marido da mulher, e os filhos vivem no ambiente de uma casa de prostituição. O afeto conjugal que une os esposos é apenas o erotismo. Quando o eros é apenas o eco de um amor honesto e cristão, torna-se belo e digno e tende a permanecer; mas quando o eros deve alimentar-se por si só, necessita de impacto e novidade – e é assim que o matrimônio liberal que quer perseverar unido tende a inventar coisas novas e estranhas; até consente em se alimentar de pornografia, perdoem-me! (Pode haver algo mais triste do que um par de esposos que olham filmes pornográficos para manter sua relação?) E os filhos bebem desse ambiente de impureza. A conversa impura, a pornografia, a curiosidade má mesmo entre irmãos e irmãs… E quem não se dá conta de que isso tende a transbordar além do âmbito da família. O esposo encontra mais novidades fora do casamento, e a mulher se acostuma a agradar de má vontade não apenas a seu esposo. E começa a perder seus atrativos com a idade e se deprime, pois sua vida acaba.
Tem algo a fazer, o sacerdote? Evidentemente. Depois do magistério, a função mais propriamente sacerdotal é a santificação. Mas vamos à família, em particular. O ordenamento à santidade pode receber o nome de “direção espiritual”, e é ofício especial do pároco para com as famílias. Mas costuma dizer-se algo à maneira de objeção: os pais são, por natureza, os diretores espirituais dos seus filhos, e o esposo de sua esposa. Em certo sentido, é verdade, como pode ser dito também do magistério. Normalmente, o pároco dá a direção espiritual geral das famílias por meio de seus sermões, e os pais a direção espiritual particular. Certamente os pais católicos devem se preocupar com a direção espiritual dos seus filhos, pois a educação não é apenas ensinar a escovar os dentes. E seria desejável que o esposo tenha maior formação espiritual do que a esposa, e possa ajudá-la em sua santificação – embora aconteça o contrário muitas vezes, já que as mulheres costumam ser mais piedosas. De todo modo, a sociedade conjugal é um modo de amizade que se ordena à mútua santificação. Disse que normalmente é assim, porque, enquanto uma alma é levada por Deus a maiores santificações, nessa mesma medida necessita de uma direção espiritual superior, que só pode ser dada pelo sacerdote. Assunto delicado: é verdade que o sacerdote tem de ter cuidado de não suplantar os pais na educação dos filhos, o que pode tentar por não ter filhos próprios; e, mais delicado, o mesmo com as esposas. Mas deve, sim, estar presente quando descobre uma vocação especial à santidade, seja nos filhos, seja nos pais.
E em relação à santidade, e à pureza em particular, tem especial função, indispensável e insubstituível, a confissão, que é um dos maiores e mais consoladores tesouros do sacerdócio. É fundamental que os pais respeitem o claustro sagrado da consciência de seus filhos e os esposos do outro esposo. Ali é permitida somente a entrada do sacerdote. E isso ajuda, especialmente, quanto à pureza, pois suas desordens são, ao mesmo tempo, as mais vergonhosas e as mais incontroláveis. Se há algo que se conserva e se restaura somente pela graça da confissão, é a pureza. Não há castidade – o adorno mais precioso da família católica – sem confissão frequente. Quanto devem encorajar os pais e os sacerdotes aos adolescentes para não temerem abrir seu coração na confissão, dada a confusão que lhes desperta a sexualidade.
Dupla advertência. Uma sociedade liberal necessariamente cai na impureza, e isso acontece conosco. A família católica é, hoje, um barquinho que flutua num mar de impurezas, e que difícil é permanecer impermeável a essas águas fétidas. Primeira advertência: abram as vias que comunicam a casa com a paróquia (priorado), vias de dreno, e fechem os caminhos que comunicam a casa com o mundo: televisão, internet, diversões. Segunda advertência: somente a família católica tem o suplemento de força para conservar a castidade de seus membros. Vae soli! Ai do solitário (Ecl 4, 10). O relativo à pureza tem uma força tão grande que não basta a virtude católica normal para se sustentar, e é necessário que se veja, que esteja presente, algo católico: onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu no meio deles. E ao estar Jesus Cristo em um meio, há virtude superior. Ai do esposo que não corre do trabalho para casa, nem da casa para o trabalho. É somente dar atenção à sua mulher e filhos o que mantém a castidade do esposo; é apenas o olhar da família que mantém a castidade dos noivos. Hoje, não se mantém o olhar sobre os noivos, e não há noivado puro. É simples assim.
