DO GRANDE MAL QUE É O DESAFETO DE DEUS

pecSimiliter autem odio sunt Deo impius et impietas eius ― “O ímpio e a impiedade são igualmente odiosos a Deus” (Sap. 14, 9).

Sumário. Considera quão grande é a ruína que traz consigo o pecado mortal. Faz-nos primeiro perder todos os merecimentos anteriormente adquiridos, por grandes e imensos que sejam. Além disso, de filho de Deus torna o homem escravo de Lúcifer; de amigo querido, inimigo sumamente odioso; de herdeiro do céu, um condenado ao inferno. Se os anjos pudessem chorar, chorariam de compaixão vendo a desgraça de uma alma que comete pecado mortal e perde a graça de Deus. E nós ficaremos indiferentes?

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Consideremos o miserável estado de uma alma em pecado mortal. Vive separada de Deus, seu soberano bem, de tal sorte que não pertence a Deus, assim como Deus não pertence a ela: Vos non populus meus, et ego non ero vester (1). Não só já não é dela, mas aborrece-a e condena-a ao inferno. ― O Senhor não odeia nenhuma das suas criaturas, nem mesmo as feras e as víboras: Nihil odisti eorum quae fecisti (2). Mas o Senhor não pode deixar de odiar os pecadores. Sim, porque Deus odeia necessariamente o pecado, que é seu inimigo inteiramente contrário à sua vontade, e assim odiando o pecado, deve necessariamente odiar também o pecador que se conserva unido ao pecado; Similiter autem odio sunt Deo impius et impietas eius ― “O ímpio e a sua impiedade são igualmente odiosos a Deus”.

Oh céus! Se alguém tem por inimigo um príncipe da terra, não pode mais dormir tranqüilo, receando com razão a cada instante a morte. E o que tem por inimigo a Deus, como pode viver em paz? À ira de um príncipe pode-se fugir, já buscando esconderijo numa floresta, já ausentando-se para outro país; mas quem pode escapar às mãos de Deus? As vossas mãos, Senhor, exclamava Davi, quer eu suba aos céus, quer desça aos inferno, alcançar-me-ão em toda a parte: Etenim illuc manus tua deducet me (3).

Desgraçados pecadores! Eles são amaldiçoados por Deus, amaldiçoados pelos anjos, amaldiçoados pelos santos, amaldiçoados até na terra por todos os sacerdotes e religiosos que todos os dias, ao recitar o Ofício divino, pronunciam esta maldição: Maledicti qui declinant a mandatis tuis (4) ― “Amaldiçoados os que se apartam dos teus mandamentos”. ― Além disso, o desafeto de Deus traz consigo a perda de todos os merecimentos. Ainda que algum tivesse merecido tanto como um São Paulo Eremita, que viveu 98 anos numa gruta; tanto como um São Francisco Xavier, que conquistou para Deus milhões de almas; tanto como o apóstolo São Paulo, que, segundo São Jerônimo, adquiriu mais merecimentos que todos os outros apóstolos: se cometesse um só pecado mortal, perderia tudo: Omnes iustitiae eius, quas fecerat, non recordabuntur (5) ― “De nenhuma das obras de justiça que tiver feito, se fará memória”.

Tão grande é, portanto, a ruína que traz consigo o desafeto de Deus: de filho de Deus faz o homem tornar-se escravo de Lúcifer; de amigo querido, inimigo sumamente odiado; de herdeiro do céu, um condenado ao inferno. Pelo que dizia São Francisco de Sales, que, se os anjos pudessem chorar, chorariam de compaixão vendo a desgraça de uma alma que comete pecado mortal e perde a graça de Deus. ― O que é, porém, mais triste, é que os anjos chorariam, se fossem suscetíveis de chorar, e o pecador não chora. Quando se perde um animal, uma ovelha, diz Santo Agostinho, já não se come, não se dorme, não se faz senão chorar; mas perde-se a graça de Deus, e come-se, dorme-se e não se chora!

Eis, pois, o triste estado a que me tenho reduzido, ó meu Redentor. Para me tornardes digno da vossa graça, haveis empregado 33 anos de suores e sofrimentos, e eu, por um instante de prazer envenenado, por um nada, a desprezei e perdi. Dou graças à vossa misericórdia, que me dá ainda tempo para a recuperar, se o quiser. Ah! sim, quero fazer tudo para a readquirir. Dizei-me o que devo fazer para obter o perdão. Quereis que me arrependa? Pois bem, ó meu Jesus, arrependo-me de todo o coração de ter ofendido a vossa bondade infinita. Quereis que Vos ame? Amo-Vos sobre todas as coisas, Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas.

No passado liguei demais o coração ao amor das criaturas e das vaidades. De hoje em diante, quero só viver para Vós e só amar a Vós, meu Deus, meu tesouro, minha esperança e minha fortaleza: Diligam te, Domine, fortitudo mea (6) ― “Amar-Vos-ei, meu Deus e minha fortaleza”. Os vossos merecimentos, as vossas chagas, ó meu Jesus, devem ser a minha esperança e a minha força. É de Vós que espero a força de Vos ser fiel. Recebei-me, pois, na vossa graça, ó meu Salvador, e não permitais que jamais Vos abandone. Desprendei-me de todas as afeições mundanas, e inflame o meu coração no vosso santo amor. ― Maria, minha Mãe, fazei com que me abrase no amor de Deus, como sempre vos haveis abrasado. (II 88.)

  1. Os 1, 9.
    2. Sap. 11, 25.
    3. Ps. 138, 10.
    4. Ps. 118, 21.
    5. Ez. 18, 24.
    6. Ps. 17, 2.

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III – Santo Afonso