CISMÁTICOS E HEREGES? PELO PE. JEAN MICHEL GLEIZE, FSSPX – PARTE 1/2

Surpreendente efeito colateral da Traditionis Custodes: alguns continuístas brasileiros o site Claves, da Fraternidade São Pedro, parece estar tomado por um novo zelo antilefebvrista. Sob risco de “tradivacantismo”?

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Cismáticos e hereges? Uma acusação contra a Fraternidade São Pio X

I – Atestado de procedência

1. A certidão de nascimento da Fraternidade São Pedro – e, de modo geral, das comunidades do chamado “movimento tradicional”– está registrada no Motu Proprio Ecclesia Dei afflicta,de 2 de julho de 1988, que declara o cisma de D. Lefebvre e o condena por ter criado “uma noção incompleta e contraditória da Tradição”(1), por ter se recusado a reconhecer “a continuidade do Concílio Vaticano II com a Tradição”(2). Logo, as ditas comunidades estão congenitamente destinadas a denunciar o mesmo suposto cisma e a condenar a mesma noção supostamente incompleta e contraditória da Tradição. Elas estão destinadas a isso de forma inerente, em razão de sua própria fundação, sob pena de deixarem de ser o que são, e enquanto se reivindicarem como resultado das medidas tomadas por João Paulo II no Motu Proprio que lhes deu o nome. Outrossim, também estão destinadas, de forma igualmente inerente, a “evidenciar a continuidade do Concílio com a Tradição”(3).

II – Um predeterminismo teológico?

2. Portanto, não é de se surpreender que, nesses últimos tempos, o site “Claves” da Fraternidade São Pedro tenha se empenhado em denunciar uma suposta falta de eclesialidade na Fraternidade São Pio X. Nos últimos tempos, ou seja, há quase três anos, após a publicação do Motu Próprio Traditionis custodes. A manutenção dos privilégios concedidos por João Paulo II exigiria um renovado protesto de não-lefebvrismo? De qualquer forma, vemos que o Pe. de Blignières se esforçou para demonstrar que o episcopado dos bispos da Fraternidade não era católico, insistindo na acusação de cisma(4). E eis que, no verão passado(5), o Pe. Hilaire Vernier, da Fraternidade São Pedro, pretende denunciar, por sua vez, “o impasse do sedevacantismo”, com uma crítica implícita dirigida à Fraternidade São Pio X. A conclusão do artigo assume a franca aparência de um clichê: a atitude de Dom Lefebvre e seus sucessores, implicitamente estigmatizada como um “sedevacantismo oculto, teórico ou prático”,levaria, inevitavelmente, a “um verdadeiro eclesiovacantismo”. De fato, “não é apenas a sé de Pedro que estaria vaga há mais de 50 anos, mas é a Igreja Católica que teria deixado de ser o que essencialmente é desde sua fundação!” Um clichê, no sentido de que a violência exagerada da expressão mal esconde a inconsistência dos argumentos que pretendem sustentá-la. Antes de avaliar sua consistência, comecemos – e esse será o objetivo do presente artigo – examinando os argumentos por si mesmos.

III – Análise teológica da Fraternidade de São Pedro

3. A análise do Pe. Vernier(6) pretende, portanto, atribuir-se um certo rigor, apoiado-se em distinções pertinentes, que reconhecem “uma grande diversidade” […] “sobre o tema da adesão e da obediência à hierarquia eclesiástica desde o Concílio Vaticano II”. Assim, sua argumentação diferencia, por um lado, aqueles para os quais (posição n.º 1) “a obediência bem compreendida (ou obediência virtuosa que exclui a submissão a abusos de poder) à hierarquia é um princípio que permanece, mesmo em tempos de crise”e, por outro lado, aqueles para os quais o princípio permanece em teoria, mas não se aplica mais na prática, sendo este, ainda, dividido em duas tendências, conforme essa não aplicação é justificada aos seus olhos, ou porque a hierarquia continua a existir, embora seja a fonte de uma crise (posição nº 2), ou porque a hierarquia deixou de existir (posição n.º 3) ou, pelo menos, deixou de deter o poder de jurisdição (posição n.º 4).

3.1. Quatro posições

4. A posição n.º 1, nos esclarece, “é a das comunidades tradicionais que permaneceram ligadas à Sé de Pedro (por vezes chamadas comunidades Ecclesia Dei)”.