Catolicidade
A terceira nota da Igreja é a catolicidade: unam, sanctam, catholicam. Católico significa universal. A Igreja tem uma aptidão extraordinária para integrar, na estreita unidade familiar, gentes de todas as nações e, em cada nação, de toda condição social. E a família católica participa desse dom. Podemos dizer que a família católica é integradora (integrista?) e nisso é católica. E a virtude que provém dessa nota da Igreja é uma virtude de dupla face: a caridade/obediência.
A caridade é o amor divinizado. É o amor elevado pela graça santificante, que vem de Deus e que termina em Deus, pois ama tudo enquanto tudo é de Deus. Os pais católicos veem, nos filhos, tesouros de Deus que lhe são confiados, e então entendem o valor infinito de uma alma, e o sentido que tem o sacrifício de ter muitos filhos. Pelo amor natural (não de caridade), os esposos amam de uma maneira os próprios filhos e de outra muito distinta os alheios; e, se adotam um filho, amam-no como adotado. Mas quando o amor natural é informado pela fé católica, os esposos já não veem seus filhos como algo próprio, mas como algo de Nosso Senhor. E então já não se nota tanto a diferença entre filhos e sobrinhos, porque por todos eles Nosso Senhor deu a vida. No coração dos pais católicos, tendem a apagar-se essas diferenças: começam a se dar conta de que, aos olhos de Deus, pode valer mais a jovenzinha empregada doméstica que os próprios filhos, e então o trato passa a ser de verdadeiro amor.
A outra cara da caridade é a obediência. Amar a Deus é identificar minha vontade com Sua vontade, o que significa obedecer: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra” (Jn 14, 23). Quando vejo que meu superior me manda por amor a Deus com sacrifício pessoal, é o próprio amor que me manda obedecer. A caridade é vínculo de perfeição na Igreja e na família, porque instala a perfeita obediência. É assim que a família católica tende a fazer-se grande: tem muitos filhos, tem grande vínculo com os primos, tende a acolher como família os que trabalham na casa. E assim, faz-se socialmente forte.
Em particular, a caridade deve brilhar especialmente no pai. São Paulo pede-a, de modo especial, para com a esposa: “Maridos, amai a vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja, e por ela se entregou a si mesmo, para a santificar, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para apresentar a si mesmo esta Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e imaculada. Assim também os maridos devem amar as suas mulheres, como os seus próprios corpos. O que ama a sua mulher, ama a si mesmo. Porque ninguém aborreceu jamais a sua própria carne, mas nutre-a e cuida dela, como também Cristo o faz à Igreja, porque somos membros do seu corpo, da sua carne e dos seus ossos. Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa só carne. Este mistério é grande, mas eu o digo em relação a Cristo e à Igreja. Por isso também cada um de vós ame sua mulher como a si mesmo, e a mulher reverencie o seu marido” (Ef. 5, 25-33).
Aqui há algo especial, e não me acusem de dar uma versão romântica do matrimônio. É essencial para a família católica que o esposo ame muito à esposa, pois Cristo amou muito a Igreja. Os filhos são algo muito da esposa, pois saem de seu ventre e são a ela mais unidos. É difícil que o esposo que não ame a esposa consiga amar seus filhos, pois necessariamente os verá como algo dela. O esposo, como chefe, deve amar o bem comum familiar acima do bem próprio, até dar a vida, como Cristo, e o bem comum é – de certo modo – a esposa. E esse amor do chefe é o que rege o amor dos súditos, o que causa a concórdia (comunhão de corações) da sociedade doméstica. Quando o pai não ama a esposa, ninguém ama a ninguém na família. Quando o pai ama sua esposa, tudo se fortalece e caminha. Uma mulher, quase que por instinto, busca no homem acima de tudo ser amada, e não se equivoca muito. Mas deve ser amor cristão, de caridade, pois se não é, não é amor verdadeiro.
