DE PROFUNDIS

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Gustavo Corção

Sempre desejei escrever um estudo, um ensaio, um livro, para mostrar, aos que se escandalizam com os desconcertos do mundo, que é esse turbado espetáculo o melhor encaminhamento para uma demonstração da existência de Deus. Não pretendo ter achado uma nova via demonstrativa além das clássicas cinco vias da Escola. Penso apenas que aquele caminho, contraparte ou avesso do argumento baseado na harmonia do mundo, é o mais indicado para nossos tempos de paradoxos e crises. Talvez seja um remédio bom para todas as épocas, a julgar pela ênfase com que a idéia aparece no Antigo e no Novo Testamento. o livro do Eclesiastes, por exemplo, é uma longa demonstração, por absurdo, da transcendência da sorte humana e da existência de Deus, pois se ficamos nos limites traçados “sub sole”, nos limites dos horizontes terrestres, a vida se torna inteiramente absurda. os grandes salmos, as grandes antíteses paulinas, tudo nos leva a crer que talvez seja a estrada real para Deus o escuro caminho das tribulações que desemboca no fundo dos abismos.

Olha em volta de ti, alma atribulada e triste. O mundo, com todas as suas montagens, com todos os seus prestígios, tem o ridículo das coisas frágeis que se julgam enormes. Olha em volta de ti, alma cansada, e considera as farsas, as máscaras, os espetáculos, as galas, os príncipes, as cúpulas, os demagogos, os dirigentes em todos os escalões, e os dirigidos, ah! os pobres dirigidos que se extasiam de admiração diante de quem os desfalca, diante de quem os oprime. Mundo, mundo, triste mundo… É bem verdade que sempre andamos a servir um Deus invisível, um Deus mergulhado nas coisas, um Deus escondido nas aulas que damos, nos artigos que escrevemos. Quando combatemos isto ou aquilo, estamos sempre procurando servir a exatidão e a veracidade das coisas, e assim sendo é sempre Deus, nos seus inúmeros pseudônimos, que estamos servido, consciente ou inconscientemente. Pode ser que nesta ou naquela circunstância o amor próprio tenha entrado com suas amargas exigências, e a doce e santa verdade tenha sofrido o ultrajante eclipse de nossa própria glória. Pode ser. Mas na media em que podemos aquilatar o que dissemos de todos os problemas provocantes que o mundo tem armado como um desafio, talvez nos possamos gabar — se nos permitem um momento de loucura — de termos sempre procurado servir a Deus, servindo o bem e a verdade nas suas difusas, minúsculas e efêmeras manifestações.

Chega entretanto a hora em que toda essa luta se transforma numa espécie de pesadelo, ou numa espécie de loucura. Um cansaço mortal esmaga o coração. um coro de zombarias parece dizer que tudo é vão neste mundo absurdo e submerge a alma, matando não só as esperanças como também aquelas flores do passado que pareciam tão solidamente plantadas no fato de terem existido. E o mundo então nos parece mau. Mau e estúpido. Errado. Incôngruo. Abortado. Ora, é nesse momento, nessa exata hora de acabrunhamento total e de total escuridão, que Deus nos surge e nos diz, não mais escondido, não mais disfarçado, mas presente e quase sensível, presente e quase visível, nos diz que sem Ele o desconcerto do mundo seria um gracejo das essências, ou uma insuportável piada produzida ao acaso pela matéria menor do que por nós e nossa autoria. Nos diz Deus, no fundo dos abismos, que sua existência é exigida pela ordem do mundo, pela harmonia das órbitas, das causas, dos seres, mais ainda mais urgentemente exigida pela desordem, que não pode ser a razão de ser do universo, a lei do mundo, sem nos forçar a uma loucura decidida, sem nos rebaixar à mais completa e humilhante capitulação. Sem Deus, o Mal vira Deus. E a alma cansada e triste fica sem saber de onde lhe vem a força de ficar triste, e a força de se sentir cansada. E de onde lhe vem a fatigada força de julgar o mundo.

“De profundis clamavi ad te, Domine”. Das profundezas de nossa aflição e das profundezas de nossa miséria. E é nesse momento, em que pelos critérios do mundo estamos mais rebaixados, nesses momentos indescritíveis, intransmissíveis, incomunicáveis, a não ser em gemidos, em imprecações, em frases de dor entrecortadas e sem sentido, é nesses momento de humilhação, de irritação, de quase desespero, que Deus está próximo de nós, descido pelos degraus que o Cristo carnalmente desceu, tornado opróbrio como ele carnalmente e visivelmente se tornou. Basta para isto um movimento da alma. Um pequeno movimento. Um movimento de pequenez, uma atitude inversa de tudo aquilo que os impérios prestigiam. “De profundis clamavi…” Mas nesse assunto em que a miséria e a glória se interpenetram e se confundem, é melhor buscar no Novo Testamento os textos mais convincentes, mais próximos de nossa aflição. E é a voz ardente do Apóstolo que nos contará as aflições que também experimentou. “Três vezes pedi ao Senhor que as afastasse de mim. Mas Ele declarou: — Minha Graça te basta, pois é na fraqueza que triunfa o meu poder. E então eu passei a me glorificar de minhas fraquezas a fim de que desça até mim a força de Cristo. Sim, eu me comprazo nas minhas fraquezas, nos meus ultrajes, nas angústias, nas perseguições sofridas pelo Cristo, porque quando estou na máxima fraqueza é que estou forte. Estou ficando louco? Sois vós que me compelis a me gabar…”

Considera em volta de ti o mundo, alma ferida. Passam os bem-sucedidos e atrás deles o cortejo dos que esperam as sobras do prestígio, e atrás deles os fotógrafos, os jornalistas, os oradores, a humanidade de cabeça levantada no próprio engrandecimento. Passam depois os mal-sucedidos, e atrás deles os aproveitadores de misérias, os que tiram juros da miséria, votos da miséria, bem-estar da miséria, renome próprio, honra e glória, da miséria, da miséria, da miséria. E atrás deles passam os marcados pela cruz que sentem nostalgias dos valores que desfilam nas passarelas do mundo. Vêem-se cristãos, padres, bispos, todos querendo ter ouro no bolso ou na auréola. E em volta de todo esse espetáculo de Dolce-Vita que transcorre no limiar do Purgatório ou do Inferno, vemos uma negra nuvem de espessa tolice a eclipsar a pregação evangélica. Sim, essa é a grande, a máxima desordem do mundo…

Considera e reza. Considera, e imita a loucura do Apóstolo. E basta um movimento, assim como quem se volta, como que olha para o vulto que está a seu lado, basta um quase nada para sentir as pancadas do sagrado coração, do “Tell Tale Heart” do poeta. Na fraqueza é que sou forte! Porque é só na fraqueza que consigo, pouco que seja, silenciar as estridências do amor próprio, e ouvir as pancadas do coração do meu Senhor.

(Transcrição do “Diário de Notícias”, reproduzido na revista A Ordem em Agosto de 1962)