5. A posição n.º 4 é a daqueles a quem o Pe. Vernier designa – por meio de um neologismo bem trabalhado – como “sedeprivacionistas”ou “sedeprivatistas”, e que o costume seguido em Ecône seria de designar até agora como sedevacantistas mitigados. São aqueles que consideram que “o Papa – ainda que “aparentemente” (materialmente) Papa – não está realmente investido da autoridade que lhe compete, devido a uma recusa tácita do seu ofício, por falta da intenção de governar ou ensinar catolicamente a Igreja (sob o pretexto de que ele não buscaria o bem comum). Mesmo que a posição seja resumida de um modo um tanto rápida, reconheceremos nela os defensores da tese chamada Cassiciacum, desenvolvida, em seu tempo, pelo Reverendo Pe.(que desde então se tornou Monsenhor) Guérard des Lauriers, e que estão reunidos, em sua maioria, no Instituto Mater Boni Consilii(7).

6. A posição n.º 3 é a daqueles que o Pe. Vernier designa como “sedevacantistas”,e que, até então, era costume designar em Ecône como sedevacantistas estritos. São aqueles que consideram que “a Sé Apostólica está vacante (vazia) – para alguns, desde 1965 (fim do Concílio Vaticano II), para outros, desde a eleição de Paulo VI, ou mesmo de João XXIIIEsta posição  se fundamentaem vários argumentos (conforme os – numerosos – grupos): invalidade dos novos ritos de ordenação; heresias professadas pelo magistério do Vaticano II ou de Papas posteriores; heresia formal do candidato eleito ao pontificado soberano”. Esta é, entre outras, a posição defendida hoje por Maxence Hecquard, no seu último livro, A Crise da Autoridade na Igreja – Os Papas do Vaticano II são Legítimos?, Edições Pierre-Guillaume de Roux, 2019, nova edição ampliada, 2023. Esta expressão já era encontrada na década de 1990, em Myra Davidoglou, redatora-chefe do Boletim La Voie.

7. Resta a posição nº 2. O Pe. Vernier a descreve como aquela de “certas comunidades tradicionalistas”, que “consideram que a obediência à hierarquia eclesiástica, que se manifesta, entre outras coisas, pelo reconhecimento canônico (a integração oficial de sua comunidade na hierarquia eclesiástica), não é uma questão de fé na Igreja, mas sim de sua disciplina, que não é um fim em si mesma e pode ser infringida em caso de necessidade”.

Assim, seus membros afirmam que, para permanecerem fiéis à integralidade da Revelação, é necessário subtrair-se, na prática, à submissão normalmente devida à hierarquia eclesiástica (Papa e ordinários locais: bispos diocesanos…) para exercer publicamente um ministério sacerdotal“. E acrescentam que “muitos deles, para justificar tal posição, chegam a se considerar os únicos detentores, pelo menos “interinamente”, da Tradição, considerando que a hierarquia a abandonou, e que aqueles que se submetem a ela são, no mínimo, cúmplices desse abandono, colocando-se, além disso, em impossibilidade de fazer a necessária denúncia”(8). Devemos ver aqui, na intenção do autor destas linhas, a posição da Fraternidade São Pio X?… Esta não é, contudo, mencionada. O Pe. Vernier se contenta em dizer que essa posição é “de fato assimilável, em nossa opinião, à dos sedeprivacionistas, mesmo que seus defensores se vangloriem verbalmente de reconhecer o Papa e rezar por ele, ou aceitar sua jurisdição para dar a absolvição sacramental“(9). Segundo ele, esta posição n.º 2 seria, portanto, uma variante da posição n.º 4.

3.2 Uma raiz comum?

8. O estimado padre nos agracia, em seguida, com uma bela reflexão teológica sobre a indefectibilidade e a perpetuidade da Igreja, à qual, aliás, ninguém encontrará nada a objetar, antes de concluir que, com exceção da posição nº 1, todas as outras diferentes posições enumeradas acima “se opõem à fé na indefectibilidade da Igreja, pois se reduzem a um sedevacantismo oculto […] pois negam a necessidade da jurisdição ordinária presente […] na Igreja, supondo que Cristo suplanta diretamente tudo o que é necessário, sem passar pelo Papa e pela hierarquia – como se essas instituições não fossem concretamente sempre necessárias”(10) .

9. Levando sua reflexão à sua conclusão lógica, o Pe. Vernier destaca o que, em sua opinião, seriam os pressupostos radicais da tese do sedevacantismo oculto. “Apesar das aparências, não há mais Papa, ou nenhum Papa investido de autoridade pontifícia, por mais de seis décadas. Consequentemente, não há mais sucessão apostólica formal, unidade de governo e exercício de verdadeira jurisdição vinculativa, verdadeiro magistério (por falta de intenção para alguns, de sujeito para outros), verdadeiros cardeais capazes de eleger um verdadeiro Papa. Para agravar ainda mais esta situação, os únicos sacramentos que certamente permaneceram válidos na Igreja latina são o matrimônio e o batismo (devido às reformas litúrgicas dos ritos, ou à dúvida que paira sobre a intenção dos Papas que aprovaram essas mudanças).”