Na esposa, deve brilhar a caridade/obediência. À mulher, São Paulo não pede que ame o marido, mas que esteja submissa a ele, como a Igreja a Cristo: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos, como ao Senhor; porque o marido é cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo, do qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres a seus maridos em tudo” (Ef 5, 22-24). E tenham em conta que em São Paulo se une a experiência de vida e a sabedoria do Espírito Santo. A mulher ama ao marido facilmente porque é mais afetiva e, deve ser dito, por necessidade, porque fica presa pelos filhos. Mas esse amor deve ser cristão, marcado pela humildade da submissão. A esposa é também autoridade na família, embora seja subordinada à do marido. Mas tem o exercício do ministério do interior. O esposo governa ad extra, relacionando a família com a sociedade, e a esposa governa ad intra, os trâmites internos da casa. E isso lhe dá um enorme poder, pois o esposo não sabe o que se passa na casa exceto por meio dos olhos da esposa, e ela é que pode abrir o caminho para os filhos e fazer com que respondam a seu mando, ou fechá-lo e armar uma revolução. É ela também que estabelece o nível social e econômico do lugar, fazendo um homem feliz ou deixando-o louco (ou pior, ladrão), pois o esposo não tem tempo de ir ao mercado nem sabe que falta faz, no lar, cada eletrodoméstico. Que pode fazer um general sem capitães fiéis? A submissão da mulher é a alma da casa, e não pode existir sem humildade cristã.
É preciso mostrar muito para ver que a família liberal é completamente desintegradora? O pensamento liberal engendra um enorme egoísmo (nasceu do egoísmo). Porque o amor verdadeiro exige um grande sacrifício, como nos mostrou Nosso Senhor, pois para buscar o bem do outro devo sacrificar o meu, e mesmo incomodar o outro para lhe corrigir. Os pais devem combater contra seus filhos para lhes fazer algum bem, os esposos devem combater entre eles (um pouco menos, porque devem tolerar-se mais) para corrigir-se pelo bem de todos. O liberalismo, ao contrário, oferece-lhes a doce renúncia ao exercício da autoridade: “Filhinho querido, pega aqui uns reais e faz como quiser, porque respeito sua liberdade; e não me incomode mais.” Não há amor, não há obediência: ao egoísmo se segue a desobediência; portanto, a desunião. Querem um termômetro do contágio liberal que sofremos todos? Hoje há muito pouco amor natural (não digo cristão): os antigos livros de espiritualidade insistem que o religioso corte os laços familiares para pertencer à religião, enquanto hoje temos de insistir aos seminaristas que escrevam às suas mães. Há pouco afeto familiar, há pouco afeto aos irmãos, aos pais, e o que é muito grave, há pouco amor dos pais aos filhos, porque queiram ou não queiram, têm de se acostumar a cuidar pouco deles. E do pouco afeto familiar se segue pouco afeto na relação com Deus: fé seca. Os corações são muito pobres.
Como a paróquia confirma a catolicidade da família? Pela espiritualidade eucarística. Não existe catolicidade, universalidade, sem a Eucaristia. Em primeiro lugar, porque somente participando do Sacrifício de Jesus Cristo, por amor a nós, podem aprender pai e mãe a sacrificar-se por amor aos seus. Ademais, somente perante o Altar se manifesta a dignidade católica de cada alma, ao vê-la comungar: porque ali se vê receber a Deus igualmente o poderoso e o débil, o rico e o pobre, o filho e o alheio. O esposo se dá conta que tem de respeitar a esposa quando a vê comungar, porque “vê” que ela não é sua, mas de Cristo; ali veem os pais que os filhos são de Cristo e não próprios; que os filhos alheios são tão de Cristo quanto os seus; que a empregada doméstica não é menos do que eles perante o amor de Nosso Senhor. Uma escola sem capela se transforma necessariamente em escola de ricos ou de pobres, pois somente o Altar é capaz de superar essas “discriminações” (acepção de pessoas). A Igreja fez-se Família Grande por reunir a seus filhos em torno da Mesa Eucarística.
