Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
Para acessar a Parte 1, CLIQUE AQUI
Tradivacantismo?
I – Da obediência bem compreendida
1. A obediência — fosse ela devida ao Vigário de Cristo — é uma virtude moral, parte da justiça, e, como tal, situa-se em um justo meio (14). Com efeito, a virtude moral está no princípio de uma ação propriamente humana, realizada de acordo com toda a perfeição exigida, perfeição de um ser dotado de razão – e sabemos que “a razão perfeita foge de todos os extremos”. A obediência ocupa, portanto, o equilíbrio, diz o Aquinate, “entre o excesso e a falta”. Seu objeto é nada mais nada menos do que o preceito (ou mandamento) legítimo de um superior humano(15). Esse preceito exige a obediência como algo que lhe é devido – e a obediência cumpre, a partir de então, uma obra de justiça – na medida exata em que é legítimo, ou seja, na medida exata em que é a expressão do governo de Deus, que governa as criaturas inferiores não imediatamente por Si mesmo, mas por intermédio das criaturas superiores(16). Assim que o preceito deixa de ser a expressão exata desse governo divino, a obediência cessa, por falta de objeto. Exigir ou impor a submissão da vontade a tal preceito constituiria, então, uma atitude viciosa, oposta, por excesso, ao bem da verdadeira obediência.
2. A obediência bem compreendida, a obediência virtuosa, exclui, portanto, por si mesma, como escreve o Pe. Hilaire Vernier(17), “a submissão aos abusos de poder”, ainda que proviessem da hierarquia eclesiástica. Abusos de poder que, como explica Santo Tomás, podem ocorrer de duas maneiras(18). Primeiro, quando o preceito de um superior humano contradiz um preceito de um superior de ordem mais elevada, por exemplo, quando o comando do homem contradiz o de Deus: assim, não há obediência possível em relação a um governo que legitimasse atos contrários à lei divina natural do Decálogo, por exemplo, a eutanásia ou o aborto. Segundo, quando o preceito do superior humano aborda um domínio que não lhe pertence, pois atentaria à esfera privada e a autonomia física ou moral do indivíduo: assim, não há obediência possível em relação a um governo que pretendesse impor às famílias um limite de nascimentos a um número específico de filhos, ou o controle de sua vida privada pela instalação de câmeras em suas casas (incluindo nos banheiros). Aqui, Santo Tomás recorre, com Sêneca, à autoridade do senso comum: “Errat si quis existimat servitutem in totum hominem descendere – Seria um erro querer fazer com que o peso de sua autoridade recaísse sobre o homem todo”, sobre todos os domínios e todas as áreas da vida do indivíduo.
II – Diferentes posições mal compreendidas
3. Qual é, então, a diferença entre a posição n.º 1, que o Pe. Vernier apresenta como sendo a das comunidades Ecclesia Dei, e a posição n.º 2, que seria seguida pela Fraternidade São Pio X? Qual a diferença entre a obediência da Fraternidade São Pedro, considerada virtuosa, porque exclui “a submissão aos abusos de poder”, e a posição dos discípulos de D. Lefebvre, para os quais o princípio da obediência permanece, mas não deve ser aplicado, na prática, “em caso de crise provocada pela hierarquia”? Vamos falar sério: aqui, o padre está brincando com as palavras. Ou, mais precisamente, a Fraternidade São Pio X vai ao extremo da virtude, ao não aplicar o princípio da obediência diante do abuso generalizado de poder que habitualmente assola a Santa Igreja de Deus desde o Concílio Vaticano II, enquanto a Fraternidade São Pedro, embora admita em teoria os justos limites da obediência, os excede na prática. Indo mais além, tudo depende da natureza precisa dessa “crise provocada pela hierarquia”. Ela representa, sim ou não, um abuso de poder suficientemente grave e habitual, para que a obediência esbarre em limites sérios?