10. É aqui, na nota 7, que nosso autor finalmente alude à Fraternidade São Pio X, referindo-se ao nosso artigo “Todos Duvidosos (II)”, publicado no Courrier de Romede março de 2023, do qual ele cita o seguinte (nº 10): “É assim que devemos entender o que D. Lefebvre disse durante a cerimônia das sagrações em 30 de junho de 1988. Falando dos bispos conciliares, ele declarou que seus sacramentos “são todos duvidosos” e a razão que ele deu para isso é que “não sabemos exatamente quais são suas intenções“. Precisamente, suas intenções são duvidosas na mesma medida em que os novos ritos reformados por Paulo VI são duvidosos. Sabemos que há uma dúvida, quanto à validade, para os dois sacramentos: da extrema-unção e da confirmação, por causa da matéria. Há também dúvida sobre o sacramento da Eucaristia, sobre a Missa, por causa da ambiguidade do novo rito, que pode distorcer a intenção do celebrante. Quanto ao sacramento da Ordem, o problema, se é que existe, é semelhante ao da Missa: só se pode julgar a validade caso a caso, em celebrações concretas.

3.3 Breve exame crítico

11. Retornando, então, em um segundo artigo (11), sobre o dogma da indefectibilidade da Igreja, o Pe. Vernier oferece uma avaliação teológica que essas diferentes posições mereciam, tais cono suporiam em sua raiz comum esse sedevacantismo oculto. Essa avaliação se baseia em três argumentos, que levam à conclusão de que a tese incriminada se opõe à visibilidade da Igreja e, portanto, à sua própria natureza e, consequentemente, também à sua indefectibilidade.

12. De acordo com a própria vontade de Deus, a Igreja é uma sociedade perfeita e visível. Essa visibilidade, então, passa, necessariamente, pela hierarquia e seus atos próprios, que são a pregação das verdades da fé (decorrentes do poder do Magistério), o governo dos fiéis (decorrente do poder da Jurisdição) e a administração dos sacramentos (decorrente do poder da Ordem). O sedevacantismo oculto nega essa visibilidade na exata medida em que nega a realidade do triplo poder hierárquico – pelo menos tal como em seu sujeito aparente – e, da mesma forma, nega a validade da administração dos sacramentos. “A Igreja”, diz nosso autor, “não pode ser governada somente por Cristo independentemente da hierarquia, nem esperar indefinidamente por uma intervenção milagrosa para se restaurar: seus poderes de santificação (sacramentos), ensino (magistério) e governo (jurisdição ordinária) devem ser preservados. Assim, o sedevacantismo oculto e as posições que, explícita ou implicitamente, levam ao desaparecimento total da Igreja como sociedade perfeita e visível.”Essa visibilidade social da eclesialidade universal não pode ser alcançada por comunidades que defendem as posições mencionadas, de um lado, porque não a reivindicam e, por outro, porque nelas não aparecem as notas que deveriam atestá-la. A Igreja visível “não é identificada por esses grupos com suas próprias comunidades – mais ou menos restritas. Além disso, é evidente que nenhuma delas possui as quatro notas próprias da Igreja: unidade, santidade, catolicidade, apostolicidade, e que nenhuma tem um cardeal nomeado pelo verdadeiro Papa, nem mesmo um bispo legitimamente ordenado e nomeado.

13. Por outro lado, para retomar a expressão do nosso confrade da Fraternidade São Pio X, Pe. Álvaro Calderón(12), “a não notoriedade é algo notório“, e hoje é evidente que a grande maioria dos católicos psicologicamente equilibrados e doutrinalmente bem formados não considera que os Papas tenham deixado de ser Papas. Esse é o argumento que o Pe. Vernier gostaria de apresentar aqui: a tese do sedevacantismo oculto é propriamente improvável, tanto como sedevacantismo quanto como oculto. “O sedevacantismo oculto equivale a afirmar que um fato tão importante e tão impactante como a vacância da Sé Apostólica é ignorado pela quase unanimidade dos fiéis e de todos os bispos atuais.” O que é outra maneira de negar a visibilidade da Igreja.