Advertência final. Já dissemos: não podemos nos salvar sozinhos, e estamos numa sociedade liberal anticristã. Devemos, pois, agrupar, integrar. São bons, portanto, os grupos de jovens: de rapazes e moças, de priorados, interprovinciais, internacionais. Mas sem tirar importância deles, parece-me que o esquema de integração, ao mesmo tempo, mais católico e mais natural, é o de priorados-famílias: o forte vínculo natural das famílias confirmado pelo mais forte ainda vínculo sacerdotal dos priorados na Fraternidade (das paróquias nas Dioceses). Por parte da Fraternidade, a debilidade vem da carência da autoridade do Papa, mas vamos seguindo… Por parte das famílias, talvez possamos especificar um problema: as mulheres são feitas por Deus para interessar-se pela própria família, e construir família enche sua vida e seu coração. Mas o homem é feito para vincular a família com a sociedade, e se interessa mais por política, pelo exército, pela profissão. Embora alguns não gostem do que vou dizer, parece-me evidente que a defesa da família é, hoje, um propósito certo, enquanto a defesa da política, do exército e das profissões… não digo que são inúteis, mas são propósitos incertos. Disso se segue que hoje temos moças animadas (com projeto de família) e jovens desanimados (sem projetos sociais). Hoje o varão deve ver que, perante o desastre social, é muita coisa defender a pusillus grex (o pequeno rebanho) familiar: ao quebrar-se a ordem de batalha e as linhas de comando, ao bom capitão não resta outra função do que retirar-se, tratando de salvar seu batalhão. Necessitamos que os varões – se não têm vocação – dilatem seu coração e queiram combater como leões para sustentar uma família, e provavelmente nada mais. Custa a renúncia a horizontes mais amplos, mas isso não é efeminar-se.
Apostolicidade
A Igreja se diz “apostólica” porque Cristo a fundou sobre os doze Apóstolos: sobre seus dons e doutrinas, que foram transmitidos íntegra e fielmente de geração em geração. Dizer que a Igreja é “apostólica” é o mesmo que dizer que é “tradicional”. Há uma diferença entre a Igreja e qualquer outra sociedade de homens, a diferença entre as coisas divinas e as humanas: as coisas humanas procedem do imperfeito ao perfeito (da potência ao ato, se não se estragam), enquanto as divinas são perfeitas desde o começo. A Igreja tem sabedoria (doutrina), recursos (sacramentos e instituições) e estratégias (espiritualidade) de vida perfeitos desde o começo e aptos para todas as circunstâncias da história do homem. E a família católica é assim: tradicional, pois sabe que a chave de sua felicidade não está por ser descoberta, mas consiste em seguir como sempre foi. Disso se segue que a virtude associada a essa nota do cristianismo é a perseverança.
O tradicionalismo da família católica não é uma nostalgia de tempos passados, como poderia ter uma família aristocrática em decadência. Não, é o apreço desperto do tesouro que possui na Igreja. Não somos estupidamente medievais, brincando de damas antigas e cavaleiros: apreciamos enormemente o mal chamado medievo porque foi tempo de esplendor da Igreja. Mas tampouco somos estupidamente modernos, como se o moderno, por ser moderno (novo), fosse melhor. Não, somos católicos, conscientes de ser herdeiros de uma fortuna imensa que não devemos perder. Somos filhos de milionário: Jesus Cristo.
- Por que a família católica se aferra à liturgia tradicional? Por nostalgia? Faz 50 anos que a mudaram… Não, porque é a liturgia que expressa e professa o dogma católico; porque é belíssima, uma obra de arte de música e poesia, perante a grosseria da Missa Nova; porque é eficaz para tocar os corações e convertê-los.