4. De forma ainda mais radical, não se trata, na intenção da Fraternidade São Pio X, de um princípio que permanece na teoria, mas que não deve ser aplicado na prática. É o próprio princípio que não cessa, mas que, pelo contrário, continua a ser aplicado, na prática, até o fim, justamente em razão de todas as suas exigências. Pois é o próprio princípio da virtude que reprova todos os defeitos e todos os excessos que se opõem a ele, e é, portanto, a própria obediência que exige a rejeição às novidades introduzidas na Igreja por ocasião do último Concílio. Assim se expressou Mons. Lefebvre numa conferência espiritual dada em Ecône, em 10 de abril de 1981: “Não há ninguém que esteja tão ligado à obediência ao Magistério do Papa, dos concílios e dos bispos como nós. Nós somos, creio eu, espero eu, os mais ligados da Igreja à obediência ao Magistério dos Papas, dos concílios e dos bispos. E é precisamente porque estamos ligados a esse Magistério que não podemos aceitar um magistério que não seja fiel ao Magistério de sempre”(19).
5. Essa capacidade de discernir, dentro de um princípio em si, todas as potencialidades que ele contém, e de deduzir, a partir delas, as conclusões práticas adequadas às circunstâncias excepcionais, é uma forma particular de prudência, analisada como tal por Santo Tomás. “Acontece às vezes, diz ele, deque se deve agir sem observar as regras comuns da ação. Por conseguinte, deve-se julgar esses casos de acordo com princípios mais elevados do que as regras comuns. […] E de acordo com esses princípios mais elevados, uma virtude superior é exigida: ela se chama gnome e implica uma certa perspicácia de julgamento”(20). E acrescenta: “Considerar a totalidade das coisas que podem acontecer fora do curso comum pertence somente à Providência divina. Todavia, entre os homens, aquele que é mais perspicaz pode julgar, por sua razão, um número maior desses casos. E este é o papel da gnome, que implica uma certa perspicácia de julgamento”(21). Toda a avaliação dessa “crise causada pela hierarquia”depende disso. E isso é de grande importância.
6. Ora, precisamente, as diferentes posições elencadas pelo Pe. Vernier surgiram no contexto pós-Vaticano II, ou seja, em uma circunstância que todos concordam em reconhecer — e cada vez mais com o Papa Francisco — como sendo uma exceção. É precisamente por isso que essas posições não podem encontrar sua explicação profunda em motivos puramente doutrinários. Uma coisa é, de fato, evidente: nenhuma das posições elencadas pretende questionar os dogmas fundamentais relativos à natureza e às propriedades da Igreja, que nosso bom padre evoca com toda a ingenuidade de quem abre portas já abertas. Todos os seguidores das posições elencadas professam fé no dogma católico da indefectibilidade da Igreja, e é inclusive em nome desse dogma que pretendem justificar, de uma forma ou de outra, sua maneira de agir no contexto extraordinário acima mencionado.
7. Seria, portanto, inútil, para não dizer ridículo, invocar o clichê do “eclesiovacantismo”e levantar o espectro da heresia ou do cisma. Pois os fatos estão aí, são simples e claros. Depois de ter, sob o pretexto do ecumenismo e da liberdade religiosa, introduzido o indiferentismo e o liberalismo na pregação e na pastoral da hierarquia eclesiástica, o atual Papa e a maioria dos bispos estão ampliando esse liberalismo para o domínio da moral. A gravidade da situação parece evidente aos olhos de muitos católicos de obediência oficial, e já se foram os tempos em que apenas o falecido Dom Lefebvre e seus jovens discípulos denunciavam a “Roma de tendência neomodernista e neoprotestante”. Em duas ocasiões, cardeais conservadores apresentaram Dubiaao Papa Francisco, a primeira vez em 2016, a respeito de proposições consideradas suspeitas na Amoris Laetitia, e uma segunda vez em 2023, a respeito de várias proposições que tornam problemática a relação entre a revelação divina e o Magistério eclesiástico. A isso se soma, em 2017, a Correctio filialis assinada por 62 personalidades católicas, clérigos e leigos, denunciando como heréticas sete proposições presentes na Exortação Amoris Laetitia e pedindo ao Santo Padre que as condenasse de forma rápida e clara. E o que dizer das reações recentes à Declaração Fiducia Supplicans(22)? O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Papa Francisco, considera que este documento “suscitou reações muito fortes” e que, consequentemente, deverá “ser objeto de uma análise mais aprofundada”. O Cardeal Gerhard Ludwig Müller, ex-prefeito da antiga Congregação para a Doutrina da Fé, acredita que “abençoar uma realidade contrária à criação não é apenas impossível, [mas] blasfemo”, e que, por conseguinte, um padre que abençoasse um casal homossexual estaria cometendo um “sacrilégio”. O Cardeal Robert Sarah afirmou que esta Declaração constitui uma “heresia que mina seriamente a Igreja”. O Cardeal Joseph Zen, Bispo Emérito de Hong Kong, sugere a renúncia do autor deste texto, o Cardeal Víctor Manuel Fernández. Os dominicanos da província de Toulouse expressaram suas críticas na Revue Thomiste. O texto da Fiducia supplicans é considerado pelo Pe. Emmanuel Perrier como “incoerente, contraditório com o Magistério e fonte de confusão”(23), e este julgamento não passou despercebido na imprensa oficial católica, já que o jornalista Matthieu Lasserre sentiu-se obrigado a noticiá-lo no jornal La Croix(24). Quanto ao Pe. Thomas Michelet, professor de teologia na Pontifícia Universidade do Angelicum, ele ecoou as reservas do Pe. Perrier em sua análise da Declaração(25), e também expressou reservas muito bem fundamentadas – e estamos usando aqui um eufemismo.