14. Finalmente – este é o terceiro e último argumento – a aceitação pacífica da eleição de um Papa constitui, por parte da Igreja universal, um sinal suficientemente probatório, contra o qual a tese do sedevacantismo oculto não pode permanecer válida. “O sedevacantismo oculto e as teses que dele decorrem são, portanto, igualmente contrários à doutrina católica da aceitação pacífica da Igreja universal, como sinal objetivo e visível da ocupação da Sé de Pedro por um verdadeiro Papa, investido da autoridade suprema para toda a Igreja. A aceitação pacífica universal significa que, quando todos os bispos legítimos da Igreja reconhecem uma pessoa como Papa, essa pessoa é o Papa legítimo: é impossível que todos os pastores da Igreja reconheçam, unanimemente, sem contestação significativa, um antiPapa“. Nosso padre não tem dificuldade em reivindicar aqui, em apoio às suas afirmações, as referências mais incontestáveis da eclesiologia, o cardeal Louis Billot e o cardeal Charles Journet.

15. Em suma, toda a argumentação gira em torno da ideia da visibilidade da Igreja, querida por Deus através da visibilidade de sua cabeça, o Bispo de Roma, Vigário de Jesus Cristo. A tese do sedevacantismo oculto se opõe a ela de três maneiras: diretamente, na medida em que nega a realidade de uma hierarquia visível; indiretamente, na medida em que postula o que ninguém tem evidência dentro da Igreja e na medida em que contradiz o que todos têm evidência dentro da mesma Igreja.

16. A conclusão final do nosso padre assume, então, a forma indicada acima: o sedevacantismo oculto, seja prático ou teórico, representa “uma posição contrária à Revelação“, uma posição “contrária à fé na indefectibilidade da Igreja, na sua unidade, na sua perpetuidade, na sua visibilidade“. Conduz “a um verdadeiro eclesiovacantismo“, na medida em que, ao negar a realidade visível do Papa, nega, por si mesmo, a realidade visível da Igreja. Negação que, do ponto de vista do que seria o estado de espírito ou a atitude psicológica de seus defensores, se caracteriza por “uma irreparável falta de realismo, de espírito de nuance e analogia, e de confiança na promessa de Cristo“.

17. Uma posição contrária à Revelação, contrária à fé nos principais dogmas da eclesiologia: não é esta uma posição estritamente herética? Pois a heresia é claramente definida como a negação ou o simples questionamento de uma verdade revelada por Deus e proposta como tal pelo Magistério da Igreja, o que lhe confere o valor de um dogma. Nosso Pe. Hilaire Vernier não o diz, mas necessariamente decorre de suas palavras: a tese do sedevacantismo oculto, tal como ele a descreve, representa nem mais nem menos que uma heresia. E a Fraternidade São Pio X, da qual se diz claramente – ainda que na nota 7 – que inscreve a sua posição nos pressupostos radicais desse “sedevacantismo oculto“, basearia toda a sua atitude em uma tese herética, contrária à fé na indefectibilidade da Igreja.

18. Já éramos, aos olhos do Pe. de Blignières, francos cismáticos(13). E eis-nos agora, nas palavras de um padre da Fraternidade São Pedro, designados como igualmente verdadeiros hereges.

Continua na Parte 2 (clique aqui)

Notas:

(1)  Motu proprio Ecclesia Dei afflicta, n° 4.

(2)  Motu proprio Ecclesia Dei afflicta, n° 5.

(3)  Motu proprio Ecclesia Dei afflicta, n° 5.

(4)   Veja as edições de julho-agosto, outubro e novembro de 2022 do Courrier de Rome

(5)   Nas páginas de 13 e 19 de julho de 2023 do Site “Claves”, com um artigo em duas partes, intitulado: “Uma Igreja sem Papa? (1) e (2)”

(6)  “Uma Igreja sem Papa? (1)” na página de 13 de julho do site “Claves”.

(7)  O Pe. Vernier os identifica como tal na nota 6 de “Uma Igreja sem Papa? (2)” na página de 19 de julho do site “Claves”. 

(8)  Uma Igreja sem Papa? (1)” na página de 13 de julho do site “Claves”. 

(9)  “Uma Igreja sem Papa? (1)” na página de 13 de julho do site “Claves”.

(10)  “Uma Igreja sem Papa? (1)” na página de 13 de julho do site “Claves”.

(11)  “Uma Igreja sem Papa? (2)” na página de 19 de julho do site “Claves”.

(12)   Essa é a opinião expressa pelo Padre Calderón em Le Sel de la terre , n.º 47 (inverno de 2003–2004), pp. 73–74.

(13)  Veja as edições de julho-agosto, outubro e novembro de 2022 do Courrier de Rome.