- A família católica não se deslumbra com as inovações tecnológicas ou com as novas filosofias, porque sabe claramente que nada tem mais sabedoria verdadeira do que o Magistério da Igreja e a teologia tomista. Não a convencem tão facilmente de que seus primeiros padres não foram Adão e Eva, mas sim uns orangotangos.
- Disso se segue que, na família católica, o avô não é um móvel velho que já não serve, mas o patriarca que tem muitos tesouros a nos dar, pois ao tesouro de seu catolicismo se somou o valor da experiência: os mais velhos não são velhos, mas grandes. A família católica tem história, dá valor a seu passado, conserva suas tradições próprias.
- Isso, que ocorre principalmente com os bens espirituais, translada-se também aos bens materiais. Ama a casa paterna, mas não por mera nostalgia, e sim porque sua própria arquitetura responde a uma concepção de vida. Assim como não há muitas maneiras de construir uma Igreja, porque deve responder à doutrina e à realidade que ali se celebra, e as igrejas de arquitetura nova não servem, assim também é com as casas de família. E com os móveis, e com as roupas. Por que preferir um móvel antigo? Porque são muito melhores feitos, com madeiras preciosas, com arte; eram feitos assim porque iriam ser usados por muitas gerações. Hoje em dia, contudo, deve-se mudar tudo a cada cinco anos, porque se deve seguir uma moda enlouquecida – vale apenas o último, o novo, pois sempre estaríamos passando a algo superior: nós, em relação ao homem que virá amanhã, seríamos como o orangotango de ontem em relação a nós. O tradicionalismo em relação aos bens materiais se traduz como verdadeiro “espírito de pobreza”. A família católica cuida das coisas, conserva-as, transmite-as a seus filhos.
A família liberal, ao contrário, corta tão imediatamente com o passado, está tão preocupada com a novidade, que nem sequer vive em paz no presente. Basta comprar o último modelo de celular para se angustiar porque sabe que, no mesmo instante, anuncia-se um mais novo. Com o avô, o melhor que pode fazer é colocar num asilo para ler jornais velhos. O adulto, pelo fato de ter se formado em suas opiniões e costumes, por isso mesmo já não serve, pois vale apenas o que se pode transformar em algo novo de um dia para o outro. E esse é o jovem, que não tem nem sabedoria, nem experiência, nem costume, nem nada. Mas a juventude é algo fugaz, e se passa da inquietude à depressão. A família liberal é devorada pelo tempo! (Cronos que devora seus filhos).
Mas a família católica não recebe a herança apostólica propriamente de seus avôs, mas dos sacerdotes, que são justamente os sucessores dos Apóstolos. Eles são justamente os encarregados de transmitir íntegra e fielmente a doutrina e os sacramentos às famílias católicas. A indefectível fidelidade da Igreja na transmissão do Depósito da Fé é associada por Jesus Cristo ao sacerdócio. Eles são os “Padres” que transmitem a herança a seus filhos. Aquele que queira ser “tradicionalista” sem sacerdotes encontra-se numa herética ilusão.
Dissemos que a virtude associada à nota de “Apostolicidade”, isto é, ao caráter “tradicional” do católico, é a perseverança. Nosso Senhor, falando das perseguições que os Apóstolos sofreriam até o fim dos tempos, diz-lhes: “E vós, por causa do meu nome, sereis odiados por todos; aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse será salvo”. (Mt. 10, 22). Hoje, a nós e às famílias, pede-se sobretudo perseverar na fé e na confiança na Igreja, e em seu tesouro de doutrina e costumes. Se houve um pecado nos que fizeram o Vaticano II, foi deixar de crer que se poderia seguir falando o que sempre se falou na Igreja ao mundo moderno. E perante a corrupção geral e o falso prestígio do moderno, o grande desafio é perseverar. Como diz Jesus Cristo à Igreja de Filadélfia: “Porque guardaste a palavra da minha paciência, também eu te guardarei da hora da tentação, que virá a todo o mundo para provar os habitantes da terra. Eis que venho brevemente; guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa” (Ap 3, 10-11).