III – Excesso de zelo
8. O zelo de um Pe. Vernier contém, sem dúvida, algo de cavalheiresco, e o entusiasmo com que ele pretende combater tudo o que pareça pôr em dúvida e em perigo o dogma da indefectibilidade da Igreja, bem como a sua visibilidade, mereceria, em outras circunstâncias, uma aprovação irrestrita. Infelizmente, esse zelo e esse ardor parecem claramente desproporcionais, tendo em conta as circunstâncias da crise que ainda assola, e de mal a pior, o seio da Santa Igreja. Neste contexto, o teólogo, tal como o simples fiel, deve guardar-se de um duplo perigo.(26) E é precisamente esse o perigo que o bom servo do Evangelho evita. Este último, escrevemos(27) “é louvado pelo Senhor por ter sido não apenas fiel, mas também prudente. A fé e a prudência, longe de se excluírem, devem, portanto, apoiar-se mutuamente. Uma não pode ser perfeita, nem mesmo verdadeira, sem a outra. A fé sem prudência degenera em fanatismo. A prudência sem fé degenera em liberalismo”. O fanatismo de uma fé desprovida de prudência encontra sua expressão em todos aqueles que não reconhecem a plena extensão das circunstâncias em que os princípios necessários – e trata-se aqui de dogmas, como o da indefectibilidade da Igreja – devem encontrar sua verificação. Fanatismo daqueles que, para avaliar a plena gravidade dos erros introduzidos na pregação e na pastoral dos homens da Igreja, por ocasião do Concílio Vaticano II, desconhecem essa circunstância excepcional onde são precisamente os detentores da autoridade que causaram essas heresias: é precipitado concluir que o Papa não é mais Papa, como fazem os sedevacantistas, ou que todo contato com a Roma atual deve ser recusado, como afirmam os defensores da suposta “Resistência”. Fanatismo também da parte daqueles que, para determinar que são realmente os titulares da autoridade que endossam todas as novidades introduzidas durante e pós Concílio, ignoram todo o prejuízo que elas causam à fé dos católicos, e a gravidade indescritível dos erros para os quais elas abrem caminho: então, é igualmente precipitado concluir que nenhuma oposição deve se manifestar diante dos atos abusivos da autoridade considerada legítima, e é esse tipo de precipitação que sustenta as declarações do Pe. Vernier.
9. Não importa o que diga, não deixa de ser verdade que as circunstâncias atuais, onde os católicos são chamados a professar sua fé, apresentam uma dupla dificuldade, aparentemente insolúvel, que a simples evocação do dogma da indefectibilidade da Igreja não é suficiente para evitar. “Se o Papa, escrevemos(28), cai em heresia ou, pelo menos, habitualmente abre a porta à heresia, de duas coisas, uma. Ou ele deixa de ser Papa e o católico reconhece como Igreja de Cristo uma Igreja sem uma cabeça visível. Ou ele permanece Papa e o católico reconhece como Igreja de Cristo uma Igreja cuja cabeça visível compromete grave e habitualmente a fé católica. Do ponto de vista doutrinário, ou seja,, do ponto de vista da conformidade com os dados da Revelação, nenhuma dessas duas conclusões é aceitável. Em teoria pura, e em respeito aos dados elementares de seu catecismo, o católico não pode reconhecer como a verdadeira Igreja de Cristo: nem uma Igreja habitualmente desprovida de uma cabeça visível, nem uma Igreja habitualmente provida de uma cabeça visível que abra caminho para a heresia.” Em outras palavras, significa que o dogma da indefectibilidade da Igreja deve andar de mãos dadas com o da sua santidade, principalmente a santidade de sua doutrina. E as circunstâncias atuais parecem obrigar o católico a concluir que uma excluiria a outra, o que é obviamente absurdo.
