DEUS QUER AÇÕES RETAS, NÃO PALAVRAS

caridO que desejo do homem, como frutos da ação, é que prove suas virtudes na hora oportuna. Talvez ainda te recordes! Quando, há muito tempo, desejavas fazer grandes penitências por minha causa e perguntavas: “Que mortificações eu poderia fazer por ti?”, eu te respondi no pensamento: “Sou aquele que gosta de poucas palavras e de muitas ações”. Então era minha intenção mostrar-te que não me comprazo no homem que apenas me chama por palavras: “Senhor, Senhor, gostaria de fazer algo por ti”, ou naquele que pretende mortificar o corpo com muitas macerações, mas sem destruir a vontade própria. Queria dizer-te que desejo ações varonis e pacientes, bem como as virtudes internas, de que falei acima, as quais são todas elas operativas e produtoras de bons frutos na graça.

Ações baseadas em outros princípios constituem para mim meras palavras, realizações passageiras. Eu, qual ser infinito, quero ações infinitas, amor infinito. Desejo que as mortificações e demais exercícios corporais sejam considerados como meios, não como fins. Se neles repousar o inteiro afeto da pessoa, ser-me-ia dado algo de finito, à semelhança de uma palavra que, ao sair da boca, já não existe, quando é pronunciada sem amor. Só o amor produz e revela a virtude!

Quando uma ação, que chamei com o nome de “palavra”, está embebida de caridade, então me agrada; já não se apresenta sozinha, mas acompanhada de discernimento verdadeiro, isto é, como ato que é meio para se atingir um objetivo superior. Não é exato olhar a penitência ou qualquer ato externo como base e finalidade principal; são obras limitadas, seja porque praticadas durante esta vida passageira, seja porque um dia a pessoa terá que deixa-las por resolução pessoal ou por ordem alheia. Umas vezes a abandonará o homem coagido pela impossibilidade de continuar o que começou, e isto acontece em situações diversas; outras vezes por obediência à ordem do superior. Aliás, neste caso, se as continuar não terá merecimento algum e cometerá até uma falta.

Como percebes, as mortificações são coisas finitas e como tais hão de ser praticadas. São meios, não finalidade. Quem as assume como finalidade, sentir-se-á vazio quando tiver de abandoná-las. Foi quanto ensinou o glorioso apóstolo Paulo ao vos convidar em sua carta (Cl 3,5) a mortificar o corpo e a destruir a vontade própria, ou seja, a refrear o corpo mortificando a carne, quando ela se opõe ao espírito. A vontade própria deve ser destruída e submetida à minha. Tal coisa é feita pela virtude do discernimento, como expliquei antes, com o desprezo do pecado e da sensualidade, por efeito do autoconhecimento. Eis a espada que mata e corta todo egoísmo; eis os servidores que  não me apresentam somente “palavras”, mas ações. Eles formam o meu prazer. É em tal sentido que afirmava eu que desejo poucas palavras e muitas ações!

Ao dizer “muitas”, não me refiro à quantidade. É o desejo da alma, alicerçado no amor que vivifica as virtudes, que há de atingir o infinito. Também não quis manifestar desprezo pela palavra! Apenas afirmei que desejava “poucas palavras”, a indicar que todas as ações externas são finitas. Indiquei-as com o termo “poucas”, mas elas bem que me agradam quando são feitas como meios para adquirir a virtude, sem a conotação de objetivo principal.

Não se deve considerar como mais perfeito o grande penitente que arrasa o seu corpo, ao fazer a comparação com alguém que se mortifica menos. Como já disse, seu merecimento não está nisso. Se assim fosse, mal estaria quem por razões legítimas não pode fazer atos de penitência externa e vive unicamente na prática do amor, sob a luz do discernimento, sem poder agir diversamente. O discernimento leva o homem a amar-me sem limites, sem restrições, já que sou a Verdade suma e eterna. È relativamente ao amor ao próximo, que o discernimento impõe limites e formas de amar.

Ao brotar da caridade, o discernimento faz amar o próximo ordenadamente. Pela caridade exercida com retidão, ninguém pode pecar, prejudicando-se sob pretexto de ser útil aos outros. Não seria caridade com discernimento se alguém cometesse um só pecado para salvar o mundo inteiro do inferno ou para adquirir um grande ato de virtude. Seria falta de discernimento, pois é ilícito fazer uma grande ação virtuosa ou beneficente através de um ato pecaminoso. O verdadeiro discernimento ordena-se da seguinte forma: faz o homem orientar todas as suas faculdades a me servirem com virilidade e solicitude; amar o próximo realmente, mesmo sacrificando mil vezes a vida corporal, se fosse possível, para a salvação alheia; suportar dificuldades e aflições para que o outro possua a vida da graça; colocar os seus bens materiais a serviço do outro. Eis quanto realiza o discernimento na medida em que procede do amor.

Compreendes, assim, que o homem que deseja ter a graça, com discernimento tributar-me-á amor infinito, sem restrições; quanto ao próximo, ter-lhe-á juntamente com esse amor infinito uma caridade ordenada, não se prejudicando com pecados sob pretexto de ajuda-lo. A esse respeito vos advertiu São Paulo (1Cor 13,1ss) que a caridade deve começar por si mesmo, pois de outra forma não seria de perfeita utilidade para os demais. No caso de imperfeição interior, imperfeitas serão as obras feitas para si e para o próximo. Não é certo que alguém para salvar pessoas finitas e criadas por mim, viesse a ofender-me enquanto Bem infinito. Seria mais grave e de maiores proporções a culpa que o efeito decorrente. Por motivo algum, portanto, deves cometer o pecado. Sabe disto a caridade verdadeira, a qual possui a iluminação do discernimento santo.

O discernimento é uma luz que dissolve a escuridão, afasta a ignorância e alimenta as virtudes, bem como as ações externas que conduzem à virtude. Ele constitui uma atitude prudente que não padece enganos, uma atitude perseverante que não pode ser vencida.
O discernimento estende-se do céu à terra, isto é, do conhecimento do meu ser até o conhecimento do próprio ser, do meu amor ao amor pelo próximo. E sempre com humildade. Prudentemente ele evita e sai ileso de todos os laços do demônio e dos homens. Sem outras armas além da paciência, ele superou o demônio. Mediante essa doce e gloriosa iluminação, a carne reconheceu a própria fraqueza; desprezou-se; venceu o mundo; submeteu-o a um amor maior; envileceu-o; como senhor, dele fez caçoada!

Devido ao discernimento, os seguidores do mundo são incapazes de destruir as virtudes internas; ao contrário, suas perseguições até as fazem aumentar, servindo-lhes de prova. Como indiquei, as virtudes são concebidas interiormente no amor e depois se revelam, exteriorizam-se através do próximo. Assim, se as virtudes não se mostrarem, agindo exteriormente no tempo da perseguição, é sinal de que não se tratava de verdadeira virtude interna. Já disse e expliquei que uma virtude não será perfeita, nem frutificará, senão em benefício dos homens. Acontece como para a mulher que concebeu um filho; enquanto não der à luz a criança, de modo que a veja a sociedade, seu marido não dirá que tem um filho. Sucede o mesmo comigo, esposo da alma; até que a pessoa não exteriorize sua virtude no amor do homem, revelando-a de acordo com as urgências em geral ou em particular, afirmo que na realidade não é interiormente virtuosa. O mesmo afirmo quanto aos vícios, pois todos eles são cometidos contra os homens.

O Diálogo – Santa Catarina de Sena