10. É por isso que falamos deliberadamente de “precipitação”qualificar a atitude daqueles que, como nosso padre da Fraternidade São Pedro, gostariam, em nome do dogma, de decretar soluções demasiado simples – ou, pelo menos, anatematizar posições inspiradas por uma reflexão minimamente atenta às circunstâncias. A precipitação é, de fato, uma atitude viciosa, oposta à virtude da prudência(29), e ela própria está enraizada em outra atitude viciosa, que é a imprudência, ou seja, (30) na ignorância das circunstâncias concretas da ação. São estas que devem reger em grande medida a reflexão do teólogo, bem como a do simples fiel, neste atoleiro do período pós-Vaticano II.
IV – Sedevacantismo
11. É por isso que, se quisermos fazer uma avaliação tão justa quanto possível da tese do “sedevacantismo”, no sentido mais amplo do termo – e de modo que inclua não só a tendência absoluta, mas também a tendência mitigada – é importante fazer algumas distinções(31).
12. Sem dúvida, sim, a longo prazo, a posição que se recusa a reconhecer, mesmo momentaneamente, devido a circunstâncias extraordinárias, a realidade de uma cabeça visível à frente de toda a Igreja, conduz ao cisma e à heresia. Mas ela apenas conduz, e não equivale diretamente a isso por si mesma. De fato, escrevemos(32), “a posição sedevacantista equivale a uma recusa não de princípio, mas de fato, pois se explica pelas circunstâncias posteriores ao Concílio Vaticano II. O sedevacantismo se define precisamente como “a recusa de estar em comunhão com o ocupante atual da Santa Sé de Roma, ou seja, não com qualquer ocupante dessa Santa Sé, mas com aqueles ocupantes que consideram terem atualmente uma intenção habitual e objetiva contrária ao bem comum da Igreja”. Tal atitude, portanto, não é propriamente e formalmente um cisma. Representa, à primeira vista, e formalmente, de maneira direta, um pecado contra a prudência. Não representa um pecado direto e imediato contra a unidade da Igreja, fruto da caridade, ainda que, naqueles que o adotam, possa levar a um estado de espírito cismático e causar, a longo prazo, um cisma propriamente dito.
13. Sem dúvida, a heresia também consiste em se recusar a professar que o Bispo de Roma é o chefe de toda a Igreja e representa um grave pecado contra a fé. No entanto, observemos que a heresia, se for direta, formal e imediata, deve consistir, aqui, em negar uma proposição universal e necessária, pois, como tal, deve professar que nenhum bispo de Roma é chefe de toda a Igreja. “A posição sedevacantista, por sua vez, nega uma proposição particular e contingente, pois expressa um julgamento relativo às circunstâncias. A heresia afirma, por princípio, que o bispo de Roma não pode ser o chefe da Igreja. O sedevacantismo afirma que, de fato, tal eleito designado bispo de Roma não recebeu o soberano pontificado. Não nega que ele possa recebê-lo posteriormente, nem que outros possam recebê-lo e o tenham recebido de fato”(33). Tal posição, portanto, não é diretamente herética, de forma imediata e formal. Representa, no máximo, um pecado contra a prudência, não um pecado contra a fé.
14. Em todo caso, o pecado é certamente grave – até mesmo gravíssimo. E Dom Lefebvre não deixou de salientar isso. “A questão da visibilidade da Igreja é demasiado necessária à sua existência, para que Deus possa omitir isso durante décadas”, dizia ele aos seus seminaristas logo nos anos pós-Concílio: “O raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do papa coloca a Igreja numa situação inextricável”(34). Certa vez ele chegou a escrever ao Padre Guérard des Lauriers para lhe explicar por que reprovava sua atitude. “Na prática, não é a inexistência do Papa que fundamenta minha conduta, mas a defesa de minha fé católica. Ora, vocês acreditam em consciência que devem partir deste princípio que infelizmente causa confusão e divisões violentas, que desejo evitar”(35). E o que ele repreendia era, antes de tudo, a falta de prudência: “Se o senhor tem a prova da perda legal do Papa Paulo VI, entendo sua lógica subsequente. Mas, pessoalmente, tenho uma dúvida séria, e não uma evidência absoluta”(36). Vemos claramente que toda a atitude de D. Lefebvre, ainda hoje mantida pela Fraternidade São Pio X, sempre foi inspirada, antes de tudo, pela prudência: “Enquanto eu não tiver a evidência”, dizia ainda D. Lefebvre, “de que o Papa não seria o Papa, bem, tenho a presunção a seu favor, a favor do Papa. Não digo que não possam existir argumentos que possam levantar dúvidas em certos casos. Mas é preciso ter a certeza de que não se trata apenas de uma dúvida, uma dúvida válida. Se o argumento for duvidoso, não se tem o direito de tirar conclusões importantes!”(37) .
15. Dom Lefebvre sempre rejeitou a tese sedevacantista. Ele a via como um erro grave, mas era principalmente, a seu ver, um erro de imprudência. A passagem em que D. Lefebvre se explica mais explicitamente sobre o assunto é a conferência de 5 de outubro de 1978. Ele afirma que sua posição é ditada pela prudência, não pelo que seria uma posição dogmática absoluta. “Isso não significa, porém”, diz ele após ter exposto sua posição, “que eu esteja absolutamente certo de estar certo na posição que assumo. Assumo-a, sobretudo, de maneira prudencial, diria eu, uma prudência que espero ser a sabedoria de Deus, que espero ser o dom do conselho, em suma, uma prudência sobrenatural. É neste domínio que me coloco, diria eu, mais talvez do que no domínio puramente teológico e puramente teórico.”Com isso, a dúvida permanece sempre possível, uma vez que, no plano prático, nem sempre é possível agir com absoluta certeza. Apesar de tudo, permanece uma certa margem de incerteza, uma certa hesitação, porém esta é insuficiente para pôr em causa a posição considerada “segura”, a posição mais segura, tendo em conta as circunstâncias.
16. De onde vem, então, essa margem de hesitação e, com ela, a dúvida? A dúvida se justifica por toda essa nova pregação, por toda essa nova pastoral que, desde o Concílio Vaticano II, negam cada vez mais, na prática, a Tradição da Igreja, e abrem cada vez mais as portas à heresia e à apostasia. Diante desses fatos, o reconhecimento pacífico da eleição do Papa permanece o que é: não a causa, mas o sinal da legitimidade do Papa. Ele não pode dar mais do que uma probabilidade, e expressa apenas a certeza da prudência, em vista de todas as outras circunstâncias. E é aqui que a hesitação (pois a dúvida não é nem mais nem menos do que a hesitação, e, certamente, não a probabilidade da hipótese adversa) permanece legítima, precisamente em vista dessas circunstâncias externas à eleição e sua aceitação aparentemente pacífica. Aqui, mais uma vez, a argumentação peremptória do Pe. Vernier permanece insuficiente, por não avaliar a importância dessas circunstâncias.
V – Da Fraternidade São Pio X
17. A “posição” — n.º 2, segundo o Pe. Vernier — sempre seguida pela Fraternidade São Pio X, não é única. Pois não se trata, precisamente, de uma “posição”, no sentido que se deveria entender por isso um princípio dogmático. É aqui, aliás, desde o início de sua análise, que o defensor do movimento Ecclesia Deise engana — originalmente, poderíamos dizer – sobre a natureza exata da dificuldade a ser resolvida. Portanto, a solução não será reivindicar um princípio dogmático, o da indefectibilidade da Igreja, contra outro, o de uma “posição”que negaria, ainda que apenas na prática ou implicitamente, o referido princípio. A solução é falsa porque os dados do problema foram previamente distorcidos, distorcidos porque são mal compreendidos. De um problema que, aos olhos da Fraternidade São Pio X, surge essencialmente de um ponto de vista prático e prudencial, o padre da Fraternidade São Pedro faz um problema dogmático. A partir daí, sua análise deve, senão, deixar de lado a verdadeira atitude de Dom Lefebvre e de seus continuadores. Em termos consagrados, isso se chama “off-topic”. O bom Aristóteles via nisso o sofisma da “ignoratio elenchi”, em que o argumentador desconhece a verdadeira natureza do problema que se coloca.
18. “Não contestamos a autoridade do Papa, mas sim o que ele faz.”(38) Há uma grande diferença aqui entre dizer que o Papa não é, e dizer que o Papa não age como Papa. A primeira afirmação é a do sedevacantismo, e é radical, pois não admite a possibilidade de o Papa agir, não admitindo o próprio ser do Papa, da qual deve derivar sua ação. A segunda afirmação é a da Fraternidade São Pio X, e é a expressão de uma prudência que permanece atenta aos fatos, pois admite a possibilidade de ação do Papa, admitindo a existência do Papa, mesmo levando em conta o fato de que o Papa, infectado pelos erros do neomodernismo, não age como Papa. Mesmo que essa ação modernista do Papa, que paralisa sua ação como Papa, continue prevalecendo a ponto de o Papa quase nunca agir como Papa, a razão pela qual a Fraternidade é levada a não obedecer ao Papa é fundamentalmente diferente da do sedevacantismo.
19. O clichê do “eclesiovacantismo”poderia facilmente – até mesmo com demasiada facilidade – voltar-se contra o seu autor. Ao querer evitar a vacância da Igreja, acaba-se por endossar, inconscientemente, é certo, a vacância de sua doutrina, a vacância de sua Tradição. E mesmo hoje, com o Papa Francisco, a vacância da sua teologia moral. Esse é o risco que correm os teólogos do movimento Ecclesia Dei, mas é um risco que está inscrito na certidão de nascimento dessas comunidades ditas “tradicionais”, com o Motu proprio Ecclesia Dei afflicta, de 2 de julho de 1988(39), que lhes deu o nome.
20. Em seu tratado sobre a virtude da obediência, Santo Tomás de Aquino observa que o homem pode contemplar a busca de dois benefícios muito diferentes (40). Entre esses dois, há a vantagem de que o homem é necessariamente obrigado a obter, como, por exemplo, amar a Deus “ou algo semelhante”– e aqui pensamos na necessidade da Profissão de fé católica, tanto quanto na necessidade de reconhecer uma cabeça visível à frente da Igreja. E o Aquinato declara, com razão, que tal benefício não pode de forma alguma ser omitido por obediência… Deixamos aqui aos leitores do Courrier de Romea tarefa de julgar qual seria a melhor atitude a seguir, para não omitir, nem mesmo por obediência, nenhum desses dois benefícios, o da fé íntegra e o da visibilidade do Papa. De todo modo, parece-nos indubitável que a teologia do abade Vernier não consegue alcançar esse objetivo.
Notas:
- Summa theologica, 2a2ae , questão 104, artigo 2, ad 2.
- Summa theologica, 2a2ae , questão 104, artigo 2, corpus.
- Summa theologica, 2a2ae , questão 104, artigo 1, corpus.
- Veja o artigo “Cismáticos e hereges” nesta edição do Courrier de Rome.
- Summa theologica, 2a2ae , questão 104, artigo 5, corpus.
- Vaticano II: a autoridade de um concílio em questão,capítulo XVIII, Revista “Vu de haut” n° 13, p. 50.
- Summa theologica, 2a2ae , questão 51, artigo 4, corpus.
- Ibidem, ad 3.
- Veja o arquivo “Fiducia supplicans” na enciclopédia digital Wikipédia, https://fr.wikipedia.org/wiki/Fiducia_supplicans,bem como a página de 25 de janeiro de 2024 no site Fsspx News: https://fsspx.ch/fr/news/la-revue-thomiste-cri tique-severement-fiducia-suplicans-42090
- Emmanuel Perrier, op, “Fiducia supplicans diante do sentido da fé”, artigo publicado na página de 23 de janeiro de 2024 do site da Revue Thomiste https://revuethomiste.fr/contenu-editorial/chroniques/lumieres-et -grãos-d-sel/fiducia-suplícios-face-au-sensores-d-lá-fé
- Matthieu Lasserre, “Bênção aos casais homossexuais: os dominicanos de Toulouse entram no debate” no jornal La Croix, 24 de janeiro de 2024.
- Thomas Michelet, op, “Podemos abençoar a Fiducia supplicans?” artigo publicado na página de 23 de janeiro de 2024 do site da Revue Thomiste https://revuethomiste.fr/contenu-editorial/chroniques/lumier es-et-grains-de-sel/peut-on-benir-fiducia-supplicans